INÍCIO

11 abril 2020

A IMAGEM ERÓTICA DE ALAIR GOMES

APOTEOSE DO CORPO

Alair Gomes nasceu numa família de classe média em Valença, RJ, mudando-se ainda criança para a capital do estado. Formou-se em engenharia civil e eletrônica em 1944, todavia, em 1948, abandonou essa carreira para se dedicar à pesquisa autônoma de filosofia da ciência, estética e história da arte. Ensinou filosofia da ciência na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e foi autodidata também em física, matemática, biologia e neuropsicologia.


Alair Gomes 

A partir de 1962 foi professor assistente 20 horas do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou longas viagens para a Europa, Oriente e Estados Unidos, onde foi bolsista da Guggenheim Foundation por um ano.

No campo da crítica literária, fundou a revista Magog, em 1946, junto com o poeta Marcos Konder Reis e outros. Irmão de Aïla de Oliveira Gomes, que foi durante muitos anos professora titular de inglês da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutora e ensaísta literária.

Desde a juventude desejou se tornar um escritor, espelhando-se em nomes como Arthur Rimbaud e D. H. Lawrence, cujas obras admirava pela ousadia no tratamento da intimidade. A partir disso, criou os Journals, diários íntimos escritos à mão e em inglês, nos quais relata as suas experiências erótico-amorosas, o que viria, mais tarde, e ser uma das principais matrizes do seu trabalho fotográfico.

Seus primeiros contatos com uma câmera fotográfica ocorreram em 1965, durante uma viagem à Europa, quando um amigo lhe emprestou uma Leica. Entretanto, com intenções mais amplas, as primeiras incursões na fotografia ocorreram com a compra, no ano seguinte, de sua primeira câmera. Foi em 1966 que o artista começou a aventurar-se na fotografia de rapazes na rua, produzindo longas sequências que o tornariam um dos precursores do homoerotismo fotográfico no Brasil. Essas fotos de rapazes nas praias do Rio, especialmente as produzidas entre os anos 70 e 80, são hoje o trabalho mais conhecido de Alair Gomes. A maioria dessas imagens foram obtidas secretamente, a partir de seu apartamento, situado no sexto andar de um prédio da rua Prudente de Moraes, em Ipanema, e cujos fundos propiciavam uma vista para a praia. Apenas uma minoria das fotos era posada, a pedido do artista. Apesar de as fotos com o tema do corpo masculino serem hoje sua faceta mais conhecida, seu trabalho fotográfico abrangia também muitas paisagens, vegetais, celebridades e cenas do carnaval. Suas fotos também retratam aspectos da época, do bairro de Ipanema, em tempos bem menos massificados do que hoje em dia.

A relação de Alair Gomes com os Estados Unidos foi bastante importante para a sua produção artística. Entre os anos de 1971 e 1987, publicou suas séries fotográficas em cinco revistas e jornais norte-americanas, tanto do campo das artes e do teatro, quanto voltada ao público gay.

Realizou sua primeira mostra individual na Galeria Cândido Mendes, em Ipanema, em 1984. Produziu cerca de cento e setenta mil negativos e dezesseis mil ampliações da década de 1960 até o fim de sua vida.

Em 1968 foi contratado por Burle Marx para o registro de espécies botânicas de seu sítio no interior do estado do Rio de Janeiro.

Em 1977 criou e foi coordenador da Área de Fotografia da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV-RJ), escreveu e deu cursos sobre filosofia da ciência e história da arte contemporânea.

Morreu assassinado por estrangulamento em seu apartamento em 1992, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. O provável assassino foi o segurança de uma loja de discos, que chegou a posar para suas fotos, e por quem o artista estava apaixonado.




































A JANELA INDISCRETA DE ALAIR GOMES

Artigo de Pedro Vasquez


"Para mim o assunto da imagem é sempre mais importante que a imagem.
E mais complicado".
Diane Arbus

Todo fotógrafo é um voyeur. Mas raros foram aqueles que conseguiram transformar o voyeurismo em uma das belas artes, como Alair Gomes com as múltiplas séries realizadas a partir da janela de seu apartamento e enfeixadas sob a denominação de Finestre.

Janela e fotografia sempre fizeram bom casamento, o mais conhecido dos quais sendo o filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, em que o fotógrafo L. B. Jeffries, interpretado por James Stewart, mitiga o tédio da imobilidade forçada por uma perna quebrada bisbilhotando a vida dos vizinhos com a ajuda de uma câmera munida de teleobjetiva.

A fotografia, que já foi qualificada de “janela para o mundo”, tem sua própria gênese umbilicalmente ligada a uma janela: a do ateliê do inventor Joseph Nicéphore Niépce em Gras (nas cercanias de Chalon-sur-Saône), de onde foi realizada, em 1826, aquela que é considerada a primeira fotografia da história: Vue de ma fênetre. Por outro lado, o ex-sócio de Niépce, Louis-Jacques Mandé Daguerre, efetuou o primeiro registro de figuras humanas (a de um engraxate e seu cliente), em 1839, a partir de uma janela com vista para o Boulevard de Capucines. Enquanto André Kertész produziu centenas de tomadas em plongé de centenas de janelas diferentes de ambos os lados do Atlântico, e Eugene Smith descansaria de suas viagens mundo afora contemplando os passantes da janela de seu loft nova-iorquino na série As From My Window, durante os anos de 1957 e 1958.

São tantas as janelas que se abrem na história da fotografia que fácil seria nos perder neste caleidoscópio de estonteante simetria, confundindo a vista com o ponto de vista, de modo que convém direcionar as lentes nostálgicas de nosso satélite para uma única janela: a de Alair Gomes, na cidade do Rio de Janeiro da década de 1970.


UM LUMINOSO CORREDOR RUMO AO MAR

Alair Gomes morava em um apartamento de fundos na rua Prudente de Morais, de cuja janela era possível vislumbrar uma nesga da praia de Ipanema pelo corredor formado pelas laterais de dois prédios da avenida Vieira Souto. Esse espaço restrito, que não passava de uma simples fenda luminosa em meio à massa dos edifícios, lhe permitia esquecer a cidade às suas costas para se concentrar no mundo idílico e eternamente cambiante da praia, onde o vento, o mar, as nuvens e os banhistas encenam ainda hoje o sensual e sedutor espetáculo que deslumbrava o fotógrafo.

Não era um espetáculo encenado apenas para Alair, pois ninguém que se aproxime de uma praia consegue escapar ao sortilégio do mar. Mas era um espetáculo que tinha em Alair Gomes seu principal e mais arguto espectador, aquele capaz de transubstanciá-lo, transformando o que seria apenas inútil paisagem em arte.

Arte pura, no sentido de verdadeira arte, e arte pura, embora carregada de erotismo, em oposição à carnal concretude da arte nua e crua que ele viria a produzir entre as quatro paredes de seu apartamento-ateliê. Isso porque uma nasceu do anseio pela carne, que permaneceu idealizada e intocada, ao passo que a outra é fruto da consumação do ato sexual, do desejo realizado e saciado. Entre esses dois tempos, um longo momento: aquele que vai do reconhecimento do desejo à sua consumação. Aquele que levou o fotógrafo de sua janela indiscreta às areias da praia e de lá de volta ao labirinto inescapável do apartamento, em que, Minotauro de si mesmo, Alair devorou e foi devorado por suas fantasias eróticas.


O HOMEM CERTO, NO LUGAR CERTO, NA HORA ERRADA

No momento em que escrevo, no sábado dia 7 de junho de 2014, o jornal O Globo dedica uma página inteira aos Direitos Civis Homossexuais, anunciando que “o primeiro casal homoafetivo a conquistar o direito à dupla paternidade tem o segundo filho”, enquanto “a primeira soldado a ter seu casamento reconhecido pela PM do Rio celebra a extensão de direitos como seguro saúde à esposa e agora planeja ter filhos”.[1] E o Caderno Niterói informa: “amanhã, às 17h, acontece a 10ª Parada Orgulho LGBT na orla da Praia de Icaraí. A organização do evento estima a presença de mais de cem mil pessoas. E para coordenar o trânsito da cidade, a NitTrans preparou um esquema especial”.[2] Ou seja: no Brasil do terceiro milênio as autoridades, inclusive as militares, não só demonstram crescente aceitação dos direitos dos homossexuais, como até mesmo envidam esforços e canalizam recursos para possibilitar a realização de eventos públicos destinados a reforçar o orgulho gay.

