INÍCIO

10 setembro 2022

RESISTÊNCIA


RESISTÊNCIA 



O comum é a dádiva da natureza que compartilhamos como necessidade vital, o que na tradição política era considerado a herança da humanidade que deve ser compartilhada em comum a fim de garantir a existência humana. 

Segundo Ramos (2014) o pensamento de Aristóteles representa uma notável contribuição à filosofia política no que diz respeito à qualificação do homem como um ser que realiza os seus mais altos fins na relação indissociável com a comunidade (polis) na efetivação de um bem comum.

Aristóteles desenvolve a tese de que o ser humano é um animal político é desenvolvida nos diversos aspectos como: o modo como esta é realizada na comunidade política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana, sobretudo, a amizade; a autossuficiência do cidadão e o seu vínculo com a autarquia da comunidade política. A retomada de um moderno conceito de comunidade, na tentativa de reatualizar os princípios gerais do comunitarismo aristotélico, pode ser compatível com determinadas teses liberais, sobretudo a questão da liberdade (autonomia) individual e o fato do pluralismo ético e político nas sociedades modernas.

Também é comum, o que a sociedade produz para a existência da comunidade, ou melhor, a produção social, as forças vivas que cobrem a terra de riqueza. 

É comum o conhecimento, as imagens, os códigos, a informação, os afetos e outros frutos do trabalho social (HARDT & NEGRI, 2018, p.8). 

Essa definição circinscreve o comum ao mesmo tempo em que o coloca como eixo do projeto político de superação do capital.

Sem interação social não há possibilidade de produção, pois trabalho é interação. Malgrado, a era neoliberal, com seus aparelhos ideológicos, lança um enorme véu sobre a realização do comum, o que dificulta a percepção da importância da interação social para a produção social. Ademais impõe a privatização do comum e do público como panaceia para os males produzidos pelo próprio capital globalizado. 

Consoante Michael Hardt & Antonio Negri: 
“As políticas neoliberais de governo em todo o mundo têm buscado nas últimas décadas privatizar o comum, transformando os produtos culturais – por exemplo, a informação, as ideias e até as espécies de animais e plantas – em propriedade privada. Sustentamos, fazendo coro a muitos outros, que é necessário resistir a essas privatizações” (HARDT & NEGRI, 2016, p.8). 

O ato de escavar o bem comum sob o manto da superfície neoliberal é fundamental para abrir caminho à desconstrução do direito formal que resulta em administração da justiça deslocada do conceito profundo de democracia como prática de justiça. Essencialmente, a promessa moderna de democracia é a república dos direitos sociais. O trabalho arqueológico é o de retirar camada por camada de terra com o objetivo de encontrar a substância, o bem comum, que revela a vida social que se encontrava soterrada. O bem comum é o que sustenta as instituições modernas. As instituições arregimentam discurso procurando demonstrar que são emanadas pelo interesse público. Não obstante, vivemos ordinariamente numa sociedade capitalista que se inclina à abstração da realidade social que é comum. A abstração do real é essencial ao processo de reprodução do capital, a transformação das forças vivas em trabalho morto torna opaca a substância comum partilhada por todos na existência cotidiana. Logo, as instituições comportam-se antes como aparelhos ideológicos do Estado do que agentes da realização dos direitos sociais e econômicos da sociedade. O discurso do bem comum, do interesse público produzido pelas instituições pairam no céu das esperanças modernas, ou seja, não brotam na terra concreta da democracia popular.

O bem-estar comum é o conceito para imaginar novas paisagens de resistência política.


Fonte


ARISTÓTELES. "Ética a Nicômaco". Tradução de Leonel Valandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Vol. IV: Os Pensadores.

OCASO DO CAPITALISMO

Dowbor vê o ocaso do capitalismo (1)

Por: Antonio Martins

Em livro no prelo, economista sustenta: exploração já não se dá como descrita por Marx. Um tecno-rentismo captura a riqueza dos 99% sem investir ou gerar trabalho. Mas é destrutivo, multiplica crises e abre brecha para novo projeto emancipatório.





Em seus últimos anos de vida, o sociólogo Immanuel Wallerstein, que morreu em 2019, anteviu o colapso do capitalismo. Autor da teoria dos sistemas-mundo, ele percebeu que a ordem eurocêntrica estava submetida a tensões às quais não resistiria – e julgou que, ao desabar, ela tornaria insustentáveis as lógicas do capital. Numa série de ensaios curtos, porém muito provocadores, Wallerstein, contudo, advertiu: não comemorem cedo demais. O sistema que se instalará sobre os escombros do atual, considerou, pode ser muito mais explorador, hierárquico e devastador da natureza que o atual. O contrário também é possível… As lutas sociais e políticas é que decidirão o desfecho.

O livro mais recente do economista Ladislau Dowbor, que começa a circular nos próximos dias, vislumbra esta mesma transição incerta, mas a aborda a partir de outro ponto de vista: o das relações econômicas e políticas. Suas hipóteses centrais são igualmente instigantes. O capitalismo está morrendo, diz o autor, porque seu modo de expropriar a riqueza social deixa de ser hegemônico. A indústria já não é o centro da criação de valor. Por isso, a exploração não pode ter como mecanismo principal a mais-valia extraída dos trabalhadores. E à medida em que este processo declinou, emergiu um outro: o rentismo contemporâneo. Por meio de uma série de mecanismos, uma elite cada vez mais reduzida captura a riqueza social sem investir, empregar ou produzir.

As consequências são devastadoras. Em todo o Ocidente, a desigualdade disparou a ponto de 26 bilionários concentraram mais riqueza que metade da humanidade. Parcelas cada vez mais vastas da população estão desempregadas, precarizadas ou desalentadas. A fome está de volta. As patentes bloqueiam o acesso das populações até mesmo às vacinas. Corporações sem rosto devastam a natureza e zombam do colapso climático sem sofrer danos. O novo sistema, mostra Ladislau, pode de fato despertar saudades do “velho” capitalismo.

