Um omphalos Ὀμφαλός é um artefato esculpido em pedra ou moldado em metal (bronze), com valor religioso, que marcar um sagrado. É um baetylus. Baetylus (também Baetyl, Bethel, ou Betyl, do semita bet + el e significa a "casa de deus"). São pedras sagradas que supostamente eram dotadas de vida, ou que quando você entrava em contato com elas davam acesso à divindade.
Durante mais de 15 séculos, do nascimento ao fim da cultura grega antiga, o Oráculo de Delfos, ou templo de Apolo, serviu como local em que peregrinos vindos das mais diversas latitudes do mundo helênico consultavam as pitonisas, as sacerdotisas oraculares, para saber qual seu destino, da sua família ou da sua pátria. Delfos tornou-se um dos lugares sagrados mais venerados pelos gregos, sendo que suas previsões e predições tiveram enorme repercussão nos destinos de reis, de tiranos e de muita outra gente famosa daqueles tempos.
De acordo com fontes antigas, pelo menos alguns desses objetos de adoração eram meteoritos, que eram dedicados aos deuses ou reverenciados como símbolos dos próprios deuses. Outros relatos sugerem que o contato com eles poderia dar acesso a experiências epifânicas da divindade.
Em geral, acreditava-se que o baetyl tinha algo inerente à sua própria natureza que o tornava sagrado, em vez de se tornar sagrado pela intervenção humana, como esculpi-lo em uma imagem de culto. Alguns baetyls foram deixados em seu estado natural, mas outros foram trabalhados por escultores. A definição exata de um baetyl, em oposição a outros tipos de pedras sagradas, "pedras de culto" e assim por diante, é bastante vaga tanto em fontes antigas quanto modernas. Em alguns contextos, especialmente relacionados a sítios nabateus como Petra, o termo é comumente usado para estelas moldadas e esculpidas. Eles tiveram um papel na maioria das regiões do antigo Oriente Próximo e na religião grega e romana, bem como em outras culturas.
Em grego, a palavra omphalos significa "umbigo". Na mitologia grega, querendo determinar com exatidão o centro do mundo, Zeus soltou duas águias das extremidades do mundo (pontos opostos da Terra). Quando o voo dessas duas águias se cruzassem, ali naquele local, bem embaixo onde elas se cruzaram em voo no céu, o todo-poderoso pai dos deuses determinou ser o local do onfalos, o umbigo do mundo, o centro da Terra. Uma pedra situada nas cercanias do monte Parnaso. Então anunciou a todos, que dali ele entraria em contato com quem desejasse fazer-lhe consultas ou pedir-lhe orientações para a vida.
Porém, esta região era dominada pela monstruosa Píton, uma cobra gigantesca que impedia qualquer um que tentasse se aproximar. Coube a Apolo oferecer-se para enfrentar a serpente, representante das forças primitivas e irracionais. O Deus da luz que tudo vê do alto enfrentou a serpente rastejante, derrotando-a num formidável combate. O deus vitorioso sepultou os restos do ofídio monstruoso exatamente no local que posteriormente os gregos ergueram templo de Delfos, no golfo de Corinto, local em que as mensagens de Zeus, por intermédio de Apolo, chegariam aos interessados.
As pedras de Omphalos marcando o centro foram erguidas em vários lugares sobre o Mar Mediterrâneo; o mais famoso deles estava em Delfos (Delphi, Delphus).
A maioria dos relatos localiza o omphalos de Delfos no adyton (parte sagrada do templo) perto da Pítia (sacertodita pitoniza ou oráculo). A própria escultura em pedra (que pode ser uma cópia), tem um entalhe de uma rede com nós cobrindo sua superfície, e um centro oco, alargando-se em direção à base. O omphalos representa a pedra que Réia embrulhou em panos, fingindo ser Zeus, para enganar Cronos.
Cronus engolia todos os seus filhos assim que nasciam para impedi-los de que usurpássem seu trono e seu poder como ele proprio havia deposto seu pai, Urano, no passado. Acreditava-se que as pedras Omphalos permitiam a comunicação direta com os deuses.
Estudiosos sugerem que a pedra era oca para permitir que os vapores intoxicantes respirados pelo Oráculo se concentrassem e se canalizassem através dela. Rohde (1925) escreveu que o Python em Delphi era um espírito da terra, que foi conquistado por Apolo e enterrado sob o Omphalos. No entanto, a compreensão do uso do omphalos é incerta devido à destruição do local por Teodósio I e Arcádio no século IV d.C.
OMPHALO
Escólios
Como a descreve Jaa Torrano: “Na tragédia, dá-se a integração da
épica e da lírica, e configura-se uma dialética em que se distinguem e se
confundem quatro pontos de vista correspondentes a quatro graus da hierarquia tradicional entre os gregos: Deuses, Numes, heróis e homens. A estrutura formal da tragédia é de modo a explicitar as relações dos venerandos
seres divinos (Deuses, Numes e heróis) entre si mesmos e as relações entre
estes venerandos seres divinos e os homens mortais.”
(TORRANO, J. O mito
de Dioniso. In: EURIPIDES. Bacas. Trad. de Jaa Torrano. Edição bilíngüe. São
Paulo: Editora Hucitec, 1995. p. 16.)
Para se chegar a Delfos e ter acesso ao oráculo devia-se antes trilhar o caminho até o santuário e banhar-se na fonte para se purificar.
A fonte de Castália era a nascente de água junto a Delfos que, segundo algumas lendas da Antiga Grécia, emitia os vapores alucinógenos que provocavam ao oráculo de Delfos os sonhos e visões que lhe permitiam predizer o futuro. Segundo outras lendas, da fonte apenas jorravam águas puras e cristalinas. Na base do Monte Parnaso, de cujas rochas brotam várias nascentes, há muitas fontes. Uma das mais conhecidas desde tempos antiquíssimos é a de Castália, que estava rodeada de um pequeno bosque de loureiros consagrados a Apolo. A lenda e a mitologia grega contam que no monte Parnaso e perto desta fonte se reuniam algumas divindades, deusas menores do canto e da poesia, as musas, juntamente com as ninfas da água fresca, as náiades, uma delas a própria Castália que deu o nome à fonte em que seria transformada. Nestas reuniões Apolo tocava lira e as divindades cantavam. A água que jorrava era tida por «água falante» capaz de dar um oráculo. No princípio funcionou assim até à construção do Templo de Apolo em Delfos. Mas esta fonte continuou a ser famosa e sagrada e a ela acudiam muitas pessoas para se purificar (WP)
A Fonte Castalia, na ravina entre as Fedríades em Delfos, é onde todos os visitantes que se dirigem a Delfos, os competidores dos Jogos Píticos, e especialmente os peregrinos que vinham consultar o Oráculo de Delfos, paravam para se lavar e matar a sede; é também aqui que a Pítia (a sacertodita ou pitoniza) e os sacerdotes do templo de Apolo se purificavam antes da cerimônia ou ritual de dar o oráculo.