Não sou ingênuo [3] a ponto de pensar que vivemos hoje no melhor dos mundos, em uma sociedade livre de preconceitos. Mas é forçoso admitir que os avanços têm sido consideráveis e, pelo menos do ponto de vista legal, irreversíveis. Contudo, quando Alair Gomes começou a produzir sua obra homoerótica, a partir da década de 1970, a situação era bastante diferente, de modo que nos primeiros tempos ele não costuma expor os trabalhos de natureza mais abertamente sensual e poucos eram os que conheciam sua produção, como seus primeiros colecionadores e amigos, Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva, ou o crítico de arte Roberto Pontual, o principal responsável pela divulgação de seu trabalho no exterior. Com efeito, Pontual foi o curador da exposição Corpo & Alma, apresentada no Espace Latino-Américain no quadro do Mois de la Photo à Paris de 1984, na qual as Sonatinas e os Trípticos de Alair causaram grande impressão apesar de serem os trabalhos de menor dimensão da mostra.[4] As Sonatinas Four Feet, assim como todas as demais fotografias da primeira fase, realizadas do mirante secreto da sua janela, eram impregnadas de luminosa imprecisão em virtude do uso de uma objetiva de 200 mm com um duplicador de focal, o que se por um lado lhe concedia o alcance equivalente a uma teleobjetiva de 400 mm, por outro, não apresentava a mesma nitidez ou a mesma profundidade de campo.

Duas circunstâncias combinadas contribuíram para oferecer a Alair um grande número de modelos involuntários: a consolidação do surfe e a disseminação da aparelhagem de ginástica nas praias do Rio na década de 1970. Não existia até aquele momento o culto do corpo, que atingiu o paroxismo em tempos recentes, fazendo com que muitos abusem dos esteroides anabolizantes ou até mesmo dos implantes para “esculpir um corpo de sonho”. Ao contrário, ali mesmo em Ipanema – declarada República Livre pelo pessoal de O Pasquim – os locais de encontro preferidos pela contracultura eram os bares e restaurantes, em obediência estrita ao vaticínio do jornalista Paulo Francis: “Intelectual não vai à praia. Intelectual bebe”. O brasileiro de então continuava com a magreza que vinha da década de 1940, quando Gilberto Freyre assinalou a desvantagem física de nossos marinheiros em relação aos seus colegas norte-americanos. Até o “homem mais bonito do Brasil”, Pedrinho Aguinaga, era muito magro, a ponto de os cigarros Chanceller associarem sua esbelteza àquela dos seus cigarros de 100 mm, apresentando um retrato seu com cigarro na mão com o dístico: “O único fino que satisfaz”. Muito embora tenha chegado ao Brasil na década de 1960, o surfe era praticado de forma romântica pela “Patota do Arpoador”, em que pontificavam Jorge Bally e o bonitão Arduíno Colasanti, que pode ser considerado o arquétipo dos ginastas fotografados por Alair Gomes, com seu corpo de músculos bem delineados e os cabelos longos. Foi na década seguinte que o surf começou a se profissionalizar e o corpo dos cariocas começou a mudar: ninguém queria mais saber de intelectuais magricelas, cheirando a cigarro e a bebida, os novos tempos exigiam gatões sarados, de peitos largos, cabelos parafinados e corpos com gosto de sal e sol. Os meninos-deuses do Rio, como José Artur Machado, o Petit, que inspirou a canção Menino do Rio de Caetano Veloso, assim como o filme homônimo de Antonio Calmon, como tantos outros inspiraram Alair Gomes.

Com o passar do tempo, à medida que foi superando a timidez, Alair passou a retratar os ginastas da Praia de Ipanema a partir da calçada e depois da própria areia, nos Trípticos de Praia. Depois foi mais além, começando a levar modelos para o estúdio improvisado na sala de visitas de seu apartamento, produzindo imagens cada vez mais ousadas, a ponto de retratar pênis em close e camisinhas usadas. Fotografias que ainda hoje chocam os mais sensíveis e que ele tinha a precaução de arquivar em caixas separadas nas quais colocava um aviso bem visível destinado à irmã: “Aíla – Não mexer”. Conforme relatou divertido o escultor Maurício Bentes, seu grande amigo e um dos mentores da doação de seu acervo à Biblioteca Nacional, juntamente com Aíla Gomes e Celeida Tostes, em 1994. Mas essa foi a única coisa divertida desta nova fase, pois ao trocar os seus modelos involuntários de classe média das praias por rapazes que se dispunham a posar por interesse pecuniário para sua Symphony of Erotic Icons, Alair acabou sendo barbaramente assassinado por um deles, a exemplo do que ocorrera com o cineasta Pier Paolo Pasolini na Itália, e, aqui no Brasil, ocorreria antes dele com o diretor de teatro Luiz Antônio Martinez Corrêa e o perfumista e artista plástico Aparício Basílio da Silva. Todos eles vítimas de “walks on the wild side” à maneira de Lou Reed que, lamentavelmente, não terminaram em arte ou poesia e sim em tragédia.

UMA NOITE INESQUECÍVEL NA BAÍA DO GUAJARÁ

As coincidências são muitíssimo interessantes, sobretudo pelo fato de não existirem. Assim, acho significativo o fato de que, depois de ter deixado o bom Alair esquecido durante tanto tempo em um desvão qualquer da memória, eu tenha sido impelido – por circunstâncias externas – a evocar sua figura e sua obra duas vezes no período de apenas um mês.

Agora, neste dia de um céu azul verdadeiramente alairiano [muito embora ele preferisse transcrevê-lo em PB], eis-me aqui, do lado niteroiense da Baía de Guanabara, a evocar uma longínqua ocorrência na Baía do Guajará, que banha a cidade de Belém do Pará. De forma idêntica à qual, no início do mês passado fui lançado numa evocação nostálgica da atuação belenense de Alair Gomes em virtude do genuíno fascínio que percebi em um jovem fotógrafo. Fascínio que contribuí para alimentar ao relatar aquele que foi o momento de culminância na vida do Alair Gomes crítico de arte, professor e pensador da fotografia: sua palestra na IV Semana Nacional da Fotografia do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte.

A palestra, intitulada “Aspectos da linguagem fotográfica”, foi sem dúvida alguma o ponto alto das aparições públicas de Alair Gomes, já que ele – apesar de ser excelente professor tanto no campo da ciência quanto no da arte – não gostava de falar para grandes plateias em virtude de um defeito de dicção que se acentuava nos momentos de tensão. Talvez por isso, nem bem pisou em Belém, de lá já queria voltar. Alegava ter sido hostilizado no hotel pelo fato de ser gay, muito embora nada em sua aparência evidenciasse de imediato essa condição, já que seu estilo era o daqueles que hoje chamamos de nerds, inclusive com certa semelhança com o célebre escritor de ficção científica Isaac Asimov, exceção feita às bastas suíças do autor da série Fundação.

Pregando uma daquelas perdoáveis mentiras indispensáveis para tornar a vida operacional, eu disse a Alair que tinha certeza absoluta que tudo não passava de um mal-entendido, assegurando a inexistência de preconceito por parte dos funcionários do hotel. Findei assim por acalmá-lo e o convenci a ficar para realizar a palestra prevista, que deveria ser comentada por Cristiano Mascaro, um dos mestres inquestionáveis da fotografia de arquitetura no Brasil.