Mas as engrenagens do novo horror são frágeis e vulneráveis. Apesar dos imensos avanços da tecnologia, as economias não crescem. Mesmo empanturrados de riquezas, os mercados financeiros permanecem sujeitos a crises prolongadas e potencialmente devastadoras. A instabilidade espraia-se para a política: as maiorias já não se sentem representadas pelos velhos sistemas partidários, que haviam garantido por décadas a coesão social e a legitimidade do sistema. Avançam tanto o rancor fascista quanto alternativas que propõem a superação do capitalismo.

O tempo delas pode ter chegado, sugere o livro de Ladislau Dowbor, intitulado Resgatar a função social da Economia. O fator principal para produção de riquezas não é mais a fábrica, mas o conhecimento. Trata-se de um bem não-rival – que pode ser reproduzido e compartilhado ao infinito, sem que seus detentores percam nada com isso. O último capítulo da obra propõe elementos para um projeto que permita distribuir a riqueza social, estabelecer nova relação com a natureza e transformar a política, nas condições do século XXI. Implica transformar a moeda e as finanças. Estabelecer a Renda Básica. 

Desprivatizar. Lançar um vastíssimo programa de investimentos públicos, suficiente para desmercantilizar Saúde, Educação e Habitação, além de renovar a infraestrutura e iniciar a conversão energética. Assegurar trabalho com direitos aos que desejem engajar-se nestas tarefas. Estabelecer a democracia participativa como mecanismo essencial de governo.

Aqui, a obra torna-se particularmente necessária ao Brasil contemporâneo. Ela mostra que a tendência ao fascismo pode ser revertida, desde a esquerda não ceda à tentação de salvar uma ordem em social em declínio. Ela precisa, ao contrário, se dar conta do enorme trabalho, político e teórico – que tem pela frente. Tornou-se possível, arrisca Ladislau, pensar uma sociedade fundada não mais sobre a competição e a exploração, mas em dinâmicas cooperativas. Mas as propostas para tanto diferem dos projetos socialistas do passado. A base material da produção de riquezas mudou radicalmente. Por isso, a ideia de superar as lógicas do capital tornou-se mais válida que nunca, mas os programas para realizá-la precisam ser totalmente repensados.

Crise da antiga forma de capturar a riqueza social. Emergência do rentismo contemporâneo. Devastação social e ambiental resultantes. Tendência a crises econômicas e políticas constantes. A alternativa da Colaboração. O livro de Ladislau é um guia para enxergar e começar de estudar o declínio do capitalismo, os riscos já visíveis de emergir um sistema ainda pior e as bases para construir, por meio da política, outra saída para a crise civilizatória. A seguir, uma breve antecipação de suas hipóteses principais.

I.
A tecnologia e as políticas que
produzem o rentismo contemporâneo

As teorias que marcaram o pensamento humano persistem por longo período, mesmo depois de se alterarem as realidades objetivas que elas descreviam. Desenvolvida por Marx, a ideia de que a mais-valia é extraída no processo de produção dos bens materiais, em especial na indústria, formou a esquerda por um século e meio. A partir dela, definiram-se projetos (como a estatização dos meios de produção), estratégias, visões sobre o “sujeito revolucionário” crucial (a classe operária), estruturas organizativas. Ladislau argumenta que esta forma de, exploração do trabalho já não é a principal. Não significa que tenha desaparecido, mas, sim, que as classes dominantes encontraram outros mecanismos, no momento mais efetivos, de capturar a riqueza social.

A mudança relaciona-se a outra descoberta de Marx, já no campo da filosofia política: a dialética entre as forças produtivas da sociedade e as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si. Estas últimas formam, na teoria marxista, “a estrutura econômica da sociedade”. Perduram por longas épocas. Estabeleceram, ao longo da História, distintas dinâmicas de opressão de uma pequena classe dominante sobre as maiorias. São, por exemplo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo. Já as forças produtivas – trabalho, tecnologia, fábricas, ferramentas, matérias-primas etc., estão em incessante transformação. Em determinados momentos, seu desenvolvimento avança tanto que as velhas relações de produção não são capazes de contê-las. Neste ponto, a estrutura econômica entra em xeque e, segundo Marx, “abre-se uma época de revolução social 1”

Como estas ideias realizam-se nas condições concretas de nosso tempo? A revolução tecnológica das últimas décadas sacudiu e transformou as forças produtivas em todos os setores da atividade humana, e não cessa de fazê-lo. Ladislau aponta, em outro livro recente 2, suas marcas principais. É possível resumi-las assim, empregando essencialmente as palavras do autor.

A base produtiva da humanidade está se deslocando de maneira radical e muito acelerada. (…) O conhecimento transformou-se no principal fator de produção. (…) A máquina continua importante, mas hoje o ser humano programa a sua operação. O que ele gera, fundamentalmente, são tecnologias, design, o chamado “imaterial”. Não é apenas a robótica, que penetra de forma acelerada em inúmeros setores. Surgem aplicações científicas inovadoras em praticamente todas as áreas: energia, transportes, medicina, educação, cultura, geração de novos materiais (…) Além disso, pela primeira vez todas as unidades de informação, letras, números, sons, imagens, podem ser digitalizadas. É possível receber, armazenar, tratar e articular volumes praticamente ilimitados de conhecimento. E a conectividade planetária permite tornar esse fator de produção disponível instantaneamente, em qualquer ponto do planeta.

Há algo muito especial nesta transformação. A centralidade do conhecimento e do imaterial abre, em teoria, espaço para uma socialização inédita da riqueza. Ladislau prossegue: “O principal fator de produção na economia contemporânea não é escasso. Não tem seu estoque reduzido pelo uso, pelo contrário, pode ser multiplicado indefinidamente”. Esta característica abala os alicerces da ideia de propriedade privada e, em especial, a lógica de competição e exploração onipresente no capitalismo.

Ocorre, porém, que esta mudança de época transcorreu, até o momento, em meio a condições políticas singulares. As forças que desejam superar o capitalismo foram batidas pela esclerose e posterior derrocada do “socialismo real”. A potência libertadora da produção baseada no conhecimento e no imaterial foi sequestrada pelas velhas lógicas. As classes dominantes já não podem extrair o mais-valor do trabalho como antes, porque a fábrica e as máquinas perderam protagonismo. Mas, em meio à emergência da ordem neoliberal, fazem-no ressuscitando e atualizando o velho rentismo – ou seja, a extração improdutiva da riqueza social, por meio de mecanismos de intermediação. Por isso, autores como Cédric Durand e Ellen Brown a veem como uma espécie de tecnofeudalismo.

