Julgamentos da (e na) história: o que aprendemos com a ave de Minerva?
Lenio Luís Streck
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1. O golpe da cervejaria em 1923 e o que temos a aprender
O advogado Juliano Breda foi meu parceiro, junto com André Karam Trindade, na ADC 44 (presunção da inocência) e escreveu no início de 2025 belo texto tratando dos 100 anos do julgamento de Hitler depois do fracassado Golpe da Cervejaria. Breda toma como base o livro de David King, O Julgamento de Hitler (Editora Novo Século).
O livro de King coloca à lume os graves equívocos cometidos pelo sistema de justiça alemão, cujas consequências quase destruíram o mundo, na medida em que Hitler poderia ter sido contido naquele momento.
King chama o julgamento de “simulacro do Tribunal da Baviera”. Reconstruindo brevemente: na noite de 8 de novembro daquele ano, na Bürgerbraukeller, uma cervejaria de Munique, centenas de pessoas acompanhavam uma reunião política que reunia as mais importantes figuras da região.
A reunião foi interrompida pela pequena tropa de assalto de Hitler, comandada por Herman Göring, que chegou em quatro caminhões, cercando a cervejaria, rendendo os poucos guardas e fechando todas as saídas do local. Hitler, depois de dar um tiro para o ar, grita: “A revolução nacionalista foi desencadeada”.
Apesar de controlarem o Ministério da Guerra, os insurrectos cometeram vários erros, como de deixarem os líderes bávaros, Kahr, Lossow e Seisser, que seriam imprescindíveis para o controle da polícia de Munique, saíssem sem escolta da cervejaria. Os três passaram a estruturar com o apoio de outros políticos e líderes militares uma contraofensiva ao movimento de Hitler, que subestimara essa possibilidade.
Os líderes nazistas não acreditavam que a polícia de Munique reagiria e que os objetivos comuns do povo da Baviera, contra a humilhação do Tratado de Versalhes e a ruína econômica do povo alemão, serviriam para unir a todos em torno do novo líder. Em suma, o putsch da cervejaria (assim ficou conhecido) deu errado e Hitler e seus comandados foram presos. Houve centenas de feridos e 20 mortos: 16 nazistas e quatro policiais. Interessante notar que entre os mortos do lado golpista, Theodor Von der Pfordten, juiz da Suprema Corte da Baviera, carregava um papel rascunhado com uma nova “Constituição” que fechava o parlamento, expulsava os judeus do país, confiscava seus bens e criava campos de prisão aos inimigos do regime.
Como lembrou Breda no artigo referido, eles também tinham uma minuta do golpe. Estava ali rascunhado todo o futuro horror europeu, por ora, adiado.
Veja-se o primeiro grande erro: Hitler e nove réus foram denunciados apenas pelo crime de alta traição. As mortes de policiais, o sequestro de membros do governo e o ataque aos judeus foram ignorados pela acusação. Havia forte simpatia do MP (de do Judiciário) pelos golpistas de então.
2. E o julgamento?
O Tribunal Popular da Baviera era formado por cinco juízes. Dois togados e três leigos. As estatísticas dos julgamentos animavam os nazistas. Centenas de julgamentos por crimes políticos, nos anos que antecediam ao caso, apontavam para a ideologia dominante dos julgadores. Bingo. Em média, réus de esquerda recebiam 15 anos de pena; os acusados de direita, quatro meses.
No fundo, o julgamento fez uma ode ao golpismo e ao seu protagonista, Adolf Hitler, que mesmo preso não desistia de tentar novo golpe. A democracia era algo que lhe causava repulsa. Também o ódio à Constituição de Weimar, é claro. Golpistas odeiam constituições democráticas. Golpistas usam a Constituição contra a Constituição. Golpistas são especialistas em oxímoros.
O bizarro: o promotor encerrou sua peroração elogiando o principal réu, Hitler, chamando-lhe de soldado honesto, bravo e altruísta, mas que deveria ser responsabilizado pelos seus atos. O próprio Hitler encerrou os discursos de defesa, em uma fala eloquente de mais de uma hora. Simpaticamente, pediu que o tribunal considerasse apenas ele como responsável. Disse que independentemente da decisão do tribunal, o povo alemão caminharia unido com suásticas pelas ruas lutando contra marxistas e judeus e que a história os absolveria.
O diabo mora nos detalhes: um jornalista de Berlim que acompanhou o julgamento vaticinou: se esse homem quiser, pode levar o mundo ao colapso.