Quando a noite caiu sobre os bulevares de árvores frondosas de Belém, quem estava nervoso era eu. Isso porque estávamos no aziago ano de 1985, que começara muitíssimo mal para o Brasil, com Tancredo Neves fazendo forfait em seu encontro com a presidência da República e deixando-a assim nas mãos de José Sarney, umbilicalmente ligado ao regime militar que governara o país ditatorialmente durante duas décadas. Portanto, em uma destas ironias do destino que só parecem ocorrer na América Latina, estava encarregado de restabelecer a democracia no Brasil um dos políticos que mais se empenhara em ignorá-la quando os ventos sopravam a favor dos coturnos e dos sabres desembainhados. Os ânimos estavam exaltados e a situação era particularmente confusa no âmbito da administração cultural, em virtude da recente criação do Ministério da Cultura por Aparecido de Oliveira, ao qual a Funarte, antes pertencente ao MEC, agora era subordinada. Nem tudo estava por fazer, mas tudo estava sendo refeito, de modo que a própria Semana Nacional da Fotografia, que costumava ser realizada na semana que compreendia o 19 de agosto [denominado Dia da Fotografia, em lembrança ao anúncio oficial da invenção da daguerreotipia feito por François Arago em Paris, em 1839], só conseguiu ser realizada entre 21 e 25 de outubro, após múltiplos e quase incontornáveis percalços. Por outro lado, após duas décadas de silêncio e opressão, os fotógrafos estavam ávidos por discussões públicas dos temas mais candentes do momento, tais como a regulamentação da profissão; a instituição de uma tabela nacional de preços mínimos; a taxação da importação de equipamentos e materiais de consumo; a organização das agências independentes; a reestruturação dos sindicatos de jornalistas e das associações de fotógrafos… Em suma: uma série de questões práticas e imediatas que às vezes entravam em conflito com as discussões de caráter estético e/ou criativo.

Alheio a toda essa trepidação, concentrado em seu tema, Alair Gomes começou sua fala com o mito da caverna de Platão que, com as sombras do mundo externo projetadas em seu interior, pode ser considerada a primeira descrição de uma câmara escura, ao menos no mundo ocidental. E de lá ele veio vindo, numa lenta e enfeitiçadora evolução que conduziu gradativamente a plateia ao tema em pauta: “Aspectos da linguagem fotográfica”. Um silêncio invulgar, luminoso e sutil, permaneceu no ar durante toda sua locução, transportando a todos para aquela dimensão eterna e inconsútil da arte em que Alair Gomes vivia. Uma experiência única e epifânica que certamente ajudou a despertar ou consolidar as vocações fotográficas de diversos dos presentes.

Por sorte, quando evoquei o ocorrido naquele sábado de maio último no auditório do Sesc Boulevard, havia na plateia dois ou três fotógrafos “das antigas”, que estiveram presentes na palestra de Alair Gomes na Semana de Fotografia de 1985, e eles confirmaram meu relato. Caso contrário eu mesmo ficaria com a impressão de que havia romanceado a história. Mas em se tratando de Alair isso não seria necessário, pois em seu trabalho e em sua vida mito e magia se entrelaçaram com poesia e tragédia em uma mistura única e desconcertante, como um poema de Konstantinos Kaváfis.



Joaquim Paiva entrevista Alair Gomes, 1983, pela primeira vez publicado em português


Publicado em 22 de agosto de 2014

Em conversa com o fotógrafo e diplomata Joaquim Paiva, Alair Gomes narra sua formação acadêmica e o caminho que o levou à fotografia, conta de seu fascínio pelo corpo masculino, de seus Diários Eróticos, das fotografias feitas da janela de seu apartamento em Ipanema. A entrevista foi gravada em fita no dia 19 de julho de 1983. Os trechos ininteligíveis não puderam ser transcritos e estão indicados com “[…]”.

A ZUM esquadrinhou o acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde estão as mais de 150 mil imagens, além de diários e manuscritos de Alair Gomes, e publicou em sua sexta edição dois ensaios inéditos do fotógrafo, A não história de um chofer e Praça da República. O texto Reflexões Críticas e Sinceras sobre a fotografia, de 1976, também foi publicado na revista pela primeira vez, e ainda conserva o rigor e a originalidade, quase 40 anos após ter sido escrito.

Joaquim Paiva – Boa noite, Alair.

Alair Gomes – Boa noite.

JP – Alair, o objetivo desta nossa conversa gravada é ter um depoimento de sua parte relativamente ao trabalho que você me mostrou hoje, extremamente fascinante. Não só o trabalho dos rapazes na praia, mas o dos nus masculinos. Eu acho esse um trabalho ímpar entre nós no Brasil e talvez realmente em nível mundial. Então, eu gostaria de ouvir de você comentários, explicações, pontos de vista sobre como se originou esse seu trabalho. E a partir disso, também ouvir de você opiniões sobre o que significa para você a fotografia. Enfim, eu vejo que você se antecipou e preparou um roteiro sobre o que você gostaria de dizer. Assim, eu lhe dou a palavra.

AG – Em princípio, o meu fascínio da imagem vem de longa data. E não só o fascínio da imagem, mas também o fascínio do visual. Minha impressão, a despeito de eu ler tanto e ter tanta atração por música, a experiência visual é a que de longe mais me fascina, me prende a atenção na minha prática, como característica básica de personalidade.

Desde criança também pratiquei fotografia esporadicamente. Sem técnica de laboratório nenhuma, as vezes arranjando uma máquina de empréstimo, outras vezes usando uma máquina muito ordinária. Mas nunca com a pretensão de fazer fotografia sistematicamente. Essa minha intenção chegou relativamente tarde. Eu já tinha passado bastante dos quarenta anos, quando comecei a praticar fotografia sistematicamente.

JP – E como veio isso, Alair?

AG – Acontece o seguinte: a resolução final de começar a praticar fotografia sistematicamente deve ter sido fruto sobretudo da necessidade de homenagear o que entendo como o tema central da minha fotografia, que e a imagem do jovem, a imagem do corpo masculino. Esse fascínio, é claro, era muito anterior ao início da prática de fotografia. E exatamente por ser um fascínio de ordem visual, ele tentou se prestar inicialmente por meio de artes visuais mais convencionais. Nunca cheguei a tentar o estudo sistemático de nenhuma arte visual. Mas por conta própria, durante um período de vida, eu tentei desenhar e as vezes cheguei até o pastel, fazendo um número muito grande de cópias de desenhos ou de pinturas, principalmente a partir de reprodução. E também durante um longo tempo eu tive um prazer enorme em tentar fazer desenhos de garotos, principalmente garotos nus, que posavam para mim, que tinham a paciência de posar para mim.

JP – Isso para os desenhos e pastéis.

AG – Para os desenhos e pastéis.

JP – Isso foi muito anterior ao seu início na fotografia, Alair?

AG – Isso deve ter começado mais de quinze anos antes de eu pegar a fotografia.

JP – Você devia ter uns 25 anos, trinta anos.

AG – Mais ou menos. Por volta de trinta anos. Eu tenho 61 anos agora.

JP – Não parece. Eu não sabia.

AG – Retomando, então, o assunto, acontece que nesse meio tempo meu fascínio da imagem foi se especializando no sentido artístico cada vez mais intenso. Minha experiência de boa arte visual, meu contato com a arte visual foi se intensificando não através de escola ou de um curso sistemático, mas através de praticas de exposições, práticas de livros de arte, de reprodução, o que bem cedo me deixou convencido de que eu não tinha absolutamente vocação nenhuma para a arte visual no sentido de desenho ou de pintura. E as minhas tentativas estavam destinadas a ser sempre medíocres. Entretanto, eu sentia uma espécie de necessidade obsessiva de uma homenagem que eu chamaria também de expressão, uma homenagem a esse assunto do qual tenho um fascínio absoluto, que e a imagem do corpo masculino, jovem e belo. Certa ocasião, talvez pela primeira vez, um jovem amante pelo qual estava muito apaixonado – e de forma alguma foi a primeira paixão – mas foi a primeira paixão que resultou em um caso erótico prolongado… Nessa ocasião, então, a minha aflição no comemorar de algum jeito, de uma maneira que resistisse ao tempo aquele acontecimento que estava tão fabuloso na minha vida – eu era praticamente amante de um jovem que eu achava belo, que estava me permitindo uma atividade erótica e aquilo para mim, num certo sentido, era tão sagrado e divino – que de jeito nenhum, eu me conformava em apenas fruir da experiência do momento. Eu tinha uma necessidade enorme, num certo sentido, de fixar aquela experiência. Foi o que levou a ideia do Diário Erótico.