Ladislau aponta com precisão cirúrgica o caráter predatório das relações sociais que derivam deste paradoxo.

Na fase anterior, o capitalista, para enriquecer, precisava pelo menos produzir e gerar empregos, e inclusive pagar impostos, o que enriquecia a sociedade. Na fase que se inaugura no final dos anos 1970, o capitalista descobre que os mecanismos financeiros podem garantir enriquecimento com muito menos esforço, e sem tantos constrangimentos. (…)

Em seu livro anterior, O capitalismo se desloca, ele já havia chamado atenção para a irracionalidade do processo:

Em vez de produzir mais para ganhar mais, o capitalismo passa a buscar formas artificiais de gerar escassez para ganhar dinheiro e combater os processos decentralizados e colaborativos de multiplicação da riqueza. O sistema inverte os valores. Proibir o livre acesso ao livro ou ao filme que poderiam ser acessados online tornou-se fundamental.

Mas quais as formas concretas por meio dos quais esta criação artificial de escassez se realiza, e permite concentrar tantas riquezas? É o que veremos a seguir.

(continua)

1.Ler, a este respeito o prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política
2.O Capitalismo se Desloca, Edições Sesc, 2021, Capítulo I




Por Antonio Martins

O conhecimento substituiu a fábrica, como motor principal da produção de riquezas, afirma o economista. Mas mudança está permitindo a uma pequena elite apropriar-se do trabalho coletivo. Que mecanismos permitem fazê-lo?

II. 
As novas formas de extração da riqueza social

Entre as dez empresas ocidentais de maior valor de mercado em 2022, apenas duas, Toyota e Samsung, são industriais, segundo a revista Forbes. Dos dez bilionários com maior riqueza acumulada, somente dois, Elon Musk e Bernard Arnaut, concentram parte de seus recursos na atividade produtiva, por sinal produzindo bens de luxo. E no topo da pirâmide do novo sistema estão três fundos gigantes de intermediação financeira. Black Rock, Vanguard e State Street têm, somados ativos equivalentes ao PIB dos EUA (US$ 21,5 trilhões), e quatro vezes superiores ao orçamento federal norteamericano. Sozinho, o Black Rock tem poder de investimento cinco vezes superior ao PIB do Brasil.

Os dados bastam para sugerir o quanto migraram, da indústria para as finanças – os mecanismos de captura e concentração da riqueza global. Mas em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor não se limita a enunciar fórmulas genéricas. Ele faz questão de descrever, um a um, os processos que substituíram a produção industrial e agora drenam o trabalho e os conhecimentos de toda a sociedade para uma pequena minoria. O exame atento confirmará que se trata de criações políticas. Os processos eram residuais ou subalternos ao capitalismo industrial, antes da era neoliberal. Tornaram-se dominantes num contexto em que uma pequena elite sentiu necessidade de substiuir a antiga forma de extração do mais-valor pelo apoderamento improdutivo da riqueza. Eis alguns destes mecanismos, descritos em mais detalhes em Resgatar a função social da economia.


Endividamento generalizado

77% das famílias brasileiras estavam endividadas em julho de 2022. No mesmo mês, a inadimplência quebrou um recorde histórico: 66,8 milhões de pessoas não foram capazes de se manter em dia com seus débitos. O número de empresas inadimplenteschegou a 6 milhões. “Grande parte da humanidade trabalha para alimentar intermediários financeiros, afirma Ladislau, citando dados do Brasil sobre a punção da riqueza coletiva que isso representa. Já em 2016, R$ 1 trilhão, ou 16% do PIB brasileiro de então, foram transferidos aos bancos, a título de juros. Somados aos 6% do PIB pagos pelo Estado brasileiro aos detentores da dívida pública, perfaziam uma captura, pela oligarquia financeira, equivalente a mais de 1/5 das riquezas produzidas no país.

Esta apropriação foi maximizada pelas políticas neoliberais. Elas reduziram a capacidade dos Estados de emitir moeda para fazer investimentos produtivos mas ampliaram, ao mesmo tempo o poder de emissão dos bancos privados. “Os bancos hoje emitem dinheiro. O papel-moeda impresso pelos governos representa, como ordem de grandeza, 3% da liquidez. Os 97% constituem apenas anotações nos computadores, dinheiro virtual emitido pelos bancos, frisa o livro, ecoando, entre outros, um estudo do Bank of England.


Dividendos, ganhos financeiros e especulação imobiliária

Ao longo de 2021, a Petrobras – uma empresa estatal que, em teoria, deveria agir em favor dos interesses nacionais – transferiu a seus acionistas R$ 101 bilhões, na forma de dividendos Hoje, 63,4% do capital está em mãos privadas e desta parte 70% pertence a estrangeiros (em geral megafundos como o BlackRock). Os lucros da empresa foram obtidos, essencialmente, extraindo do subsolo o abundante petróleo brasileiro e vendendo-o com margem descomunal aos consumidores. Enquanto premiava este tipo de acionistas, a Petrobras reduziu seus próprios investimentos, em 2021, a US$ 8,7 bilhões, menos de 1/5 do que haviam sido em 2013. As políticas neoliberais a transformaram numa “vaca leiteira dos mercados”.

E esta máquina de capturar a riqueza comum e transferi-la a uma aristocracia financeira é alimentada com dinheiro público, sempre que para de girar. Tanto na crise de 2008 quanto na de 2019, os bancos centrais emitiram, a partir do nada, cerca de 30 trilhões de dólares, para evitar que os cassinos globais secassem. Eram recursos negados à Saúde, à Educação ou à infraestrutura, sob pretexto de preservar a “disciplina fiscal”. E a folia não cessou, quando os riscos de colapso financeiro passaram. Os bancos centrais mantêm, até hoje, as políticas de quantitative easing, por meio das quais seguem produzindo montanhas de dinheiro e despejando nos mercados, supostamente para “estimular as economias”. Como se verá adiante, o objetivo nunca é alcançado, inclusive porque os muito ricos entesouram o dinheiro que ganham, ao invés de fazê-lo circular. Mas a minoria beneficiada agradece, e, entre outras “aplicações”, utiliza os recursos recebidos para alimentar a especulação imobiliária global, que torna o custo dos imóveis e aluguéis cada vez mais proibitivo…


Plataformização das economias e do trabalho

A intermediação do dinheiro, da comunicação, do conhecimento e da informação pessoal transformou-se numa fonte de ganhos bilionários às custas do conjunto das sociedades, prossegue Ladislau. Ele refere-se a plataformas como as que gerenciam motoristas, entregadores e um conjunto cada vez maior de atividades profissionais. Mas também ao oligopólio que controla os pagamentos com cartões de crédito e débito e drena entre 2,5% e 5% de cada operação comercial. E, em especial, a gigantes que passaram a controlar a internet como Alphabet (Google) e Meta (Facebook), e a mercantilizar via publicidade o conteúdo produzido por bilhões de pessoas.