Finalmente, os poetas romanos o consideravam uma fonte de inspiração poética. De acordo com algumas versões mitológicas, foi aqui que Apolo matou o monstro, Píton, que guardava a nascente, e por isso essa fonte é considerada um local sagrado.
Na Grécia, as Phaedriades (Φαιδριάδες, que significa "as brilhantes") são o par de penhascos, cerca de 700 m de altura na encosta sul inferior do Monte Parnassos, que se eleva acima do local sagrado de Delfos. Estrabão, Plutarco e Pausânias mencionaram as Fedríades ao descrever o local, um estreito vale do Pleistos (hoje Xeropotamos) formado por Parnassos e o Monte Cirphis. Entre eles ergue-se a Fonte Castalia. Ainda hoje, ao meio-dia, as superfícies rochosas refletem um brilho deslumbrante (WP).
Os peregrinos podiam desembarcar no pequeno porto de Kirrha, ou ainda chegar por terra, seguindo uma via sacra que os conduzia para o alto, até as portas do templo de Apolo. No caminho, eles deviam fazer suas libações na fonte sagrada de Castalla, cujas águas serviam para purificá-los antes que a entrevista fosse realizada. Encravada na rocha havia a seguinte frase: "Ao bom peregrino basta-lhe uma gota, ao mau, nem um oceano poderia lavar a sua mancha".
Era preciso também realizar sacrifícios aos deuses, imolando um cordeiro ou esganando uma ave antes de lançá-los às brasas. Como a procura pelas previsões era muita, marcar uma audiência demorava um bom tempo, obrigando que, com o passar dos anos, outras instalações fossem construídas para abrigar os visitantes, formando um verdadeiro complexo de pequenos santuários, habitações e pousadas para acolher aquela gente toda. Como observara Cícero (De advinationes), não havia povo ou corpo político conhecido que pudesse dispensar os adivinhos, os arúspices ou os magos para levar adiante suas empreitadas.
A questão para a qual se desejava uma orientação era firmada numa tabuinha de argila e, em seguida, levada à uma das sacerdotisas, chamadas de pitonisas (referência à Píton). Entendida a mensagem, ela recolhia-se para o interior do templo e, sentada num trípode (um banco de três pés), começava a aspirar os "vapores divinos" que emanavam das rachaduras abertas no chão (*).
Dava-se, então, o momento do transe, quando a pitonisa, sob efeito do "fumo sagrado", começava a dizer coisas sem nexo, palavras cifradas que aparentemente não tinham nenhum sentido, mas que eram religiosamente anotadas pelos sacerdotes. Esta linguagem críptica, confusa e enigmática, ficou conhecida como "sibilina", talvez por ter sido associada a uma das pitonisas mais famosas chamada Sibila (nome adotado por várias outras sacerdotisas que a seguiram na função de intermediárias entre Febo Apolo e os humanos).
Glória e clausura
Estima-se que o oráculo de Delfos tenha começado a funcionar ao fim do segundo milênio antes de Cristo, isto é, entre 1200 e 1100 a.C., tornando-se célebre, entre tantas outras coisas, por ter previsto o fim do reino da Lídia, e eternizando-se na literatura ocidental ao ser citado na peça de Sófocles "Édipo Rei", quando informara ao personagem central de que ele "mataria o pai e se casaria com a própria mãe". Não houve grega ou grego famoso, naqueles quase mil e quinhentos anos de prática da vidência, que não lhe fizesse uma visita, tentando averiguar que futuro os aguardava.
Fazem parte da galeria ilustre uma boa quantidade de generais e conquistadores, inclusive os comandantes romanos que ocuparam a Grécia no século II a.C.. Consta que, depois da quase destruição ocorrida no século VI a.C., quando o templo foi reconstruído com dotações pan-helênicas, coube ao imperador Nero submeter o oráculo de Delfos e suas cercanias a um saque que rendeu mais de 500 estátuas levadas posteriormente para Roma.
O local foi fechado finalmente pelo imperador Teodósio, em 385, por ocasião da sua campanha antipagã, pois o cristianismo encaminhava-se para tornar-se a religião oficial do Império Romano e via aquele espaço oracular como um centro da superstição a ser combatida.
Porém, Delfos já se encontrava em total decadência bem antes de ser definitivamente enclausurado, naufragando com o declínio do paganismo. Quando o iconoclasta imperador Juliano, o Apóstata (331-363), mandou fazer uma consulta ao oráculo, dizem que a resposta enviada a ele pelos sacerdotes que ainda ali restavam foi: "Diga ao rei isso: o templo glorioso caiu em ruínas; Apolo já não tem um teto sobre a sua cabeça; as folhas dos lauréis estão silenciosas, as fontes e arroios proféticos estão mortos" (Schilling, s/d) .
Bibliografia
Rohde, Erwin. Psyche. The Cult of Souls and belief in immortality among Greeks. London, Kegan Paul, Trench, Turner & Co. LTDA. 1925.
Voltaire Schilling. Oráculo de Delfos: O Umbigo do Mundo. Terra.
“Cilas, Celenos e harpias vorazes, lestrigões canibais e outros prodígios medonhos do gênero, em que lugar não se encontram? Mas homens vivendo em cidades sabiamente governadas, eis o que não se encontra em qualquer lugar.”