Detalhes técnicos: o Código Penal Alemão previa prisão perpétua para o crime de alta traição. Mais: Hitler era estrangeiro. Deveria ser expulso, como previa a legislação. Mas a acusação pediu apenas uma pena de oito anos a Hitler.
Em 1º de abril de 1924, o austríaco Hitler era considerado culpado pelo crime de alta traição, mas sua pena em razão de “circunstâncias atenuantes” poderia variar de cinco a 15 anos.
O tribunal considerou que Hitler agiu com sentimento patriótico e motivos nobres. Um golpista patriota. Hitler pegou a pena mínima, cinco anos, podendo receber liberdade condicional após seis meses.
Nota relevante: o simulacro de julgamento foi considerado uma vitória gigantesca de Hitler, do nazismo e dos golpistas. E Hitler foi solto, em liberdade condicional, em 20 de dezembro de 1924. A tentativa de golpe de Estado — ou o crime de alta traição — cuja pena era a perpétua — rendeu ao comandante nazista oito meses e meio de prisão, tempo em que escreveu sua obra Mein Kampf.
O resto sabemos.
Ou não sabemos?
Aprende-se? A história é implacável. O problema é saber ler nas linhas e entrelinhas da história, essa ave de minerva.
Os alemães, mordidos por cobra, têm medo de linguiça. Lá a lei é mais dura que a do Brasil. Qualquer estágio prévio à tentativa (ou seja, punem antes mesmo da tentativa) é considerada crime consumado (Vorbereitung eines hochverräterischen Unternehmens).
3. E nossos golpistas?
Por aqui, até parte da comunidade jurídica acha que não houve tentativa de golpe. Jornalistas e jornaleiros também pensam. Afinal, não havia tanques na rua, dizem. Qual é o problema de se “pensar” em golpe (pensamento digitalizado, como diz um general) e planejar matar parcela das autoridades da República?
Neste momento, já estão condenados mais de 500 réus do 8 de janeiro. Mas, mesmo assim, parte da imprensa ainda fala em “suposta tentativa de golpe” (sic). E até jornalistas experientes não perdem a oportunidade de ironizar as condenações, dizendo que “homem que se sentou na cadeira de Moraes foi condenado a 17 anos)” ou jornais manchetaram algo como “mulher que pichou estátua pegou 14 anos” … Isso contribui para a desinformação. Mas, isso é deliberado ou é feito por falta de assessoria jurídica?
Explico: a linguagem salva e mata. E esfola. E acaricia. Alguém já viu uma manchete ou um comentário de jornalista importante dizendo que “homem que apenas olhava o trânsito de policiais pegou x anos de prisão”? Não, certo? Porque quando é olheiro de tráfico não se isola as partículas do discurso. Ainda: alguém já viu alguma manchete do tipo “motorista foi condenado a 10 anos por apenas dirigir o carro do assalto ao banco”?
Ora, o cidadão que “só” se sentou na cadeira esteve envolvido na trama, no empreendimento. Sua ação isolada nada representa. Mas sua participação no empreendimento é que é julgado. Ou alguém pensa que só dirigir um carro para um assalto é “só dirigir um carro”? Ou ficar vigiando durante o tráfico de drogas é apenas “ficar olhando”? Não? Pois então…! Por que na tentativa de golpe o olheiro é só um olheiro – se me permitem a alegorização?
Resta agora o julgamento dos núcleos diversos que participaram da tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático. A PGR denunciou Jair Bolsonaro e o seu núcleo político-militar mais relevante (Braga Netto, Heleno), além de outros assessores, por essas mesmas infrações penais e a ação penal caminha para o seu final.
Enquanto isso, há poucos dias um grupo de deputados tentou um golpe da cervejaria no Parlamento. Faltou apenas tiro para cima. Mas gente acorrentada havia. Tomaram o poder legislativo por 36 horas. O líder Sóstenes diz: punam somente a mim. Pois é. Interessante, não?
O que querem os “insurrectos da agostada”? Anistia para os golpistas já condenados e os que ainda não foram condenados; querem também o impeachment do ministro do STF que é o relator do julgamento da tentativa de golpe.
Interessante: o Brasil, se atendidos forem os insurrectos de agosto, virará caricatura, em que, além de os golpistas já condenados saírem anistiados, também o juiz da causa é afastado. Se a moda pega, podemos ter golpes a cada eleição. A turma que perde vira insurrecta; logo depois, promove-se a anistia ou se afasta o juiz-ministro da causa.
Alguém tem dúvida de que a democracia está sob ataque, interno e externo? A Suprema Corte de um país de mais de 200 milhões de almas está ameaçada por estar julgando quem quis derrubar a democracia. O inusitado é que o principal conspirador “de fora”, um deputado, ainda recebe salários do povo que ele está traindo. O Brasil é campeão em venire contra factum proprium.