Em todos estes casos e em muitos outros, o caráter de punção social é evidente e as somas envolvidas, cada vez mais astronômicas. As corporações envolvidas nada produzem. Apenas empregam seu poder econômico gigantesco para criar serviços que se tornam obrigatórios, por constituírem o chamado “monopólio de demanda”: não é possível comunicar-se efetivamente sem recorrer a eles. E só podem fazê-lo porque a própria internet tem sido convertida em território de mercantilização intensa – o oposto exato da rede para livre circulação de conhecimento com que sonharam seus criadores.


Mercantilização da vida e das redes de infraestrutura

Um dos movimentos cruciais do neoliberalismo foi o desmonte do estado de bem-estar social. Ele abriu espaço, em todo o mundo, para que proliferassem corporações que transformam o que antes foi direito de todos em mercadoria. É a penúria da Educação pública que permite a grupos internacionais como Kroton, Laureat, Pearson, ou brasileiros como Eleva (de João Paulo Lehman) e Estácio obter enormes lucros com o ensino-mercadoria que oferecem. É o subfinancimento do SUS que leva dezenas de milhões de pessoas a contratarem planos de saúde de conglomerados como Amil (United Health), Internetica-Notre Damme (Bain Capital), ou Qualicorp e Prevent Senior. É é a privatização das empresas telefônicas, das distribuidoras de energia elétrica e Eletrobras, das empresas de gás canalizado; ou a venda planejada dos Correios e das companhias estaduais e municipais de saneamento que cria monopólios privados incontornáveis. Em todos os casos, serviços que deveriam ser oferecidos pelo Estado, sem objetivo de lucro, são convertidos em instrumentos de punção da riqueza social.


Patentes e “Propriedade intelectual”

Alguns milhões de pessoas morreram de covid-19 desnecessariamente, entre 2020 e 2022, porque as vacinas demoraram a chegar aos que mais necessitavam – e ainda hoje faltam para 40% do população do planeta. Embora mais silenciosa (por se concentrar agora em países pobres), a AIDS continua matando 850 mil ao ano, quando já há medicamentos capazes de impedir os óbitos ou reduzi-los dramaticamente. Tais mortes não são uma fatalidade, mas um evento necessário para que um punhado de empresas farmacêuticas possa lucrar muito com a restrição artificial à circulação do conhecimento científico.

São também o resultado de decisões políticas. Nas décadas posteriores à II Guerra Mundial, as patentes farmacêuticas foram banidas por motivos humanitários evidentes. Sua reintrodução deu-se ao longo da década de 1990, como parte do processo de “liberalização” que culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio. Em Resgatar a função social da economia, Ladislau sustenta que as patentes e a proteção da “propriedade intelectual” tornaram-se, em todos os setores, um entrave, uma forma de geral feudos tecnológicos e multiplicar lucros para muito poucos, fabricando escassez para as multidões. Ele cita Mariana Mazzucatto, que demonstrou, em O Estado Empreendedor, o papel central que a pesquisa pública desempenhou no desenvolvimento de invenções das quais mais tarde as empresas privadas se apropriaram. A lista vai das vacinas contra a covid aos microchips; dos HDs e memórias dos computadores às telas touch hoje presentes em cada celular.

Evasão de impostos e paraísos fiscais

O sistema tributário brasileiro é tão injusto e comporta absurdos tão flagrantes (como a inexistência de impostos sobre dividendos), que muitas vezes parece ser um “jabuticaba”, presente apenas no país. Ladislau demonstra que não. Uma das características das políticas fiscais adotadas em todo o Ocidente, nas décadas do neoliberalismo, foi a redução generalizada dos impostos pagos pelos mais ricos e pelas corporações, a pretexto de “estimular os investimentos”. Nos EUA, por exemplo, toda a valorização de imóveis e outros ativos é isenta, até o momento em que são vendidos. Esta norma permitiu ao bilionário Warren Buffett – um dos dez homens mais ricos do mundo, aumentar sua riqueza em US$ 24 bilhões, entre 2014 e 2018 e pagar apenas US$ 23,7 milhões em impostos, no mesmo período. “Uma alíquota efetiva de 0,1%…”, destaca o livro.

A redução de impostos é, na prática, a permissão para que os mais ricos apropriem-se de uma vasta parte da riqueza coletiva. E é agravada pela proliferação dos paraísos fiscais, outra marca da globalização comandada pelo capital. Para reduzir a quase nada os tributos que paga em todo o mundo, a Microsoft “transfere” seus lucros, por meio de artifícios contábeis, para a Irlanda, onde uma de suas subsidiárias permaneceu isenta em 2020, mesmo lucrando US$ 314,7 bilhões. E um estudo da revista Economist avaliou que em torno de 40% dos lucros das multinacionais são “transferidos” para países de impostos baixos.


* * *

Em lugar da mais-valia extraída nas fábricas, uma nova classe dominante, ainda mais minoritária que a velha burguesia industrial, criou mecanismos financeiros para capturar o suor de toda a sociedade. Mas este rentismo contemporâneo, tão capaz de concentrar riquezas, seria ao mesmo tempo estável? No próximo texto, veremos que não – e por quê.