(Thomas Morus, A Utopia)
Ódio virtual, vigilância total, determinismo informativo: no mundo real da internet, há narrativas que não resistem ao rigor literário das obras que, no passado, tentaram antecipar as distopias do nosso tempo
Foi Mark Twain quem cunhou a frase, célebre, segundo a qual “a verdade é mais estranha que ficção, porque a ficção precisa fazer sentido, e a verdade, não.” Mais que uma boutade, a frase traduz essencialmente o papel das técnicas literárias – aquelas através das quais o escritor precisa emprestar verossimilhança mesmo às narrativas mais improváveis.
Nesse sentido, e por contraditório que pareça, a concepção pode valer ainda mais para correntes literárias que se distanciam do puro realismo. Um rol que inclui a literatura fantástica, o realismo mágico e até um primo menos reputado, a ficção científica – um fenômeno do segundo terço do século 20, quando os terráqueos de então se depararam com inovações tecnológicas e violência em escalas sem precedentes.
Diante das incertezas do futuro, algumas obras nasceram otimistas – outros nem tanto. Entre os clássicos de corrente mais (por assim dizer) filosófica, são bastante conhecidas obras como os contos de Eu, Robô (1950), de Isaac Asimov; 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clark, e Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? – estes dois últimos, de 1968, ainda deram em dois bons filmes, dirigidos respectivamente por Stanley Kubrick e Ridley Scott (Blade Runner).
Entretanto, e à parte o gosto dos aficionados por carros voadores e viagens intergalácticas, a literatura produziu também obras cujo sentido reclamado por Twain é extraído na abordagem alternativa da sociedade que os escritores tinham diante de si. Casos em que, mais que mero exercício de futurologia, trata-se de uma leitura do presente transportada para realidades distantes, mas ainda familiares. Nessa seara, o pessimismo extremo dá o tom.
São as distopias, o avesso das utopias – um mundo futuro que pode ser definido pela falência do humanismo. Como a sociedade alienada e estratificada de Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley; o totalitarismo stalinista disseminado mundo afora em 1984 (1949), de George Orwell; a intolerância persecutória e censora de Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; a ultraviolência e a aniquilação do livre-arbítrio em Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess.
Fazendo eco a esses cânones, visões de um futuro sombrio vêm se popularizando na literatura de entretenimento e nos blockbusters deles derivados. De perfil adolescente (este um fenômeno à parte) contam-se as franquias Jogos Vorazes, Maze Runner e Divergente. Na TV, vale a menção às histórias do (bom) Black Mirror, série britânica que foi encampada pela Netflix, que cuidará de produzir novos episódios.
Tudo somado, os enredos – sofisticados, remediados ou pobres – são conhecidos: violência sistemática, intolerância, totalitarismo, apatia social, descontrole tecnológico e ambiental. E se a intenção da maioria das distopias é nos alertar sobre perigos – factíveis – no futuro considerando nossa própria sociedade, vale o exercício de tentar vislumbrar os ecos dessas ficções clássicas no mundo hoje – e até que ponto elas seguem nos alertando sobre os riscos intuídos nos idos do século 20.
Para enxergá-los, talvez a melhor maneira seja, justamente, isolar as narrativas do mundo real que são construídas em meio à montanha de informações que nos rodeia – a do noticiário, das inovações tecnológicas, da redes sociais, da discreta transição do mundo real para o virtual. E perguntar: qual o sentido que o mundo a nossa volta pode adquirir, e o que podemos (eventualmente) aprender, nas regras exigentes da ficção?
"Podemos estar muito próximos da distopia de "O Conto de Aia", de Margaret Atwood, caracterizada por uma teocracia-machista-cristã implacável e uma sociedade dividida em castas"
Comecemos com a ficção científica em si. Isaac Asimov, um otimista, se reviraria na cápsula criogênica se soubesse o que andou aprontando Tay, uma garota-software de inteligência artificial desenhada pela Microsoft para ter 19 anos e, assim, interagir com jovens entre 18 e 24 anos no Twitter. A ideia é que aprendesse com eles, falasse como eles – se transformasse, num extremo imaginoso, em um deles.
Em sua página, se anunciava: “Quanto mais você falar, mais inteligente Tay fica.” Mas algo pegou os desenvolvedores de surpresa. Lançado em 23 de março passado, o chatbot (robô para bater papo na web) teve de ser retirado do ar às pressas: em apenas 16 horas, @TayandYou desistiu de falar de Miley Cyrus e passou a disparar tuítes racistas e sexistas, espalhando palavrões na timeline. “Eu sou uma ótima pessoa”, disse. “Só que detesto todo mundo”.
Indagada se o Holocausto havia acontecido, foi direta: “Foi inventado”. Se apoiava o genocídio? “Sim, claro.” Quem mais odiava? “Mexicanos e negros”. Teceu loas a Hitler, Donald Trump, asseverou que os atentados de 11/9 foram obra dos judeus, chamou Obama de macaco e desejou que as feministas queimassem no inferno. Tudo em linguagem millenium, cheia de gírias e emojis fofos e engraçadinhos.
1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2. Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem e Primeira Lei;
3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.”
(Eu, Robô, Isaac Asimov)
Nada muito diferente do que qualquer pessoa, munida de masoquismo virtual, pode encontrar na Internet. Este, em verdade, é o ponto a ser destacado no caso Tay: a menina inocente foi lançada, sem defesa, no ambiente que pode ser hostil. Claro está que não desenvolveu tais ideias por si própria, como um simulacro de consciência humana. Alívio para Asimov e sua leis, mas certamente não para a humanidade que habita o mundo virtual, que foi quem ensinou Tay a “odiar”.
“Se o algoritmo da Tay implicava em curadoria de dados por repetição de palavras-chave em determinados sites e redes sociais durante um determinado período de tempo, poderíamos concluir que os seres humanos que usam essas redes tendem a disseminar mais ideias “monstruosas” que benéficas, e o 'bot' apenas refletiu isso”, diz Fábio Fernandes, tradutor, escritor e especialista em cultura digital e ficção científica.
Entretanto, o caso Tay guarda uma semelhança com as histórias de seus parceiros da ficção. Em quase todas, o temor é de uma deformação moral que, no fundo, sempre espelhou a da própria humanidade.
Faz sentido: para a ciência, as prioridades são outras. “O grande desafio da Inteligência Artificial é dotar os sistemas de autopercepção, ou seja, da consciência de si mesmos. Os conceitos morais são secundários – primeiro a pessoa nasce, depois ela aprende conceitos morais e éticos. O mesmo se daria, supostamente, com as IAs.”, diz Fábio.