JP – Alair, esse seu fascínio pelo corpo masculino, belo e jovem surgiu quando você teve um caso amoroso com um jovem ou ele é anterior? Eu entendo que, é óbvio, seu fascínio do jovem – me parece, pelo que você disse -, é anterior mesmo a esse segundo grau do fascínio do corpo em si, o fascínio não apenas do corpo como um elemento erótico, mas como um elemento formal. Então, e isso que eu gostaria de saber.

AG – Foi anterior, sim. A minha tendência homossexual é extremamente antiga. Eu me lembro de um caso, que era obviamente dessa natureza, quando eu ainda estava na escola primária, antes de fazer admissão para o ginásio. Há um incidente na escola primaria, e me lembro perfeitamente, com um menino de nome Aécio. O que me lembro a esse respeito e que um dia esse menino brigou com outro e se feriu. E na hora em que eu o vi ferido, o tipo de sentimento – eu me lembro da visão que tive dele – que isso provocou em mim era obviamente um sentimento amoroso e erótico. E ao longo de toda a adolescência, mesmo ao longo de todo o curso ginasial, depois na universidade, muito antes de eu ter consciência o fascínio do corpo jovem e belo foi uma constante dentro de mim. Quando pela primeira vez isso se transformou em uma experiência erótica e íntima, com uma certa base…

JP – Física.

AG – Não é só isso, não. Com uma certa frequência, com uma garantia de algum tempo de convivência, com todos os sinais de que ia durar algum tempo. Aquilo me fascinou de tal maneira, que senti essa necessidade de dar uma forma expressiva a esse fascínio, não deixar a coisa passar imediatamente. Foi quando eu passei, então, para a ideia do Diário Erótico.

JP – E você tinha mais ou menos quantos anos, Alair?

AG – Eu tinha trinta e poucos, 32 anos.

JP – Quer dizer, então, que o Diário é posterior aos desenhos e aos pastéis?

AG – Foi posterior, sim. A ideia dos desenhos e dos pastéis foi quando eu tinha 20 anos. Entre os 25 e os trinta anos eu tentei fazer esses desenhos. A partir dos trinta e poucos eu optei pelo Diário Erótico e com uma grande ambição literária, que até hoje eu não sei se foi bem-sucedida ou não.

JP – E como eram esses Diários Eróticos, Alair?

AG – Uma descrição minuciosa de cada encontro com um rapaz, que era amante meu. No início foi assim. E quando a coisa entrou em fase de problema e de crise e quando, além dele, eu comecei a fazer sexo com outros também – o que eu já fazia antes -, quando passou dentro de mim o desejo de […] por ele, eu também passei a registrar os outros. De qualquer maneira, esse primeiro constituiu o assunto central de um volume verdadeiramente caudaloso do Diário Erótico. Esse caso teve a duração de três anos, e praticamente todos os meus encontros estão registrados, com detalhes, no Diário Erótico, principalmente no que se refere a parte erótica mesmo. Era óbvio – e aí a minha inclinação irresistível a imagem – porque, mais do que despertar um sentimento, já devia existir a descrição do corpo. Uma coisa que passou muito pela minha fotografia. Eu me lembro que tenho muitas descrições de pelos sobre coxa, de pelos em torno do umbigo, de pelos entre peitorais, de peitos, de como o olhar se dirigia, inclusive mesmo aspectos de membro genital…

JP – A descrição era muito minuciosa…

AG – Era muito minuciosa. Era pré-fotográfica.

JP – Você teve um encontro intelectual, um encontro em termos de experiência com a história do erotismo, seja lendo a esse respeito, seja vendo alguma exposição? Você teve alguma referencia a tradição anterior do erótica, antes de desenvolver esse seu trabalho dos diários?

AG – Não. De literatura erótica homossexual o que eu conhecia era a Grécia, porque eu sempre fui muito dado as questões de Filosofia. Então, a partir de “O Banquete”, de Platão, a gente entra muito em literatura erótica grega. Posteriormente à leitura sobre a Grécia, tudo se limitava à literatura heterossexual. Eu tinha um fascínio fantástico de Lawrence em geral, inclusive de “O amante de Lady Chatterley.” Uma das coisas que me fascinavam muito de Lawrence é que a atração pelo corpo do homem e da mulher estava muito equilibrada, embora ele confessasse, por parte dele mesmo, a atração somente pelo corpo feminino, a descrição que ele fazia do corpo masculino estava sempre pelo menos num par de igualdade com o corpo feminino. Ele me parecia muito honesto em relação a isso. Essa era a experiência que eu tinha. Mas no gênero de literatura homossexual abertamente erótica como eu tencionava fazer eu não conhecia precedente.

JP – Pois é, Alair. De repente eu me lembrei daquela cena do filme “Woman in love” aliás, o título em português eu nem lembro mais…

AG – – Mulheres apaixonadas.

JP – – … -, baseado no D.H. Lawrence, em que os dois personagens masculinos principais tem uma briga, e eles estão nus. Eu me lembro que era uma cena eroticamente fascinante. Você se lembra, não?

AG – Lembro e acho muito bonito. Todas as cenas desse gênero do Lawrence sempre me impressionaram bastante. Eu sempre li Lawrence com enorme paixão e com a plena convicção de que, a despeito do genuíno e incontestável fascínio que ele tinha do corpo feminino, ele também tinha um componente homossexual óbvio. Eu soube a verdade disso apenas recentemente. Lendo uma crítica recente sobre Lawrence, é que vi esse aspecto sublinhado. E depois também, para minha grande surpresa, tomei contato com documentos que equivalem a uma confissão do próprio Lawrence. Há diversos casos disso. Há a citação de uma carta do Lawrence, parece que já na maturidade, em que ele diz que a experiência sexual que ele tinha achado o máximo na vida dele tinha sido com um jovem, um garoto. Há também um caso histórico quando ele quis fazer um triângulo amoroso entre ele, e parece, a escritora neozelandesa Katherine Mansfield e o marido dela, que era um critico de arte muito […].

JP – Eu não conheço também.

AG – Ele era um crítico de arte famoso. Ele tentou mesmo fazer um triângulo, porque […]

JP – Alair, nessa época você chegou a ler alguma coisa, por exemplo, do Kavafi?

AG – Não. Nessa época, o escritor homossexual erótico que estava em grande moda era o Genet. Eu tenho de confessar que a maioria dos meus amigos homossexuais eram fascinados de Genet.

JP – Você chegou a ler “Notre Dame des Fleurs”?

AG – Até hoje, do Genet, eu só li o “Notre Dame des Fleurs”. De o início,…

JP – O que você achou, hein?

AG – … desde o primeiro contato – eu tenho uma certa vergonha de dizer isso hoje, mas tenho de ser sincero -, tenho uma espécie de repulsa e nojo pelo Genet. Para mim, parece que Genet estava traindo uma coisa que eu amava. E sobretudo eu não suportava, e até hoje não suporto, no Genet é a mistura de sexo com traição, com criminalidade, com sujeira corporal. Eu hoje sei reconhecer objetivamente o gênio e o poeta Jean Genet. E até certo ponto mesmo o gênio psicológico. Mas eu nunca tive nenhuma afinidade com o tipo de personalidade dele. Embora eu entenda perfeitamente um certo tipo de fascínio do erótico descrito por ele, a intenção dele de sistematicamente relacionar esse fascínio com o crime, com a traição, com a coisa mórbida e, sobretudo, com a sujeira corporal, sempre me causou repugnância.

