A IMAGEM HISTÓRICA DA MORTE DA JUSTIÇA
Muitas vezes a justiça foi morta pelo acovardamento de seus integrantes, ou por pressão externa de grupos poderosos que tentam sempre obter as benesses de julgamentos a seu favor. Nosso pais é exemplar nesse segundo tipo de morte. A justiça morre assassinada de tempos em tempos. Mas agora, em tempos de obscurantismo e neofascismo declarado, em que as próprias igrejas ditas cristãs se perfilam para pressionar a justiça e assim fazer que os juízes joguem a nossa Sagrada Constituição Cidadã de 1988 no lixo. Justo agora que a CF de 1988 faz trinta e um anos de existência, nesse caminho pedregoso de construir um pais mais justo, inclusivo e solidário. Encontrei por acaso esse magnífico texto que copio e posto aqui com a devida referência ao Sr. Dr. Sebastião Amoedo que o publicou em 01 de abril de 2009.
Clamor público: a sentença do litóstrotos e a morte da Justiça
Por: Sebastião Amoêdo
Professor da UFRJ e criador do Conselho de Minerva
Antigo texto considerado "Peça do Processo de Cristo" existente no Museu da Espanha, narra que “no ano dezenove de Tibério César, imperador romano de todo o mundo, monarca invencível na olimpíada cento e vinte e um, e na Elíada vinte e quatro; da criação do mundo, segundo o número e cômputo dos Hebreus, quatro vezes mil cento e oitenta e sete; do progênio do Romano Império, no ano setenta e três; e na libertação do cativeiro da Babilônia, no ano mil duzentos e sete; sendo governador da Judéia Quinto Sérgio; sob o regimento o governador da Baixa Galiléia, Herodes Antipas; pontífice do sumo sacerdote, Caifás; magnos do Templo, Alis Alamel Acasel, Franchino Centauro; cônsules romanos da cidade de Jerusalém, Quinto Cornélio Sublime e Sixto Rusto; no mês de março e dia XXV do ano presente - Eu, Pôncio Pilatos, aqui Presidente do Império Romano, dentro do Palácio a arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à morte Jesus, chamado pela Plebe - Cristo nazareno - e Galileu de nação, homem sedicioso contra a Lei Mosaica - contrário ao grande imperador Tibério César...”.
Não nos cabe criticar a veracidade histórica dessa peça, no entanto um pequeno detalhe a coloca em contradição com o descrito no evangelho de João, nos ensejando o tema aqui proposto.
Na narrativa daquele que é considerado o mais culto dos evangelistas: “Pilatos levou Jesus para fora, e assentou-se no tribunal, no lugar chamado Litóstrotos, e em hebraico Gábata” (Capítulo 19. Versículo 13).
O litóstrotos ou gábata é uma área aberta de piso de pedra (lito em grego é pedra) naquilo que poderíamos chamar de varanda.
Por que Pilatos sai à varanda para julgar Jesus? Por que não fica no interior do seu palácio onde não apenas exercia as funções executivas, mas também judiciárias?
A resposta também está em João: “E não entraram (os acusadores judeus) na audiência, para não se contaminarem, mas poderem comer a páscoa. Então Pilatos saiu fora ...” (Capítulo 19, Versículos 28 e 29).
Pilatos, Presidente do Império Romano, sai de seu ambiente funcional, quebra a liturgia de seu cargo, na versão do evangelista, para atender a lei judaica.
No entanto todo o julgamento estava ocorrendo ao arrepio da lei. As leis mosaicas proibiam que qualquer pessoa fosse presa ou julgada à noite, mas a Jesus o prenderam e o julgaram durante a noite.
Abandona esse julgamento histórico a razão jurídica para assomar o viés político, quando Pilatos fica à mercê da pletora da horda que cerca o seu palácio.
Souberam bem os acusadores acuarem não ao réu, mas ao juiz, colocando-o contra o imperador: “Se soltas este, não és amigo de César; qualquer que se faz rei é contra César” (João, Capítulo 19, Versículo 12).
O resto da história todos sabemos. Pilatos lava suas mãos, em ato de libação purgatória por seu pecado de omissão e o réu é executado.
A literatura religiosa é povoada de excelentes textos sobre os aspectos históricos do julgamento de Jesus e os acadêmicos de direito não se cansam em exercícios de interpretação. Sem a pretensão de esgotar o tema retomamos o episódio para discorrer sobre o papel do magistrado e a influência da opinião pública sobre ele.
Sabemos que ao magistrado não é permitido se acovardar, uma vez que no dia em que um juiz tiver medo, a sociedade não dormirá.
Assim esse pecado menor, a covardia, fez de Pilatos um omisso e algoz jurídico de Jesus.
Por mais que tenha tentado atribuir a culpa à plebe que o cercava, foi dele o veredicto final. E se ficou refém dos acusadores foi porque transigiu. Abriu mão de sua posição de autoridade máxima. Poderia ter adiado o julgamento, se recusado a deixar o interior do seu palácio, ou exigir novas provas.
Mas ao sair para o litóstrotos, fragilizou a sua capacidade de julgador isento e independente.
O magistrado ao clamor da opinião pública afasta-se da juridicidade para abraçar a política. E há quem considere que não exista maior sepulcro para o Direito do que um julgamento político.
Um magistrado decide de acordo com a lei e a sua consciência. Mesmo que suas decisões fiquem a mercê do juízo histórico, jamais devem ser subordinadas à cambiante opinião pública, que no calor da historicidade migra da convergência à divergência da lei.
Permitir-se ouvir o clamor público é aceitar o ruído laico no processo de decisão, obrigando a deusa da Justiça a demudar sua venda e a descer à insignificância de um mortal qualquer. A sentença no litóstrotos foi a morte da Justiça.
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(11/XI/2019)