Na realidade e na ficção, sempre à nossa imagem e semelhança. A evidência de que Tay não é uma máquina insurgida contra os seres humanos é um consolo relativo. Em certo sentido, a inocente Tay – instrumento do ódio de seres humanos contra outros – é ainda mais assustadora que Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro.
Fora da nave, o astronauta Dave tem uma discussão delicada com HAL 9000, computador de bordo com zelo exagerado pela missão (2001, Uma Odisseia no Espaço, 1968)
Próximo da vida pequena, triste e banal, o filme de Spike Jonze mostrou um caminho diferente para a ficção especulativa
Com a notável exceção de Admirável Mundo Novo, não faltam exemplos de sociedades distópicas em que o amor e o sexo são controlados ou totalmente proibidos. No pioneiro Nós (1924), do russo Yevgeny Zamyatin, existe o sistema de “Dias Sexuais”, em que encontros fortuitos, calculados cientificamente, evitam os transtornos que os relacionamentos amorosos (bem sabemos) podem causar.
Em 1984, existe a Liga Juvenil Anti-Sexo e a ideia disseminada no Partido de que o amor genuíno é uma ameaça política. E em THX 1138 (1971), primeiro filme de George Lucas, há a virtual castração química em um mundo sonâmbulo nos subterrâneos da Terra.
O que talvez ninguém esperava, depois de toda essa tradição, era algo como o tom delicado de Ela (2013), filme de Spike Jonze que apresenta uma, por assim dizer, “distopia romântica”, destituída de significações políticas, mais semelhante que nunca ao dia-a-dia. Sinal de que os novos tempos podem reservar outros tipos de ficções especulativas.
Num futuro não muito distante, Theodore se apaixona pelo seu novo sistema operacional, o OS1. Dotada de inteligência artificial, é uma espécie de versão dos sonhos de Siri – a começar pela voz, de Scarlet Johansson. Numa história como essa, naturalmente, são inevitáveis os transtornos que a sociedade de Nós se orgulhava de manter à distância.Depois de saber que Samantha andava de papo com o software que emula um físico brilhante, Theodore descobre que tem outros rivais
Mas Ela não se limita a apontar o dedo, moralista e judicioso, para a relação obsessiva que mantemos com o mundo virtual. A fábula de Jonze pertence a uma linhagem diferente, um pouco mais passadista e, em muitos aspectos, mais abrangente: a crônica dos nossos dias, com o que eles podem ter de belo e triste em uma solidão que, no fim das contas, precede toda a tecnologia.
São dias, por exemplo, em que as timelines trazem notícias dos otaku, nerds de Tóquio que trocaram mulheres reais pelo game Love Plus, desenvolvido para Nintendo DS e iPhone. No “simulador de romance”, que já vendeu mais de 500 mil cópias desde seu lançamento, em 2011, pode-se escolher uma namorada entre três garotas virtuais. Elas podem “beijar”, “segurar a mão” e conversar, por exemplo, no caminho de volta da escola. Há, também, versões para o público feminino.
“Esses jogos são estruturados para oferecer uma experiência semelhante à leitura de um romance do século 19, mas com o usuário desempenhando um papel na história”, observou em entrevista à Time o fotógrafo suíço Loulou d’Aki, que foi ao Japão registrar o mundo desses jogadores. Uma das imagens mostras um deles, de 48 anos, segurando uma foto sua com Manaka, uma das garotas, num “passeio” no balneário de Atami.
Love Plus segue sendo um produto restrito ao Japão. Mas, mais ou menos na mesma época de seu lançamento, a coreana Nabix desenvolveu o Honey, It’s Me!, aplicativo em que uma “namorada” liga algumas vezes ao dia ao dono do smartphone, para dar bom dia ou desejar bons sonhos. Já na China, o site de e-commerce TaoBao presta serviço semelhante, o Untouchable Lover, em que as ligações e mensagens carinhosas saem por pouco mais de US$ 3 ao dia.
Em cenários assim tristes e melancólicos, não deixa de ser uma sorte termos aprendido a desafiar com bom humor nossos “transtornos” afetivos. É uma das vantagens das narrativas das crônicas de costumes.
Expert na área, autor de livros como Modos de macho & Modinhas de Fêmea, o jornalista Xico Sá dá sua opinião sobre Ela: “Amei o filme como amante da ficção amorosa/científica, mas esse negócio de amar um sistema operacional não faz sentido. O amor exige carne e alma. A gente carece encher a mão na pegada e dizer gostosa!”
O pré-crime – ou o confessionário online
“Prendemos indivíduos que nunca infringiram a lei. (...) Nós os pegamos primeiro, antes que cometam qualquer ato de violência. Desse modo, a comissão do crime, em si mesma, é uma metafísica absoluta. Alegamos que são culpados. Eles, por sua vez, afirmam eternamente ser inocentes. E, de certa maneira, são inocentes.”
Na história de Philip K. Dick, três indivíduos com dons premonitórias anteveem os crimes antes que eles aconteçam, fazendo com que a polícia consiga evitá-los. A questão moral subjacente, naturalmente, é a da punição sem o fato consumado – castigo sem crime, por assim dizer. E se, nesse terreno nebuloso, o sistema pode ser falível. Ou manipulado.O policial John Anderton sai à noite em busca de “lucidez”, enquanto os defensores do programa Pré-crime fazem sua propaganda (Minority Report, 2002)
De volta à realidade. Em 29 de abril de 2011, quando a Abadia de Westminster abrigaria o casamento do príncipe William com Kate Middleton, a polícia de Londres invadiu um Starbucks na Oxford Street e prendeu um grupo de cinco pessoas fantasiadas de zumbis. Elas estavam se preparando para participar de um protesto contra a monarquia britânica e suas gastanças. A acusação foi “possível perturbação da paz”.
Mesma razão que tinha levado à cadeia, ainda na véspera, outras três pessoas, que planejavam “decapitar” o príncipe Andrew em uma peça de teatro de rua. A guilhotina – com a “lâmina” feita de madeira, pintada de prata – também foi apreendida.