JP – Foi muito a vida dele, não é?

AG – De modo que Genet foi um autor que eu li relativamente muito pouco… Absolutamente nenhum.

JP – Alair, em outras áreas em que se possa manifestar o erotismo, além da literatura, o que você pode dizer que tenha chamado sua atenção anteriormente à sua expressão do erotismo por meio dos desenhos, dos pastéis, depois dos diários e bem posteriormente – e é o que mais vai nos interessar, da fotografia?

AG – Em matéria de expressão artística, acho que só. Onde mais encontrar?

JP – Não. Eu digo na arte erótica, por exemplo. Eu vejo aqui, na sua biblioteca, o livro “‘Primitiv Erotic Art”, onde há coisas incríveis.

AG – A grande divulgação disso é relativamente recente. Já começa na década de 60. Fora daí não havia divulgação em grande escala. Eu me lembro…

JP – É verdade. Então, a sua referência foi sempre literária, no caso.

AG – Literária é claro. A literatura clássica sempre tinha […]. Todo elemento abertamente erótico, o equivalente ao que a gente hoje chama de pornografia, em arte clássica, seja grega, seja romana, de outras civilizações ou mesmo cultura primitiva, tinha divulgação proibida. Isso começou a ser divulgado há vinte, quinze anos.

JP – Em que deu a experiência dos diários? Onde foi desembocar essa experiência?

AG – Depois de mais de dez anos de diário erótico contínuo e obsessivo, eu comecei a ficar com muito medo de ser impossível continuar indefinidamente a descrição desse gênero de experiência. Não que em mim interesse diminuir. Eu sempre tive uma crença no erótico nesse sentido. Para mim, em princípio não se exaure, não pode se exaurir. Em última análise, eu creio que isso representa a natureza de todos os seres humanos. Se em grande parte dos seres humanos parece que o erótico esta exaurido, isso se deve a razões contrárias ao processo, a fatores que agem muito poderosamente contra a perenidade do interesse pelo erótico. De qualquer maneira, eu tive grande temor pela minha capacidade de continuar indefinidamente dentro desse mesmo gênero. Talvez eu já tivesse consciência, por volta dessa época, de que o que eu tinha de falar de forma escrita sobre o assunto já se encontrava registrado. Eu também tinha uma consciência muito penosa de que o registro era sempre feito com grande pressa, imediatamente apos a experiência. Eu tinha tido oportunidade de elaborar, a posteriori, o registro… O período registrado e relativamente muito pequeno. Foi quase que só o início do Diário Erótico. E depois então, a fase final do Diário Erótico, que representa minha primeira estada, durante um ano, nos Estados Unidos, em grande parte junto a uma grande universidade, Yale, eu tinha aquele fascínio enorme…

JP – Você estava estudando lá?

AG – Eu tive uma balsa do Guggenheim. Eu já tinha um pass free(?), mas eu escolhi ficar parte do tempo muito agregado à Universidade de Yale. Eu frequentava muito o campo de esportes, sobretudo a famosa piscina de Yale, a refeitório de Yale, a comida… E aquilo, é claro, para mim tinha um interesse erótico fantástico. E como eu sempre fui um americanófilo muito grande, a junção, a oportunidade da experiência erótica americana -pelo menos a experiência visual, e a imensa maioria dela foi visual, não chegou a se materializar, principalmente na Universidade de Yale onde a coisa era extremamente difícil, me motivou de tal maneira que a parte americana do Diário Erótico eu cheguei a elaborar muito.

JP – Desculpe, Alair. Você disse que teve uma bolsa Guggenheim. Em que área foi?

AG – Filosofia.

JP – E isso foi onde? Em Yale?

AG – O Guggenheim dá bolsa livre. Não o obriga a ir a lugar nenhum. Você é quem escolhe o que quer fazer e onde quer ficar. Eu simplesmente escolhi ficar agregado a Universidade de Yale, porque havia um grupo de pessoas lá que me interessavam. De um ano de estada nos Estados Unidos, praticamente seis meses foram passados em New Haven junto a Yale.

JP – Alair, e chegando à fotografia, como a coisa aconteceu? Como foi a adoção da fotografia?

AG – É possível que a fotografia tenha entrado, a motivação principal talvez tenha sido esse temor, no qual estou insistindo demais, sobre a descrição literária dos Diários Eróticos. Eu já falei tanto nos Diários Eróticos que eu queria fazer uma observação sobre eles, que é a seguinte: eu estou incerto a respeito do estado de como esses diários estão, se eles são aceitáveis literariamente ou não. Há poucos dias tive uma experiência extremamente gratificante para mim. Eu passei anos sem inspecionar esses diários com a convicção de que a maioria do material era inaceitável do ponto de vista literário e que só poderia se tornar aceitável se eu tivesse tempo de elaborá-los. Há poucos dias, por questão de arrumação simplesmente física, eu abri os diários e li duas ou três páginas esparsas. A impressão primeira que eu tive e de que a necessidade de elaboração talvez seja muito menor do que a que eu pensava. Então, criou-se dentro de mim uma esperança grande de que a maior parte desse material seja facilmente recuperável. Isso é coisa que eu pretendo examinar a partir do ano que vem, daqui a um ano ou dois, se eu começar a ter tempo para isso. A tomada da fotografia, independente dessa suspeita em relação ao diário, teve dois episódios particulares importantes. Primeiro, eu tive de organizar numa universidade um curso de pós-graduação – e talvez tenha sido mesmo o primeiro no Rio de Janeiro. E fazia parte desse curso de pós-graduação técnica fotográfica, técnica de laboratório. O meu velho interesse por fotografia fez com que eu assistisse a algumas aulas do curso sobre técnica fotográfica que eu mesmo tinha proposto. Então, eu aprendi a revelar filmes, não a ampliar filmes. Coincidiu também com esse época minha primeira viagem a Europa, posterior a dos Estados Unidos e que foi uma viagem longa. Eu fiquei mais de seis meses na Europa. Por essa ocasião, eu arranjei emprestada uma máquina fotográfica, uma Leica muito antiga, em péssimas condições, uma Leica pré-guerra, mas que de qualquer maneira era uma Leica que um amigo de muito boa vontade me emprestou. Com isso, eu comecei a fotografar quase que obsessivamente na Europa, mas principalmente escultura e pintura, que eram meus temas prediletos. Mas não só isso, outras coisas também. Isso foi em 1965. No ano seguinte, eu tive um trabalho remunerado mais ou menos substancial e tinha um amigo que viajava para o Panamá, onde tinha porto livre, e que generosamente concordou em comprar para mim, porque ele também tinha facilidade de entrar aqui com material, uma câmara boa de 35mm já com teleobjetiva e grande angular. Isso foi bem no final de 66, praticamente no começo de 1967. E aí eu comecei obsessivamente a fotografar. Nessa época cessou a parte do diário. O último grande capítulo do “Diário” que eu tenho é o “Diário na Europa”. O “Diário na Europa” estava mais ligado a observação de arte visual, de museu, de igreja e de outros locais de arte do que nos Estados Unidos, porque nos Estados Unidos eu estava muito mais ligado ao garoto mesmo, ao universitário, ao garoto…

JP – E as fotografias?

AG – O “Diário na Europa” foi sempre uma espécie de visão de arte europeia antiga e contemporânea que eu via sempre do ponto de vista erótico.

JP – E as fotografias que você disse que obsessivamente começou a fazer na Europa já eram eróticas?