O julgamento dos insurrectos de agosto pelo parlamento é um bom teste para esse poder que foi impedido de funcionar por 36 horas. Mas já há sinais de que Motta age como o tribunal da Baviera.
O julgamento dos golpistas de 2022-2023 é outro teste de fogo, para que o Brasil não repita a patacoada da Baviera.
Já passamos, desde 1889, por 14 golpes e tentativas de golpe. Queremos uma 15ª vez?
Lenio Luiz Streck
O autor é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br
Fonte
O GOLPE SUA COMPARAÇÃO
A comparação entre o julgamento do Putsch de Hitler (em 1924) e os processos judiciais envolvendo Jair Bolsonaro (especialmente o caso do "putsch" de 8 de janeiro de 2023 no Brasil) revela diferenças históricas, políticas e jurídicas significativas, mas também alguns paralelos simbólicos. Abaixo, uma análise comparativa:
1. Contexto Histórico e Natureza dos Crimes
- Putsch de Hitler (1924):
- Ocorreu em 1923, quando Hitler e nazistas tentaram um golpe de Estado (*Putsch da Cervejaria*) em Munique para derrubar o governo da República de Weimar.
- Foi uma ação violenta, com confrontos armados, mas fracassou rapidamente.
- Hitler foi acusado de traição (*Hochverrat*), crime grave na Alemanha da época.
- Bolsonaro e o 8 de janeiro (2023):
- Após sua derrota eleitoral em 2022, apoiadores de Bolsonaro invadiram e vandalizaram sedes dos Três Poderes em Brasília, num episódio visto como uma tentativa de desestabilização.
- Bolsonaro não liderou pessoalmente os ataques, mas foi acusado de incitação indireta (por discursos antidemocráticos e teorias de fraude eleitoral).
- Seus processos incluem investigações por incitação ao crime, atentado contra o Estado Democrático e possível associação com os atos.
2. Julgamento e Consequências Jurídicas
- Hitler (1924):
- O julgamento foi conduzido por um tribunal da Baviera, em um contexto ainda instável pós-Primeira Guerra.
- Apesar da gravidade, Hitler recebeu tratamento brando: pena de apenas 5 anos (cumpriu menos de 9 meses).
- O tribunal permitiu que Hitler usasse o julgamento como palanque, divulgando suas ideias nazistas.
- Bolsonaro (2023–2024):
- Seus casos estão sendo julgados no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e no STF (Supremo Tribunal Federal), com processos por abuso de poder político, incitação e atentado à democracia.
- Até agora, as consequências foram:
- Ineligibilidade por 8 anos (decisão do TSE, 2023).
- Investigação criminal por suposta tentativa de golpe (incluindo apreensão de passaporte e acusações formais).
- Diferentemente de Hitler, Bolsonaro não está preso (em 2024), mas enfrenta riscos de condenações futuras.
3. Impacto Político
- Hitler
- O julgamento fracassado fortaleceu sua imagem como mártir da direita alemã.
- Na prisão, escreveu Mein Kampf e reorganizou o partido nazista, que depois ascendeu ao poder democraticamente (1933).
- Bolsonaro
- Seu julgamento dividiu a opinião pública: para alguns, é vítima de "perseguição"; para outros, um risco à democracia.
- Ainda não há um movimento organizado pós-condenação comparável ao nazismo, mas sua influência na direita brasileira permanece.
4. Paralelos e Diferenças
- Semelhanças:
- Ambos exploraram narrativas de "fraude" ou crise institucional para justificar ações extremas.
- Os julgamentos tiveram alto simbolismo político, não apenas jurídico.
- Diferenças
- Violência: O Putsch de Hitler foi um levante armado; o 8 de janeiro foi um ato de vandalismo sem comando militar direto.
- Contexto jurídico: A Justiça brasileira (STF) agiu de forma mais dura contra Bolsonaro do que a alemã contra Hitler em 1924.
- Resultado: Hitler saiu fortalecido; Bolsonaro, enfraquecido (por enquanto).
Conclusão
Enquanto Hitler usou seu julgamento como trampolim para o poder, Bolsonaro enfrenta um sistema jurídico mais resistente a rupturas. Porém, ambos os casos mostram como crises políticas e discursos antidemocráticos podem levar a tentativas de deslegitimação das instituições. A grande diferença é que, no Brasil atual, as instituições democráticas (por enquanto) conseguiram conter os efeitos imediatos da escalada autoritária.
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