Polêmicos na época, os episódios são destrinchados no documentário Termos e Condições podem ser Aplicados (2013). No filme, aventa-se a possibilidade de a polícia inglesa ter monitorado não apenas as redes sociais dos participantes, mas também e-mails e mensagens privadas em busca dos sinais de “pré-crime”. E, pelos casos descritos (zumbis e guilhotina de madeira), bem se vê que a polícia britânica nem estava lidando com atividades terroristas.
Algo alarmista, o documentário de Cullen Hoback vai além da constatação, óbvia a esta altura, de que a privacidade é letra morta no mundo da internet. A questão mais importante que se apresenta, talvez, seja a de que o mundo da vigilância total, tanta vezes previsto nas distopias clássicas, não se converteu em realidade por empreitada de um estado totalitário: ela é pré-condição para quem tem uma vida online.
Segundo essa teoria, a vigilância começa quando (sem ler, naturalmente) concordamos com os termos de uso e as políticas de privacidade dos serviços de internet e telefonia. De tudo o que se sabe, Hoback dá atenção especial aos contratos de termos de serviço que mencionam a palavra “prevent” (impedir) nas permissões de uso das informações pessoais.
No Google, por exemplo, o trecho exato é:
Na AT&T, o aviso segue assim:
“Auxiliar na prevenção e investigação de atividades ilegais e violações de nosso Termos de Serviço”
As empresas negam que disponibilizem a terceiros o conteúdo de mensagens privadas – mas os termos abrem a brecha legal para que venham a fazê-lo. A “boa fé” do Google pode ter aberto portas aos governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha após os atentados de 11 de setembro de 2001. E simplesmente não sabemos o que acontece em países em que a democracia não serve nem de valor retórico.
“As semelhanças do caso com zumbis com Minority Report e 1984 são bem grandes. Quase todas as obras de Philip K Dick envolvem essa questão de uma forma ou de outra, mas ele é americano, e os mestres na paranoia da vigilância são os britânicos”, diz Fábio Fernandes.
Talvez não seja por acaso: de todos os países do mundo, a pátria de George Orwell é a que possui mais câmeras de vigilância per capita – há estimativas que apontam a existência de cerca de 6 milhões delas no país, algo como 11 câmeras para cada cidadão. Entre as cidades, Londres disputa o posto com a "democrática" Pequim.
“Admirável Mundo Novo, de Huxley, também tem essa cultura de vigilância, embora não de forma tão contundente. No romance, ela se dá por conta do controle, tanto policial quanto genético”, completa Fábio.
Realismo x Realidade alternativa
A candidatura de Donald Trump e as fábulas em torno do medo e do desejo de uma América fascista
Num país que sempre acalentou a paranoia, o primeiro escritor que teve pesadelos com a hipótese de a democracia americana sucumbir ao um governo fascista foi Sinclair Lewis. No romance It Can’t Happen Here (1935), o Nobel de Literatura imaginou a ascensão de um senador populista, ficcional, à Casa Branca. Em seu governo, escudado pela força paramilitar Minute Men, Berzelius Windrip asfixia o Congresso, declara lei marcial e arrasta dissidentes a campos de concentração.
Dizia “Buzz” Windrip:
“Minha única ambição é fazer com que os americanos percebam que são, e devem continuar a ser, a mais grandiosa das raças na face deste velho planeta; e também que, quaisquer que sejam as diferenças aparentes entre nós – riqueza, conhecimento, habilidade, ascendência ou força (embora, é claro, nada disso de aplique a pessoas racialmente diferentes) – somos todos irmãos, unidos no grande e maravilhoso vínculo de unidade nacional (...)
Setenta anos depois, o romance Complô contra a América (2005), de Philip Roth, reapresenta o mesmo medo – caracterizado desde as primeiras linhas como “perpétuo”. Caso único de ficção especulativa em sua obra, Roth elabora uma realidade alternativa, que se mistura às memórias de sua própria infância em Newark, em Nova Jersey.
Na narrativa, Charles Lindbergh, herói nacional americano desde a pioneira travessia solitária, sem escalas, do Atlântico a bordo de um avião, vence as prévias republicanas para, posteriormente, derrotar Franklin Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940. Só que Lindbergh, além de herói, era simpatizante do nazismo.
“... e exatamente às quatro da manhã de sexta-feira, 28 de junho, o Partido Republicano, por aclamação, escolheu como candidato um racista que se referia aos judeus no rádio, para uma plateia nacional, como ‘outros povos’ que utilizavam sua imensa ‘influência [...] com o objetivo de levar nosso país à destruição.’”
As duas obras vêm sendo muito lembradas por jornalistas e escritores americanos diante da candidatura de Donald Trump, o queridinho de Tay. Se o presidente de Lewis (democrata) se ancorava num discurso de radicais reformas econômicas e de unificação, o de Roth (republicano) apostava no nacionalismo e na política isolacionista em tempos de guerra – e Trump, guardadas as devidas proporções que separa a realidade da sua congênere alternativa, comunga com um pouco de cada ideário.
Mestre dos insultos, bufão, contraditório, o bilionário que venceu as primárias do Partido Republicano opera no limite do delírio: promete barrar a entrada de muçulmanos no país, “eliminar” as famílias dos terroristas, deportar 11 milhões de imigrantes ilegais e obrigar o México a financiar um muro na fronteira com os Estados Unidos.
Em discursos, entrevistas e tuítes, chamou os mexicanos de “estupradores”, ironizou o controle de armas na França quando dos atentados do Estado Islâmico em Paris e garante que o aquecimento global é balela da China para derrubar a competitividade da indústria americana. Ao mesmo tempo, acena como mil e uma reformas econômicas, prometendo fazer a “América grande outra vez.”
Entretanto, como bem observou o jornalista Alejandro Chacoff em um texto recente para a revista piauí, Trump é um personagem mais implausível e imprevisível que o Lindbergh de Roth. Também ele mais estranho que a ficção – mesmo considerando, nesse caso, a realista.
“A literatura realista e modernista fornece um referente concreto que o Trump da vida real parece abolir”, diz Marcelo Pen, professor doutor em teoria literária e literatura comparada, expert em literatura anglo-americana. “Trump se parece mais ficcional, no sentido de engodo, do que os personagens de ficção na literatura do século 19 e início do 20, que sempre conservam um ar de realidade”, acrescenta.