AG – Não. Eram fotografias… Eu disse que era obsessivo porque eram sobretudo tinha o tema da estatuária e da pintura de nu masculino. Eu não tinha pretensão maior com o registro fotográfico que fiz na Europa com uma máquina emprestada. Na verdade, ele tinha como objetivo principal aumentar uma coleção minha de imagens do meu tema predileto. Coleção essa que eu já fazia, já muito volumosa, comprando não só obras de arte, como também recortando fotografias de jornais e de revistas. E acumulando essas imagens que tanto fascínio exerciam sobre mim. Na verdade, eu não perguntava, jamais me passava pela cabeça nessa época perguntar, se isso era arte ou não. Eu me contentava com a ideia de que aquilo tinha um atrativo enorme sobre mim e com a consciência de que eu não tinha resistência absolutamente alguma aquele atrativo. Saber se aquilo era arte ou não era arte não era propriamente o que me interessava. Quando eu estava na Europa, eu ficava extremamente feliz em registrar o nu masculino através da experiência artística. Mas eu mesmo, nesse registro inicial, não tinha absolutamente nenhuma pretensão artística, apesar de todo o meu fascínio de arte visual e de toda a prática de reprodução que tive com a arte visual. Sobre esse meu fascínio de arte, convém dizer também que eu comecei a ter prática direta, prolongada e relativamente frequente com arte moderna – e, portanto, abstrata, e do figurativo e deformado, muito antes de ter conhecimento direto de arte clássica. 
No Brasil, o patrimônio de grande arte clássica é mínimo, e, no período em que comecei a me interessar por arte visual em geral, o Brasil contava em dois anos com um fenómeno absolutamente excepcional que eram a Bienais de São Paulo. A 2ª Bienal de São Paulo, que eu visitei duas vezes, ficando no mínimo uma semana de cada vez, indo todo dia a bienal para visitar, talvez tenha sido a maior exposição de arte moderna que o mundo teve. O meu contato direto, o meu treino como crítico de arte mesmo começou com arte moderna muito antes do que com a arte clássica. Eu só comecei a ver arte clássica em grande quantidade diretamente, não em reprodução, em museu americano, quando eu estive nos Estados Unidos pela primeira vez. Eu passei lá parte do ano de 1962 e a maioria de 1963.

É possível que meu fascínio muito grande de pintura, escultura e sobretudo minha familiaridade com a arte moderna, para a qual as bienais de São Paulo me motivaram tanto, ajudaram tanto a desenvolver o meu gosto, uma leitura relativamente grande talvez de crítica de arte moderna – eu tinha um interesse muito grande por arte moderna com sua predominância sobre a abstração, a deformação de figuras, uma imagem que se afasta de uma maneira muito óbvia do naturalismo fotográfico, que tudo isso tivesse contribuído também para criar em mim uma certa desconfiança do poder expressivo da fotografia do ponto de vista artístico. Na verdade, eu passei pelo menos vinte anos com um tipo de crença em pintura e em outras artes plásticas que não era a mesma crença que eu tinha em fotografia, apesar do fascínio que sempre tive pela forma, desde criança. Mas nesse tempo eu não procurava distinguir uma da outra. Eu jamais disse para mim que fotografia não era arte. Acontece que, quando eu pensava em arte, eu pensava principalmente em pintura, desenho, gravura, escultura, tudo isso com a vinda da arte moderna.

De modo que, na hora em que larguei o Diário Erótico para fazer fotografia, houve uma mudança bastante acentuada na minha abordagem do problema. A despeito de todas as dúvidas tão grandes que até hoje eu tenho relativas ao possível valor literário de meus Diários Eróticos -e talvez a imensa maioria do material registrado seja aceitável ou não do ponto de vista literário, o que preciso verificar quando tiver tempo -, minha pretensão com o diário nunca deixou de ser literária. Eu me preparei sistematicamente do ponto de vista literário para escrever os diários, eu fiz um estudo sistemático de Literatura por causa dos diários. Não houve absolutamente correspondente nenhum disso quando peguei fotografia.

JP – Alair, você disse uma coisa que me chamou a atenção, quando você falou de fotografia e arte. Eu queria perguntar: como você percebeu e veio a aceitar, como você entendeu a existência da fotografia como arte, como meio de expressão válido artisticamente?

AG – Acho que foi relativamente tardia dentro de uma experiência com arte. Curiosamente, eu tinha muitíssimo maior conhecimento de pintores, principalmente pintores modernos dos séculos XIX e XX, do que de fotógrafos. Há mais ou menos quinze anos eu mal saberia citar o nome de um fotógrafo que não fosse Cartier-Bresson e um número mínimo de outros fotógrafos que as vezes eu via nas páginas da Life. Eu ainda não tinha formado dentro de mim a personalidade artística de quase nenhum fotógrafo. Eu conhecia centenas de personalidades, de pintores, de escultores, de desenhistas, de gravadores modernos e contemporâneos que me impressionavam, eu sabia quem era cada um deles, eu sabia reconhecer o tipo de mensagem que eles estavam dando. 
De fotógrafo, talvez o primeiro que aconteceu comigo, e assim durou muito tempo, deve ter sido Cartier-Bresson. E olha que nessa época eu já costumava comprar muita revista de fotografia, principalmente os anuários de fotografias da US Camera ou da Popular Photography. Mas a personalidade do fotógrafo como um crítico foi uma coisa cujo reconhecimento veio muito tardiamente em mim.
Quando comecei a praticar fotografia, eu tinha… Mesmo quando comecei a fazer com mais pretensão… O primeiro gênero de fotografia que pratiquei com intenção mais nitidamente artística foi de plantas, de vegetal. Talvez porque o vegetal tivesse livre circulação. Isso foi no ano de 1968 para 1969. Eu consegui um público privado – com perdão da expressão -, uma quantidade de pessoas que começaram a ver as fotografias que eu tirava de plantas e que começaram a se entusiasmar muito. Isso me motivou muito a persistir no assunto e a desenvolver mesmo uma certa pretensão sobre esse gênero de fotografia. Mas durante essa época, por exemplo, jamais a minha melhor fotografia isolada podia se comparar a uma boa pintura. A comparação entre a foto isolada e a pintura isolada foi sempre uma constante na minha reflexão sobre a natureza da fotografia e inevitavelmente também sobre o relacionamento entre a fotografia com as demais artes visuais.

JP – Isso é uma coisa sobre a qual eu queria perguntar. Você pode detalhar um pouco mais esse ponto da relação da fotografia com as demais artes visuais?

AG – A preocupação com essa relação era praticamente inevitável em mim. Depois de tudo que falei até agora sobre a minha ligação, a minha atração tão longa e frequente com as outras artes visuais, no memento em que começa a crescer e a se sistematizar dentro de mim o interesse pela fotografia, era inevitável, principalmente por causa da minha tendência a pensamento do tipo critico e filosófico, que eu também quisesse investigar o relacionamento entre a fotografia e as demais artes visuais. A meditação sobre esse relacionamento me orientou muito também na escolha do gênero de fotografia que eu pratico. Vou me explicar melhor. A minha ideia, em princípio, é a seguinte: o pintor tem um domínio sobre sua imagem imensamente maior do que o fotógrafo. Porque o pintor não só pode planejar em detalhes toda a imagem, antes de começar a construí-la, como também pode modificar profundamente o desenvolvimento da imagem ao longo de sua construção, como ele pode também trabalhar, de acordo com suas intenções, sobre praticamente cada milímetro quadrado da imagem. O fotógrafo absolutamente não tem esse domínio total que o pintor tem sobre a imagem que ele constrói. E quando o fotógrafo quer praticar fotografia, usando sistematicamente recursos de laboratório que aproximem a concepção da imagem fotográfica da concepção da imagem pictórica, O que acontece, em princípio, é uma triste emulação(?) de pintura por parte da fotografia, com um resultado obviamente desfavorável à fotografia, apesar dos resultados notáveis que a chamada pintura pictórica ou pictorialista às vezes alcançou. Por mais admiração que a gente tenha por esse tipo de fotografia, jamais a gente pode compará-la à pintura de primeira qualidade. Você tem a imagem isolada. É possível também que eu talvez tenha reconhecido muito cedo uma certa incapacidade minha de reproduzir imagens isoladas que me satisfizessem plenamente tanto quanto, por exemplo, um Cartier-Bresson, que foi meu primeiro ídolo fotográfico. Mais tarde eu passei a fazer uma crítica muito severa ao Bresson, a qual depois eu posso definir para você. De qualquer maneira, durante muito tempo ele foi para mim o fotógrafo que conseguia, mais do que qualquer outro, esse milagre de, numa imagem isolada, dar tanta riqueza, fazer uma imagem isolada tão rica sob diversos pontos que muitas vezes ela podia ser comparada, de um modo não desfavorável, a uma boa pintura. A minha obsessão em tomo da imagem do corpo masculino era uma obsessão que deve ser entendida também em termos muito diretos, muito literais. Eu tinha uma vontade de produzir uma quantidade cada vez maior de imagens desse gênero. A imagem do corpo masculino, jovem e belo quase que me sufocava. Em princípio, essa tendência quase que irresistível a uma produção maciça de imagem estava em contradição com a inclinação a uma produção da imagem fotográfica muito perfeita, muito aperfeiçoada. Isso certamente limitaria minha abordagem fotográfica do corpo masculino, pelo menos do ponto de vista quantitativa. Mas na verdade eu levei algum tempo – e você sabe que eu trabalhei muito em filosofia, e a minha filosofia era a filosofia da natureza, eu me interessava sobretudo uma espécie de descrição ou de caracterização da realidade natural em geral. Num certo sentido isso foi consciente mesmo em mim. Eu cheguei a pensar várias vezes que se insistisse suficientemente na tomada de imagem fotográfica do jovem corpo masculino, simplesmente a abundância dessa imagem em situações diferentes…