Dowbor vê o ocaso do capitalismo (3)

Por Ladislau Dowbor


Para concentrar riquezas, o tecno-rentismo instala catracas e impede a potência produtiva da sociedade. Mas aí está também sua fraqueza. A economia arrasta-se, as crises financeiras sucedem-se e a política vive instável permanente

No tempo do capitalismo industrial, um tema que fascinou de modo permanente os estudiosos do sistema foram suas crises. Karl Marx foi pioneiro também em explicá-las, ao apontar que elas originavam-se de uma contradição fundamental. A produção de riquezas era cada vez mais socializada, à medida em que a industrialização espraiava-se pelo mundo e incorporava novos contingentes de trabalhadores. Mas a apropiração dos bens produzidos mantinha-se privada e cada vez mais concentrada. Por isso, abria-se aos poucos um fosso entre o imenso volume de mercadorias produzidas e a incapacidade das sociedades para consumi-las. Em certo ponto, eclodia uma crise de superprodução. As fábricas e seu maquinário tornavam-se inúteis. Era preciso destruir o capital existente – ou, fisicamente, por meio de guerras, ou com o advento de novas tecnologias, que exigissem o descarte e renovação das estruturas de produção anteriores.

Em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor mostra que também esta dinâmica mudou, na era do tecno-rentismo contemporâneo. As crises de superprodução persistem, como demonstra a “Grande Recessão” iniciada em 2008. Mas a elas sobrepõe-se um novo fenômeno, que o livro analisa em detalhes: o desperdício das estruturas de produção existentes. É algo que resulta da próprianatureza do novo sistema. Agora, como se viu, os lucros derivam em grande parte da criação artificial de escassez. Ou seja: para que uma minoria cada vez mais ínfima continue a concentrar riquezas, é preciso instalar catracas por toda a parte e impedir que a potência produtiva da sociedade se realize. As novas tecnologias permitem que o conhecimento mais avançado esteja disponível para todos. Mas o caso de Aaaron Swartz, um gênio precoce da programação e do ativismo digital, é emblemático. Ao tentar compartilhar a biblioteca virtual do MIT, uma das principais universidades dos EUA, ele foi preso, implicado num processo que poderia resultar em 35 aos de cárcere e levado ao suicídio, aos 26 anos.

A obsessão do novo sistema em restringir o desenvolvimento do Comum também pode ser observada em outros fenômenos, menos pontuais mais igualmente grotescos. No Brasil, a Emenda Constitucional 95 proibiu o Estado de ampliar os investimentos sociais por duas décadas, ignorando a premência do combate à pobreza, a relevância dos serviços de Saúde e Educação e até o crescimento vegetativo da população. Alegou-se “disciplina fiscal”. Mas não há nenhum limite ao desperdício de dinheiro público com o pagamento, pelo Estado, de juros (os mais altos do mundo) à oligarquia financeira.

Porém, também aqui não se trata de uma jabuticaba brasileira. O bloqueio à produção de vacinas contra à covid, em meio a uma pandemia, é ultrajante e exemplar. A partir de 2020, África do Sul, Índia e movimentos ligados à Saúde Pública em todo o mundo tentaram obter, da Organização Mundial do Comércio (OMC) licença provisória para produzir os imunizantes enquanto durasse a emergência sanitária. Em janeiro de 2022, um estudo demonstrou que havia mais de cem laboratórios na Ásia, América Latina e África preparados para produzir as vacinas, num momento em que, no Sul global, 92% da população estava desprotegida. Mas o que teria sido uma oportunidade, na época do capitalismo industrial, foi visto como ameaça. A OMC mantém até hoje a proibição.

No capítulo III de Resgatar a função social da economia, Dowbor lança um olhar sobre o imenso desaproveitamento de capacidades produtivas que caracteriza o novo modo de captura da riqueza coletiva. O mais dramática é o do trabalho. “Um sistema cuja principal forma de se apropriar do excedente social se dá por meio de rentismo improdutivo, precisa cada vez menos de força de trabalho para ter quem explorar” resume o autor. E aponta como exemplo o Brasil. Das 106 milhões de pessoas que compõem a população em idade de trabalhar, apenas 44 milhões (42%) têm emprego formal na iniciativa privada (33 milhões) ou no setor público (11 milhões). Enquanto isso, há 15 milhões de desempregadas e 40 milhões que “se viram” em ocupações informais, na maioria das vezes precárias.

E não se trata apenas de percentuais. A era em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção deveria ser a do trabalho mais qualificado, menos penoso e realizado em jornadas mais leves. Mas a ultraconcentração da riqueza social nas mãos de uma oligarquia mínima produz o efeito oposto. Multiplicam-se os trabalhos exaustivos e degradantes, as jornadas que se prolongam após o expediente, a obrigação de estar permanentemente à disposição da empresa (e do algorítimo), a ausência de direitos e garantias.

Num livro publicado este ano (Automation is a Myth), o sociólogo neozelandês Luke Munn ajuda a desvendar como a plataformização está transformando para muito pior o mundo do trabalho. Por trás dos processos dos “sistemas automatizados”, diz ele, há um contingente cada vez maior de trabalhadores precários. Não são apenas os motoristas ou empregadores de aplicativos, mas também os dezenas milhões que atuam na captura (quase sempre sub-reptícia), de dados pessoais, no tratamento e uniformização destas informações (que em seguida alimentarão máquinas e sistemas), na moderação de conteúdos das redes sociais ou em atividades mais antigas e banais, como os serviços de assistência ao cliente. 
A automação não remove o trabalho humano, diz Munn, mas elimina “o trabalhador pleno, com pagamento integral, com plenos direitos. O sistema não almeja o “fim do trabalho”, e sim “submissão total dos assalariados às plataformas e à inteligência artificial”. Por isso, “a precarização não é mero acidente”.

Mas não se desperdiça apenas trabalho. A inibição da capacidade de produzir, por um sistema que ganha instalando catracas e criando escassez, atingem também a terra (urbana e rural), as políticas públicas, o potencial científico e… o próprio capital. Dowbor examina cada um destes processos.