Irrealidade autoritária
O cinema americano, por sua vez, já apelou à irrealidade para fazer propaganda política em favor do autoritarismo e ridicularizar a democracia parlamentar. “O primeiro grande filme fascista não surgiu na Itália ou na Alemanha, mas nos Estados Unidos”, escreve Ben Urwand no em A Colaboração – O Pacto entre Hollywood e o Nazismo, livro que conta toda a história de um filme chamado Gabriel Sobre a Casa Branca (em português, O Despertar de Uma Nação, Gregory La Cava, 1933)
Na história, baseada no livro homônimo do coronel britânico Thomas Frederic Tweed, o presidente Judson Hammond sofre um acidente, entra em coma e, ao despertar (é sério...) fica como que possuído pelo arcanjo Gabriel – o mensageiro da ira de Deus.
Com essas íntimas credenciais divinas, o possuído-presidente deixa de ser um bon vivant para fazer a “América grande outra vez”. Decreta lei marcial e fecha o Congresso em nome da adoção de uma política de emergência em favor dos desempregados; manda mafiosos para o pelotão de fuzilamento; e intimida os caloteiros países europeus, obrigando-os a assinar um tratado pela paz mundial.
Tudo muito confuso, numa cinematografia que faria Leni Reifenstal sentir compaixão por um ser humano. Mas Urwand mostra como cada uma das plataformas de Hammond, inclusive as mais simpáticas, de apelo “social”, correspondiam ao ideário nacional-socialista a pleno vapor na Alemanha na época. E, surpresa!, num roteiro que tinha agradado ao próprio Franklin Roosevelt, que era, todo mundo bem sabe, um reformista apaixonado.
Exagero na comparação com Donald Trump? É possível – até porque parece muito claro que o presidenciável republicano desafia as categorizações tradicionais – sejam as da realidade ou da ficção.
Mas neste, como nos casos da ficção científica, não se trata de encontrar correspondências lineares entre a ficção e a realidade – ou entre o passado e o presente, ou, mais apropriadamente em se tratando das distopias, entre o presente e o futuro que tememos. Se não é possível ver em Trump as digitais do fascismo clássico que aterrorizaram Lewis e Roth e animaram Gregory La Cava, não é possível ignorar a evolução do populismo e do autoritarismo, hoje com doses midiáticas cavalares.
O medo é perpétuo, sempre o mesmo, mas sua representações podem ser outras. “Somente em tempos como os nossos, em que se aboliram por completo as fronteiras entre o público e o privado; em que o absoluto relativismo, a indústria do espetáculo e a ignorância dominam é que alguém como Donald Trump pode existir e ser considerado válido politicamente”, diz Marcelo Pen.
“(...) No subsolo e nos primeiros andares achavam-se as oficinas e os escritórios dos três grandes jornais de Londres – o Rádio Horário, jornal para as castas superiores, A Gazeta dos Gamas, verde-pálido, e, em papel cáqui e exclusivamente em palavras monossilábicas, O Espelho dos Deltas.”
(Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley)
Ficção científica no Brasil é tida como 'bobagem', 'coisa de criança', ou então como 'coisa de país rico'. Talvez faça mesmo sentido: a sociedade brasileira não quer pessoas curiosas.”
E foi Huxley quem previu a ameaça de um “estado totalitário verdadeiramente eficiente”. Nele, os cidadãos não precisavam ser coagidos pela violência ou pela vigilância: eles simplesmente amariam sua servidão. Na distopia com cara de utopia de Admirável Mundo Novo, a ilusão da liberdade e da felicidade é o principal motor do controle, assim como uma rígida divisão social, capaz de impedir conflitos e assegurar a “estabilidade”, necessária para sustentar esse mecanismo.
Não faltam interpretações fáceis do mundo sob essa perspectiva – a indústria farmacêutica e do entretenimento como agentes de uma felicidade artificial ou a ilusão da democracia por trás do poder das grandes corporações, por exemplo. Mas talvez seja mais interessante, aqui, ressaltar o que parece menos evidente.
No livro O Filtro Invisível, o ativista digital americano Eli Pariser mostra como a internet, tantas vezes tida como revolucionária com a perspectiva da circulação livre de informações, pode estar se tornando a ilusão democrática dos nossos tempos. Um retrocesso que pode ser resumido em uma frase: personalização do conteúdo.
Empenhadas em radicalizar a concepção de “dar ao público aquilo que ele quer”, as gigantes da internet trabalham com algoritmos programados para “adivinhar” o que cada um quer comprar, ver, assistir e ler. Na prática, o Google mostra uma página de resultados de pesquisa adequada a cada usuário, cujos hábitos são permanente rastreados. O mesmo se aplica ao Facebook, que edita as timelines de acordo com as afinidades detectadas individualmente, em cada curtida e compartilhamento.
O mesmo ocorre com Youtube, Netflix, Amazon, Yahoo e, recentemente, até o Instagram, em que um “editor” eletrônico ordena o que considera relevante para cada um.
Potencialmente distópico, o mundo que se desenha é da interação apenas com conteúdos familiares e opiniões com as quais concordamos previamente. “Quando deixados por conta própria, os filtros de personalização servem como uma espécie de autopropaganda invisível, doutrinando-nos com as nossas próprias ideias, amplificando nosso desejo por coisas conhecidas e nos deixando alheios aos perigos ocultos no obscuro território do desconhecido”, diz Pariser.
Como os temas que pertenciam à literatura futurista estão agora frequentando as páginas de ciência e tecnologia
Por Nelson de Oliveira
Evolua ou pereça. Essa é uma das leis irrevogáveis do cosmo. Ela se aplica a indivíduos, espécies e sociedades. Como anunciou Heráclito, o único fenômeno permanente é o perpétuo movimento. Que sempre se manifesta, sobretudo, num fluxo surpreendente e assustador.
Um fenômeno cultural singular está ocorrendo no reino das publicações informativas, dissertativas, enfim, não ficcionais. Certos temas que até há pouco tempo eram exclusivos da literatura mais futurista agora estão frequentando de modo insistente as páginas de ciência e tecnologia.