(MUDANÇA DO LADO DA FITA)

…talvez esse acúmulo do número fantástico da imagem do jovem corpo masculino em situações diferentes pudesse, em última análise, funcionar como uma espécie de equivalência de uma visão do mundo, de uma Weltanschaung, de uma world view, de um ponto de vista quase filosófico. Seria quase que tentar fazer, através simplesmente do acúmulo da imagem do corpo masculino jovem, o equivalente a uma visão do mundo no sentido filosófico. Isso é uma espécie de crença que eu entretive durante longo tempo conscientemente, sabendo que eu era louco e fantasista, mas era uma espécie de crença que a gente admite, a despeito da consciência do absurdo dela.

JP – Essa ideia de uma visão do mundo, no caso através da fotografia, é algo que a Susan Sontag, em seu livro On Photography enfatiza bastante. Esse interesse que a obra de um fotógrafo passa a ter se vista como uma expressão do mundo interior dele, como uma revelação da sua visão de mundo. Eu acho a ideia extremamente interessante. E acho que nas suas fotografias de cunho erótico existe efetivamente essa sua visão do mundo, Alair, porque, afinal, essa sua atração pelo corpo masculino jovem não é algo que se expressou primeiramente na fotografia. Você mesmo disse que começou a fotografar depois dos quarenta anos. Você disse que antes fazia os diários, os pastéis, os desenhos que no tempo de escola você teve uma atração enorme, obsessiva até, pelos colegas, pelos rapazes. Então, eu acho que é algo que está fundamental e radicalmente dentro de você. Esse seu trabalho fotográfico expressa muito de você mesmo, muito de sua visão do mundo. Você esta de acordo ou não ou quer fazer algum comentário?

AG – Não. Não há o menor reparo a fazer sobre isso. É puramente a verdade. Mas acontece que a pretensão era maior ainda, era a crença no sentido de transcender a subjetividade, transcender a minha personalidade, quase que tentar mesmo o equivalente ao pensamento filosófico, através dos gêneros de imagens. Então, não era expressar meu sentimento, era quase que uma pretensão – por isso eu disse que eu sabia que ela era absurda, mas a despeito de eu saber que ela era absurda -, que eu nutria, objetivar isso era uma ideia que inclusive me parecia possível, tomar isso acessível às outras pessoas.

Acontece que eu também comecei a sentir a necessidade de uma estruturação desse acúmulo de imagens. Eu tinha a consciência nítida de que minhas imagens isoladas a mim satisfaziam integralmente, porque elas respondiam ao gênero do fascínio do erótico que eu sentia. Eu não tinha necessidade de poder chamá-las de arte, mas começou a se intensificar cada vez mais dento de mim a necessidade de refinar e de elaborar a minha expressão fotográfica, de modo que eu pudesse transmití-la a um nível artístico a outras pessoas. Ora, foi considerando esse potencial fantástico da construção da imagem pictórica em relação a imagem fotográfica, o domínio muito maior que o pintor tem sobre sua imagem em relação ao fotógrafo, e considerando também a minha tendência a tomadas de imagem quase obsessiva que eu devo ter compreendido que meu caminho ambicioso no sentido de […] da fotografia tinha que ser o caminho da sequência fotográfica e não da imagem única. Em princípio ele já respondia à minha tendência obsessiva. Depois, então, veio o caso da comparação com a pintura. Por meio da imagem múltipla eu tinha a impressão de que estava recorrendo a um recurso da fotografia que a pintura não tinha, que é exatamente a capacidade de tomar várias imagens sucessivas, relativamente próximas entre si do mesmo assunto e que entretanto cada uma delas mostra uma certa novidade, um certo aspecto novo, esse objeto de interesse que vale a pena observar, que vale a pena ser enfatizado. Daí a ideia de que era preciso explorar essa capacidade, esse gênero da fotografia e revelar diversos aspectos muito próximos entre si, mas cada qual com sua característica valiosa, sua característica que merece ênfase de um do mesmo assunto. Mas a simples coletânea de um grupo de imagens em torno de um mesmo assunto não bastava. Era preciso que essa coletânea também estivesse submetida a uma estruturação, a uma sequência estruturada. A partir desse momento, eu vejo, então, que o meu problema de exploração de fotografia e muito próximo ao problema de cinema. Porque o cinema, na verdade, e uma estrutura ao sentencial de diversas imagens, só que o equivalente a imagem fotográfica no cinema e o que eu chamo de um plano ou um take, e uma imagem que se move durante um certo tempo e depois, então, passa a ser acompanhada de som. A fotografia em si não pede som exatamente porque ela não tem movimento e ela se contenta com a fixação de um determinado instante de movimento de situação. Isso cria diferenças muito grandes entre a seriação, a estruturação sequencial da foto, still, e o problema do cinema. Mas as relações são nítidas. E elas se tornam nítidas principalmente no que diz respeito ao fenômeno de montagem. Mas a sequência fotográfica deve ser construída como um recurso perene à montagem cinematográfica num sentido bastante acentuado. E a partir dessas conclusões – por um lado, minha obsessão, a minha tendência a repetir a imagem por outro, a ideia de que o tratamento da imagem múltipla oferece a possibilidade de exploração de um potencial da fotografia que a pintura não tem e que, portanto, permite também tornar a fotografia muito mais independente da pintura, como, por exemplo, apresentar uma quantidade enorme fotos que isoladamente não obedecem de jeito nenhum aos valores de composição da fotografia e que, entretanto, podem funcionar de uma maneira muito importante dentro de uma sequência, ou seja, que a composição delas diz respeito à sequência da imagem e não mais à imagem isolada – eu acabei optando simplesmente por sequência. Na verdade, a primeira sequência que eu construí foi uma sequência enorme – eu creio que talvez nunca vá ultrapassá-la em número – que foi a Sinfonia de Ícones Eróticos que você sabe.

JP – Antes de falarmos nisso, eu queria perguntar: haveria algum perigo em você se entregar demasiadamente à sequência, a ponto de ela se aproximar da sequência cinematográfica?