A área agricultável não pode estar disponível para todos, ou os poucos que a controlam perderão seus privilégios, mostra o livro. Por isso, resiste-se tanto à reforma agrária num país como o Brasil, em que há 225 milhões de hectares disponíveis (já excluídas as florestas, os demais biomas protegidos e as áresa onde não há solos adequados ou água suficiente) e apenas 63 milhões (26%) são usados para lavouras. O restante (160 milhões de ha., ou cinco Itálias) está reservado para especulação ou destinado à pecuária extensiva. Aqui, as lógicas pré=capitalistas (o privilégio de posse da terra, como forma rentista arcaica) entrelaça-se com o rentismo contemporâneo, uma aliança visível na articulação do agronegócio com o desmatamento, a grilagem de terras pública e os grandes traders internacionais de commodities.

As políticas públicas e o investimento do Estado, que seriam cruciais pra renovar a Saúde e a Educação Pública, construir cidades humanizadas e para todos ou oferecer infra-estrutura moderna, estão constrangidas pela ideologia da disciplina fiscal. Em consequẽncia, impõem-se as lógicas da mercantilização e do privilégio: os serviços de qualidade são oferecidos apenas aos que pagam, precisamente para que gerem lucros.Embora seu alvo principal sejam as maiorias, esta restrição acaba atingindo também as classes médias.

Os serviços públicos e a renovação da infraestrutura poderiam oferecer ocupações dignas e estimulant para gerações de profissionais de formação superior hoje à margem. De engenheiros e economistas a assistentes sociais; de psicólogoa a planejadores e ambientalistas; de sociólogos a biólogos e geólogos. Mas o estreitamento destas possibilidades leva ao desperdício dopotencial científico e obriga um enorme contingente de pessoas bem formadas a aceitar ocupaçẽos muito abaixo das habilidades que poderiam exercer, e quase sempre inseguras e precárias.

O desaproveitamento do capital é a dimensão mais surpreendente reportada por Dowbor. Mesmo nas condições de desigualdade extrema existentes no Brasil, seria possível direcionar a riqueza acumulada pelas elites econômicas para atividades produtivas. Mas as dinâmicas atuais conduzem ao contrário: os “investimentos” mais rentáveis para o dinheiro sobrante são os que o conduzem à espeuclação rentista. “O grande dinheiro se divorciou em grande parte dos processos produtivos. E o capital vai para onde rende mais”, lembra Dowbor.

* * *

Esta dinâmica de degradação do trabalho e da natureza em favor de uma oligarquia cada vez mais reduzida multiplica fortunas, mas tem meios para se reproduzir? Resgatar a função social da economia sugere que não. As próprias taxas de evolução do PIB, mostra o livro, são agora medíocres. Parece inacreditável, mas o imenso avanço tecnológico das últimas décadas não foi capaz sequer de garantir o crescimento das economias. É como se, um século e meio depois, a maldição de Marx se impusesse: enquanto não resolverem o nó da desigualdade, as sociedades viverão sob o fantasma das crises.

Quando virá o próximo colapso dos mercados financeiros? Esta pergunta perturba todos os dias as novas oligarquias. Beneficiárias de uma transferência maciça de recursos públicos, elas intuem que, em algum momento, não será possível mais sustentar a captura do trabalho social. Nesse ponto, a pirâmide desabará.

* * *

Um de seus flancos frágeis é o da política. O velho centro liberal, que dava estabilidade às instituições e mantinha as sociedades coesas em torno da velha ordem capitalista, está ameaçado. Cresce o descrédito da democracia, vista por muitos, entre as maiorias, como mero teatro para maquiar as desigualdades e ocultar os bastidores do poder, onde as elites fazem seus negócios. Surgem, em especial nas antigas classe médias decaídas, o ressentimento e o desejo de fazer tudo voar pelos ares.

Mas o declínio dos partidos que defendem as velhas lógicas de dominação seria necessariamente má notícia? O último capítulo do livro de Ladislau sugere que não. O autor já não se contenta em afirmar que surgiram bases materiais para sociedades baseadas na colaboração. Ele aponta eixos para as mudanças políticas que poderão abrir a transição para uma nova ordem social. É o que veremos no último texto desta série.



Fontes











06 setembro 2022

A TRAGÉDIA E A FARSA



A OBRA EM QUE KARL MARX CONCLUIU QUE A HISTÓRIA ACONTECE COMO TRAGÉDIA E SE REPETE COMO FARSA

Ao acompanhar o golpe de Estado que levou Napoleão III ao poder, na França do século 19, Marx chegou a uma perturbadora conclusão


Publicado em 21/12/2020


Como uma obra se torna um clássico? No caso dos livros de história, alguns são elevados a essa categoria porque trazem uma pesquisa de fôlego e uma descrição reveladora da realidade.