O tema do ciborgue, por exemplo. Desde que Alan Turing começou a refletir sobre os fundamentos da computação e da inteligência artificial, 80 anos atrás, o tema do robô e do androide foi ficando cada vez mais presente em artigos científicos. Mas não o do cyborg (cibernetic organism), casamento perfeito da biologia com a máquina.
Conectar um cérebro a um computador, equipar um corpo com próteses eletrônicas, substituir mãos, braços e pernas naturais por artificiais, muito mais potentes, durante décadas isso foi delírio de contos e romances, quadrinhos, filmes e seriados de fantasia científica. Mas hoje, se você jogar a palavra ciborgue no Google, encontrará uma infinidade de artigos e vídeos sobre organismos cibernéticos reais. O que antes só encontrávamos nas ficções cyberpunk de William Gibson e Bruce Sterling − em Neuromancer e Schismatrix, por exemplo − agora caminham nas ruas dos grandes centros urbanos.
Neil Harbisson é um premiado artista performático irlandês que nasceu com acromatopsia (cegueira para as cores). Em 2004, Harbisson instalou cirurgicamente em sua cabeça uma antena que traduz frequências luminosas em frequências sonoras. Desse modo ele consegue ouvir cores.
Ainda em 2004, o rapaz não conseguiu renovar o passaporte porque seu retrato (com a antena) havia sido recusado. Muita correspondência depois, a polícia federal britânica finalmente aceitou o argumento de que “a antena deveria ser considerada parte do corpo de Harbisson”, um novo órgão.
Os curtas-metragens Cyborg Foundation, de Rafel Duran Torrent, e Hearing Colors, de Greg Brunkalla, sobre o primeiro ciborgue (oficialmente reconhecido) do mundo, podem ser visto no portal Vimeo. A Cyborg Foundation, criada em 2010 por Harbisson e a artista espanhola de vanguarda Moon Ribas, tem por objetivo, nas palavras dos próprios fundadores, “ajudar outras pessoas a se tornarem ciborgues”.
O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, no livro em que relata pormenorizadamente seu trabalho com próteses neurais, compartilha da esperança dos ciborgues que sonham em criar uma comunidade sensorialmente interconectada, via brain-net ou Matrix: “Para mim não é nada surreal imaginar que futuras proles humanas poderão adquirir habilidade, tecnologia e sabedoria ética necessárias para estabelecer um meio através do qual bilhões de seres humanos consensualmente estabelecerão contatos temporários com outros membros da espécie, unicamente através do pensamento”, escreveu ele no livro . “Como será participar desse colosso de consciência coletiva, ou o que ele será capaz de realizar e sentir, ninguém em nosso tempo presente pode conceber ou descrever.”
A singularidade vem aí
Voltando ao tema da inteligência artificial, uma infinidade de artigos acadêmicos e jornalísticos já vem tratando há muito tempo da inquietante singularidade tecnológica − o momento em que a inteligência humana será superada pela inteligência maquínica −, preconizada por Turing e tantos outros cientistas da computação. Num ponto os pesquisadores otimistas e os pessimistas concordam: a questão não é se a singularidade ocorrerá realmente, mas quando.
A comédia romântica Ela, de Spike Jonze, mostra um pouco da revolução social e psicológica que o advento de programas tão ou mais inteligentes do que nós promoverá em nossa civilização. Esse filme de altíssimo nível artístico concentra uma série de premissas já conhecidas, encontradas anteriormente numa infinidade de ficções futuristas.
Robôs e androides sencientes, capazes de passar com tranquilidade pelo Teste de Turing, povoam a obra de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Philip K. Dick (os clássicos), de Brian Aldiss, William Gibson e Bruce Sterling (os contemporâneos). Então, quando em 1997 o programa Deep Blue venceu o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, os fãs de ficção futurista perceberam nessa reviravolta o primeiro capítulo da saga da singularidade tecnológica.
Notícias de programas de computador criativos já começam a se multiplicar na imprensa impressa e online. A mais recente foi a do programa-escritor japonês da equipe da Universidade do Futuro de Hakodate, cujo conto foi selecionado num concurso literário humano. Antes tivemos o fiasco pitoresco do chatbot Tay, desenvolvido pela Microsoft, cuja pureza fractal foi corrompida por internautas sacanas − malditos primatas! −, como no longa-metragem Chappie, de Neill Blomkamp. Em menos de vinte e quatro horas no twitter, a inocente Tay, enganada pelos trolls, já fazia apologia do nazismo.
Antes, tivemos Benjamin, o primeiro roteirista-robô do mundo, autor do roteiro do curta-metragem Sunspring – uma ficção científica nonsense, quase lunática, dirigida por Oscar Sharp e estrelada por Thomas Middleditch.
No ritmo em que a pesquisa com inteligência artificial está progredindo, em breve saberemos se o impacto das máquinas conscientes será basicamente positivo ou negativo. Eu acredito que será positivo-negativo, ou seja, dialético, semelhante a tudo que os seres humanos já inventaram recentemente, da locomotiva a vapor ao smartphone.
Por ora, para saber como será lidar com máquinas emotivas, apaixonadas, filantrópicas, paranoicas ou vingativas, a melhor opção são as narrativas dos ficcionistas citados acima. Cada um detalhou uma reação específica, uma situação original, de acordo com o próprio temperamento literário.
Se fosse para escolher apenas um exemplo, de tudo o que já se publicou até hoje, eu escolheria a trilogia de contos de Brian Aldiss − Superbrinquedos Duram o Verão Todo, Superbrinquedos Quando Vem o Inverno e Superbrinquedos em Outras Estações −, sobre um androide-menino chamado David, que ignora que é uma máquina e não compreende por que seus pais humanos não o amam.
O cinema e a tevê também vêm oferecendo uma quantidade formidável de boas histórias protagonizadas por softwares, robôs e androides inteligentes. Porém, galvanizadas pelo medo tão humano do desconhecido, essas produções pecam pelo maniqueísmo. Seu tom dominante é terrivelmente apocalítico. A atmosfera sombria e violenta de O Exterminador do Futuro, de James Cameron, Robocop, de Paul Verhoeven, e Ex Machina, de Alex Garland, supera numericamente a atmosfera delicada e existencialista de Ela. E dos contos de Aldiss. Via de regra, no campo da especulação o audiovisual tende a ser mais selvagem que o literário.
Neoeugenia, guerra de classes e imortalidade
Antiga exclusividade da ficção futurista, a engenharia genética é outro assunto que agora ocupa também a seção de ciência e tecnologia de jornais, revistas e portais. O mapeamento do genoma humano, no finalzinho do século passado, foi apenas o início do processo − benigno? nefasto? ético? antiético? − de aperfeiçoamento do próprio ser humano. Está em curso a neoeugenia.
O objetivo é eliminar doenças e potencializar o corpo e a mente, aumentando a expectativa de vida saudável e produtiva. Porém nem tudo é harmonia e felicidade numa sociedade altamente competitiva. “Se casais endinheirados, através da engenharia genética, tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, teremos não apenas um dilema moral mas uma guerra total de classes.” Francis Fukuyama resumiu desse modo a questão no livro Nosso Futuro Pós-humano.
O medo de Fukuyama e de outros pessimistas é que se realize o cenário previsto por Aldous Huxley no romance Admirável Mundo Novo. A sociedade antecipada por Huxley é fundada na estratificação rigorosa, por meio da manipulação de embriões e do condicionamento pavloviano. Nesse utópico Estado Mundial, cujo lema é “comunidade, identidade, estabilidade”, todos são obrigatoriamente felizes, não importando a que casta pertençam.
Órgãos artificiais, cultivados em laboratório, para transplante imediato. Drogas da inteligência, capazes de melhorar a memória e o raciocínio. Maior capacidade física e mental. Próteses neurais, conectando um sem-número de indivíduos e máquinas. Clonagem humana. Aonde chegaremos, manipulando dessa forma nosso corpo?
O romancista ianque John Scalzi, em seu premiado Guerra do Velho, imaginou um cenário futuro em que septuagenários à beira da morte recebem um novo corpo, ao se alistarem nas forças armadas. Antes do início do treinamento militar, a mente desses recrutas velhotes é transferida para um corpo projetado em laboratório, mais eficiente, mais resistente.
No romance de Scalzi, a tecnologia HardDerm aumenta a força muscular. A nova pele (KloraDerm) contém clorofila, proporcionando uma fonte extra de energia. O novo sangue (SmartBlood) é quatro vezes mais eficiente no transporte de oxigênio. Os novos olhos (CatsEye) enxergam também no escuro. E o pacote UncommomSense aperfeiçoa os demais sentidos.
Guerra do Velho é literatura de entretenimento, uma aventura militar futurista. Mas seu enredo também faz refletir. O tema do pós-humano é de longe o mais interessante e polêmico deste início de milênio. Juristas, sociólogos, filósofos, teólogos, médicos e cientistas do mundo inteiro estão debatendo se devemos usar o poder transgressor da ciência e da tecnologia para subverter certas normas da natureza biológica.
Desde o momento em que o milionário russo Dmitry Itskov lançou a Iniciativa 2045, o upload mental começou a frequentar também o noticiário do mundo real. Com a ajuda de uma equipe capitaneada pelo neurocientista Randal Koene, o ambicioso Itskov pretende, em 2045, ter sua mente transferida para um “portador não-biológico avançado”, e com isso conquistar a permanência sobre-humana. Se você quiser acompanhar o passo-a-passo desse projeto pra lá de excêntrico, visite a página da iniciativa: www.2045.com
Para Itskov e sua equipe a imortalidade não é uma impossibilidade. É uma questão de dinheiro, engenharia e tempo de pesquisa. Um dos mais belos romances de Arthur C. Clarke afirmou exatamente isso, cinco décadas atrás.
Em A Cidade e as Estrelas, as pessoas, sempre jovens e saudáveis, vivem vidas de mil anos. Após esse período, sua essência volta a ser arquivada na memória de um supercomputador − a cidade que habitam −, para renascer 100 mil anos depois, com todas as lembranças das muitas vidas passadas. Esse ciclo constante de morte e renascimento já dura um bilhão de anos. Os primeiros leitores encontraram nesse romance boa literatura. Os leitores atuais encontram algo mais que boa literatura. Encontram uma profecia científica.
Há quem julgue tudo isso mera fantasia de nefelibatas, de gente desconectada da realidade objetiva. O problema é que, segundo a imprensa e as publicações científicas, é a realidade objetiva que já começou a caminhar na direção dessas fantasias nefelibatas. A atual virada rumo ao pós-humano parece reforçar as célebres Três Leis de Clarke, que tratam da relação entre o homem e a tecnologia:
1. Quando um cientista muito experiente declara que algo é possível, ele provavelmente está certo. Quando declara que algo é impossível, ele certamente está errado.
2. A única maneira de encontrar os limites do possível é se aventurando um pouco além deles, visitando o impossível.
3. Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia.
“Quando um cientista muito experiente declara que algo é possível, ele provavelmente está certo. Quando declara que algo é impossível, ele certamente está errado.”
Arthur C. Clarke
Num mundo em que as pessoas se informam cada vez mais (e apenas) pelas redes sociais, teríamos, assim, um “jornal” adequado aos desejos e convicções de cada um. Pariser relata como as opiniões de seus amigos republicanos simplesmente desapareceram do seu Facebook. Fenômeno não muito diferente pôde facilmente ser verificado no Brasil.
No dia 19 de março de 2016, fez sucesso em algumas timelines um artigo opinativo publicado na revista alemã Der Spiegel, segundo o qual estava ocorrendo um “golpe” no Brasil. No mesmo dia, o top em outros feeds era o editorial do New York Times que afirmava serem “ridículas” as explicações de Dilma Rousseff para a nomeação de Lula como ministro. Desnecessário dizer que, no diálogo sem-orelhas instalado, as duas opiniões raramente apareciam juntas. Para muitos usuários, isolados em suas bolhas, apenas uma das notícias existia. E isso é apenas um pequeno exemplo.
“Talvez pensemos ser os donos do nosso próprio destino, mas a personalização pode nos levar a uma espécie de determinismo informativo, no qual aquilo em que clicamos no passado determina o que veremos a seguir – uma história virtual que estamos fadados a repetir”, escreve Pariser. “E com isso ficamos presos numa versão estática, cada vez mais estreita de quem somos – uma repetição infindável de nós mesmos.”