Karl Marx

…Outros viram referência porque, além da força da análise, criam um método novo e revolucionário para a compreensão da história. O 18 Brumário de Luís Bonaparte pertence ao segundo tipo. Seu autor é o alemão Karl Marx, filósofo, sociólogo, historiador e economista que nasceu na cidade de Trier, em 1818, e ficou eternizado como o grande teórico do comunismo. Publicado em 1852, o texto descreve um golpe de Estado recém-ocorrido na França. Carlos Luís Napoleão Bonaparte, eleito presidente do país em 1848, resolveu impor uma ditadura três anos depois. A data escolhida para o golpe foi 2 de dezembro de 1851, aniversário de 47 anos da coroação de seu tio, o general e estadista Napoleão Bonaparte, como imperador da França. Essa repetição de Napoleões no poder inspirou Marx a formular a célebre frase com que abre seu texto, citando outro importante filósofo alemão: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. A ironia de Marx está presente até no título do livro. Anos antes de se tornar imperador, o primeiro Napoleão também havia dado um golpe de Estado, em 9 de novembro de 1799, com o qual se tornou cônsul da França. No curioso calendário que o país havia adotado após a revolução de 1789, essa data correspondia ao dia 18 do mês de brumário. Ao chamar a obra de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx indica que o golpe dado por Napoleão III era apenas uma cópia daquele que fora dado antes por seu célebre tio. Apesar de ter ficado famosa, essa forma de olhar para as “coincidências” históricas, em que a nova versão se transforma em caricatura, não é a ideia principal de Marx no texto. O que ele fez de mais revolucionário foi perceber, analisando aqueles fatos que haviam acabado de acontecer, que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Ou seja: apesar de serem atores da história, as pessoas só são capazes de agir nos limites que a realidade impõe. Os atos individuais não ocupam papel central na visão de Marx. Para ele, o motor da história é a luta entre as classes sociais, responsável por produzir as transformações mais importantes. De um lado, estão sempre os dominadores. De outro, sempre os dominados. Os primeiros são os que detêm os “meios de produção” (terra, propriedade privada, máquinas, indústrias etc.). Já os segundos são aqueles que só possuem a própria força de trabalho e que, para sobreviver, são forçados à servidão. Na Antiguidade, esse posto tinha pertencido aos escravos. No feudalismo, aos servos. Já no capitalismo, essa classe é formada pelos trabalhadores assalariados – o chamado proletariado, que vende sua força de trabalho para a burguesia. Ao contemplar sua própria época, Marx via um confronto revolucionário no horizonte, provocado por essa distribuição injusta das posses, opondo os burgueses aos proletários. Nem era preciso olhar muito longe para entender que sua interpretação da história fazia bastante sentido. Para os pensadores do século 19, a Revolução Francesa era a grande referência. Segundo Marx, ela marcou a mudança de posição da burguesia no grande jogo. Voltando no tempo, essa classe social já tinha sido revolucionária, quando seus interesses econômicos, que se expandiam pelo menos desde o fim da Idade Média, encontraram no parasitismo da nobreza um enorme empecilho. Ao derrubar a monarquia, a burguesia foi se transformando aos poucos, em toda a Europa e depois no resto do mundo, na nova classe dominante. Assim, deixou de ser revolucionária e se tornou conservadora, preocupada em manter a ordem vigente. Depois da ascensão da burguesia, o proletariado tomou seu lugar como classe oprimida e, portanto, potencialmente revolucionária. Nessa nova situação, ficou ainda mais claro que todo processo de acumulação de riqueza exige, para se concretizar, uma usurpação. Para que existam ricos, é necessário que existam pobres – esse é, simplificadamente, o raciocínio que Marx aplica a toda a história. Difícil é discordar dele.

Intuições

Três anos antes de publicar O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx escrevera, na companhia de seu amigo Friedrich Engels um panfleto intitulado Manifesto do Partido Comunista. Nele, os dois explicam de forma resumida suas principais intuições sobre a dinâmica da história e interpretam as grandes transformações impostas pela burguesia. Segundo eles, para vender seus produtos, a burguesia precisava “instalar-se em todos os lugares, acomodar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares”. Por causa disso, prosseguem, “a burguesia, através de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países”. Raciocínios como esse, de extrema lucidez, se mantêm atualíssimos sem que seja preciso alterar uma vírgula sequer. O que era fato em 1848 ainda existe. Apesar de ser um tanto complexo para o leitor atual, o texto pretendia explicar para as massas de trabalhadores a estratégia de dominação usada pela burguesia para se perpetuar no poder. Esse “esclarecimento” era parte de um programa revolucionário: consciente de sua situação, o proletariado teria enfim condições de se rebelar contra a burguesia. Seriam, mais uma vez, os dominados se voltando contra os dominadores. A revolução proletária seria um grande passo para que se adotasse o comunismo, regime político que acabaria com a propriedade privada e com as classes sociais.

Conceitos

Os conceitos lançados no Manifesto do Partido Comunista também estão presentes em O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Mas, dessa vez, o desafio era interpretar acontecimentos recentes e bem conhecidos a partir de teorias que ainda estavam em formação. Ao analisar o golpe, Marx estava testando a solidez de suas ideias. E o que ele fez foi demonstrar que a atitude do sobrinho de Napoleão tinha sido apenas um resultado natural, quase previsível, dos rumos que a história da França estava tomando desde a revolução de 1789.

Ao falar da França de meados do século 19, Marx descreve toda a estratégia política, militar e institucional da burguesia francesa como um processo em que ela toma para si algo que, supostamente, deveria ser de todos: o Estado. Se Napoleão Bonaparte tinha imposto um Estado forte, imperial e expansionista, ele o fez não em benefício do povo, mas a serviço de uma só classe, a burguesia. Essa havia sido a “tragédia”. A “farsa” veio quando Luís Bonaparte, com um golpe de Estado, se transforma em Napoleão III. Para conseguir o poder, ele foi beneficiado por alianças entre partidos burgueses – o que, segundo descreve Marx, significou trair as lideranças proletárias e tirá-las do governo.

Imenso tabuleiro

A engenhosa argumentação de O 18 Brumário de Luís Bonaparte descreve a democracia como um imenso tabuleiro, em que os interesses de diferentes classes são manipulados sob o mecanismo de representação do povo por políticos, uma fórmula normalmente tida como justa. Depois de ler o livro, é difícil deixar de perceber que essa forma de governo, presente até hoje, oculta uma imensa engenharia de pequenos acordos. Olhando desse modo, as repúblicas modernas, aparentemente legítimas, serviriam apenas aos burgueses.

Ao falar de Napoleão III, Marx constrói a imagem de um herói de araque posando com a fantasia de grande estadista, governando em nome da dominação da burguesia sobre as outras classes. Segundo disse o amigo Engels ao escrever o prefácio da obra, 30 anos após seu lançamento, “essa notável compreensão da história viva da época, essa lúcida apreciação dos acontecimentos ao tempo em que se desenrolavam, é, realmente, sem paralelo”. De fato, é impressionante como Marx foi capaz de olhar um momento específico e tirar dele uma explicação consistente para o modo como a política é feita no capitalismo. O modelo dos golpes napoleônicos estava pronto para muitos que vieram depois. E, desde então, a história continua a se desenrolar cada vez menos como tragédia e quase sempre como farsa.



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A análise que Marx faz do processo de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte antecipa a dinâmica da sociedade burguesa tardia: a liquidação do seu período liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura. A república parlamentarista se transforma num aparato político-militar encabeçado por um líder “carismático” que tira das mãos da burguesia as decisões que essa classe não consegue mais tomar e executar por suas próprias forças. Simultaneamente sucumbe, nessa fase, o movimento socialista: o proletariado sai de cena (por quanto tempo?). Tudo isso já é século XX – mas é século XX na perspectiva do século XIX, que ainda não conhece o horror do período fascista e pós-fascista. 

Esse horror exige uma correção das sentenças introdutórias de O 18 de brumário: os “fatos e personagens da história mundial” que ocorrem, “por assim dizer, duas vezes”, na segunda vez, não ocorrem mais como “farsa”. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue. A república parlamentarista incorre numa situação em que só resta uma escolha à burguesia: “Despotismo ou anarquia. Ela naturalmente, optou pelo despotismo”. Marx conta a anedota do Concílio de Constança, segundo a qual o cardeal Pierre d’Ailly respondeu aos defensores da reforma dos costumes: “O único que ainda pode salvar a Igreja católica é o diabo em pessoa e vós rogais por anjos”. 

Hoje nem mesmo o desejo de que os anjos intervenham continua na ordem do dia. Mas como se chegou a essa situação em que a sociedade burguesa só pode ainda ser salva pela dominação autoritária, pelo exército, pela liquidação e traição das suas promessas e instituições liberais? 

Tentemos resumir o universal que Marx torna manifesto em toda parte nos acontecimentos históricos particulares. 

“A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização, que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado “socialistas””.

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes1 . Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière como Danton, Luís Blanc como Robespierre, a Montanha de 1848-51 como a Montanha de 1793-952 , o sobrinho como o tio. E essa mesma caricatura se repete nas circunstâncias que envolvem a reedição do 18 de brumário3 ! Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. Assim, Lutero se disfarçou de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 se travestiu ora de República Romana ora de cesarismo romano e a revolução de 1848 não descobriu nada melhor para fazer do que parodiar, de um lado, o ano de 1789 e, de outro, a tradição revolucionária de 1793-95. Do mesmo modo, uma pessoa que acabou de aprender uma língua nova costuma retraduzi-la o tempo todo para a sua língua materna; ela, porém, só conseguirá apropriar-se do espírito da nova língua e só será capaz de expressar-se livremente com a ajuda dela quando passar a se mover em seu âmbito sem reminiscências do passado e quando, em seu uso, esquecer a sua língua nativa. A análise das referidas conjurações de mortos da história mundial revela de imediato uma diferença que salta aos olhos. Foi com o fi gurino romano e a fraseologia romana que os heróis Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, mas também os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, enfrentaram a missão da sua época, a saber, a de desencadear e erigir a moderna sociedade burguesa. Os primeiros trilharam o terreno feudal e ceifaram as cabeças feudais que nele haviam crescido. O último criou, dentro da França, as condições que possibilitaram o desenvolvimento da livre concorrência, a exploração da pro priedade fundiária parcelada, a liberação da força produtiva industrial da nação, e, fora das fronteiras francesas, varreu do mapa todas as instituições feudais na medida em que isso se fez necessário para propiciar à sociedade burguesa da França um ambiente atualizado e condizente no continente europeu. Mas uma vez erigida a nova forma social, desapareceram os colossos antediluvianos e o romanismo que com eles havia ressurgido – os Brutus, Gracos, Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César.  




ESCÓLIO





A análise de classe, isto é, a análise que pretende entender os fenômenos sociais e políticos a partir das relações entre classes sociais situadas no processo produtivo, é um dos pilares teóricos do marxismo. Uma das tarefas da análise de classe, segundo Ralph Miliband, é “demonstrar as estruturas e os mecanismos exatos de dominação e exploração” nas sociedades humanas (1996: 483). Para ser mais específi co, o marxismo tem como obrigação não apenas identifi - car as relações de exploração que se estabelecem, ao longo da história, entre produtores e proprietários dos meios de produção, mas, também, na medida em que atribui às relações de classe a condição de princípio estruturador da totalidade social, analisar os “mecanismos de dominação” por meio dos quais as classes atuam na política. Nesse caso, o problema teórico fundamental, para usar as palavras de Przeworsky, “resume-se em saber como um grupo de indivíduos ocupantes de lugares torna-se uma coletividade em luta para a realização de seus interesses” (1989: 86).

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O uso de O 18 Brumário não se deve a uma excentricidade acadêmica. Acredito que essa obra se constitui em uma espécie de súmula que condensa todas as difi culdades inerentes à análise de classe da política1 e, a meu ver, ainda presentes na literatura marxista contemporânea, como se pretende mostrar no decorrer deste trabalho. Nesse sentido, o objetivo mais geral deste texto é ver como a literatura contemporânea enfrentou o problema teoricamente fundamental para a análise política de classe, isto é, o problema de pensar a classe como ator político e não apenas como um lugar objetivo nas relações de produção. Para tanto, o artigo está dividido em cinco partes. Na primeira, o objetivo é descrever e analisar as passagens de O 18 Brumário que enunciam algumas proposições fundamentais acerca da análise política de classe, apresentando, logo em seguida, uma síntese das principais críticas a essas proposições, notadamente aquelas elaboradas por Mancur Olson. Na segunda parte, pretendo mostrar que a literatura marxista contemporânea não resolveu o problema central que consiste em saber como é possível pensar a classe como “ator político”, apesar de algumas tentativas nessa direção. As terceira e quarta partes do texto discutem algumas perspectivas alternativas de análise política (classistas e não classistas) ao marxismo, buscando identifi car suas contribuições e críticas à análise de classe. 




Fonte








A VERDADE


 

Há uma visão, tanto à direita quanto à esquerda, que procura empurrar todos os malogros eleitorais para à direção da consensual ignorância dos pobres brasileiros. Erro. É o sofrimento que faz dos marginalizados, corpos profundos e cientes da banalidade do mal.


05 setembro 2022

VINHO POEME

 




Vinho POEME


Blend a partir de duas das mais importantes castas francesas, da região do Languedoc. Essa região do sudoeste da França tem 200 km de praias mediterrâneas, com uma brisa marítima que livra as uvas de muitas doenças , garantindo cachos saudáveis. 

O vinho Poeme Grande Réserve é complexo e maduro, com acidez média, o q no Brasil pode se classificar como quase suave. Frutas vermelhas e pretas maduras se mesclam a notas de pimenta e toques florais e defumados, neste agradável e gastronômico tinto do Languedoc. 

Este complexo vinho tinto harmoniza com carnes vermelhas grelhadas e assadas com molhos intensos, preparações a base de carnes de caça, carnes suínas, além de preparações do mediterrâneo, pratos à base de cogumelos, embutidos e queijos maduros. 750 ml, teor alcoólico de 13,5%.