AG – Eu acho que não. Na visita que me faz hoje – e depois eu até gostaria que você também recordasse a primeira visita que me fez há algum tempo sobre fotografia – você viu muito as Sonatinas a Quatro Pés, que são composições sequenciais minhas que talvez estejam mais próximas do cinema, porque elas incluem muito o movimento, frequentemente elas retratam uma ação, elas são o retrato de uma ação, elas incorporam um caráter de dinamismo corporal muito maior do que as minhas outras sequências. Mas naquelas próprias sequências, nas frisas que você viu – duas frisas têm esse problema… Mas há uma terceira frisa onde eu alterno dois garotos fazendo ginástica, fotografados em close, quase que de peito e face, em que você vê a sequência profundamente diferente da forma como é praticada nas sonatinas. É minha primeira obra sequencial, as Sinfonias Eróticas, que tem perto de 1.800 fotos, eu acho que se afasta inteiramente do gênero sonatina. Rarissimamente eu me consenti, ao longo desse seriação de quase 1.800 fotos, tentar sugerir alguma coisa com movimento.

JP – Aliás, eu apenas queria recordar, Alair, que há cinco anos, em agosto de 1978, por sugestão de um amigo comum, Clovis Zanetti, eu vim visitar você neste mesmo apartamento, na Prudente de Morais, de onde da janela a gente vê o mar, e você me mostrou uma boa parte da sinfonia, sobre a qual você acaba de falar, composta aproximadamente 1.800 fotografias. Na época, fiquei extremamente impressionado com o detalhamento do trabalho, com a forma profunda como você penetrou no tema, que era o corpo masculino. Eu me lembro de detalhes como de pelos púbicos e a forma de close como você fotografou, por exemplo, o pênis e os menores detalhes de um corpo de um belo jovem rapaz o peito, os bíceps, os tríceps, as coxas, os pés, tudo. Realmente, é um show de erotismo, de beleza desse animal tão lindo que é o jovem rapaz. Isso foi há cinco anos. Hoje, vim novamente fazer uma visita e você me mostrou as sonatinas, as frisas e os trípticos de praia. Então, Alair, eu gostaria que você falasse um pouco de cada uma das etapas desse trabalho único, que é o seu.

AG – Como eu disse a você, a primeira construção pretensiosa que eu fiz foi a sinfonia. Mas eu também tenho a consciência de que a sinfonia é muito um elefante branco. São 1.800 fotos em formato relativamente grande, 30 x 40, cria um problema extremamente complicado e pesado para sua exibição, sobretudo em relação ao público. Apenas um muito complexo sistema de slides, transposição das fotos em slides, poderia permitir a exibição da sinfonia para um público relativamente grande, em uma sala de projeção. Fora disso, seria preciso imaginar, por exemplo, que no Museu Guggenheim talvez houvesse espaço linear suficiente para se expor a sinfonia. Eu quis muito fazer a sinfonia como uma espécie de teste para o espectador, ver quem atravessava… Eu insisti tanto no abertamente erótico, que frequentemente pode ser chamado de pornográfico – e eu nunca recusei a possibilidade de a minha fotografia poder ser chamada de pornográfica -, mas eu quis insistir tanto, tanto nisso que de repente certas categorias foram transcendidas. Eu precisava mesmo de uma quantidade fantástica de imagens para obter esse efeito. Agora estou muito consciente do caráter pouco prático do contato dessa composição com o público. Mas também há um lado prático, econômico, que é o seguinte: em princípio, a sinfonia foi composta para jamais ser comercializada.
Mas nenhuma composição desse gênero praticamente seria comercializada. Seria só para compensar o gasto de tempo, para não falar de material, porque o gasto de tempo seria muito significante (ou insignificante) para ela, […] seria justamente imensa, fantástica, uma coisa que está além do gasto. Eu precisava, num certo sentido, viver de fotografia. E ao mesmo tempo em que precisava viver de fotografia eu tinha necessidade de um contato maior com o público, coisa que só era possível com sequências muito menores.

JP – Alair, a respeito da sinfonia, eu entendo que você, o máximo que pôde fazer, em termos de divulgação do trabalho, foi publicar algumas fotografias em jornais gays americanos. É verdade isso? Ou você chegou a expor?

AG – Não cheguei, não. A primeira vez que eu publiquei nu foi agora, no The Advocate,…

JP – De São Francisco.

AG – …e de Los Angeles também. E uma edição tão recente que a mim mesmo ainda não chegou. Mas nenhum desses, entretanto, pertencia à sinfonia. Nenhuma foto da sinfonia foi publicada.

JP – O que você publicou do seu trabalho…

AG – Erótico?

JP – …dos rapazes?

AG – A publicação pela primeira vez foi no The Advocate. Tenho muitas outras publicações, mas não especificamente eróticas. Especificamente eróticas, não nus…

JP – Vamos falar dos nus.

AG – Nunca houve contato com o público. Há uma quantidade muito grande de gente que já viu aqui.

JP – Mas você me disse que uma vez fez uma exposição nos Estados Unidos. Não foi dos nus? Foi material de carnaval?

AG – De carnaval.

JP – Alair, você me disse que tem planos de, em maio de 1984, fazer uma exposição na Galeria de Arte da Universidade Cândido Mendes. Serão mais ou menos quantas fotografias, Alair?

AG – Não tenho ideia. Foi muito surpreendente e o mais agradável possível, quando a direção da galeria me procurou para uma exposição de fotos. Inicialmente, eu pensei até em fotografias de carnaval, mas a diretora da galeria mostrou sua óbvia preferencia pelo material de praia. Ela tinha visto minha exposição no Shopping Cassino Atlântica – e uma sequência muito grande também, depois da sinfonia é a maior que compus até hoje – que já tinha estado na Feira de Artes de Bolonha, mas onde foram expostos apenas em pequenos fragmentos. Aqui no Rio de Janeiro ela foi exposta integralmente. É verdade que a versão era menor do que a de Bolonha, mas de qualquer maneira…

JP – Aliás, você participou na de Bolonha por intermédio de contato com o Clovis Zanetti.

AG – Foi o Clovis que me convidou. Sobre a exposição na galeria, quantas fotos vão ser, não sei. A quase definição é que vão ser Sonatinas a Quatro Pés. Mas ainda há uma porção de problemas de montagem a resolver e que talvez só sejam resolvidos no final do ano, depois que eu voltar da minha viagem. Além dos Sonatinas a Quatro Pés, devem ser expostos também os trípticos de praia. Eu espero que pelo menos uns dez.

JP – Aqui para nosso registro, Alair, o que são exatamente os Trípticos de Praia?

AG – Eu fui levado à necessidade de reduzir as sequências a um número relativamente pequeno de cópias, tanto para aumentar a possibilidade de contato ao público, como também aumentar a possibilidade de comercialização das fotos. A ideia do tríptico me veio quando eu quis fazer uma coleção de fragmentos tirados da sinfonia. O conselho de um amigo meu americano era de que parte da sinfonia devia circular, de modo a tentar despertar um interesse maior a respeito das fotografias eróticas. E eu aceitei a ideia dele de reimprimir pequenas sequências tiradas da sinfonia. Mas ao tentar fazer isso eu vi que era praticamente impossível isolar uma sequência da sinfonia com um número pequeno de cópias. Relativamente poucas sequências da sinfonia suportariam essa limitação, porque, em principio, as sinfonias estavam planejadas para serem mesmo uma espécie de um fluxo caudaloso de cópias. Então, eu parti para a ideia de selecionar fotografias da sinfonia, mas submetendo-as a uma sequência completamente independente.
Então, eu passei de um extrema ao outro. Eu tive vontade de reduzir essa sequência ao mínimo. Em princípio, eu chamei essas pequenas composições tiradas das sinfonias de Fragmentos Opus 5, porque Opus 3 é a sinfonia. Mas, de acordo com o próprio nome da sinfonia, que eu chamei de ícones eróticos – ícone quer dizer imagem, é claro, mas no mundo ocidental moderno ícone adquiriu uma certa conotação de imagem sagrada também […]- eu me impressionei muito com a possibilidade de, ao reunir três fotos, em vez de cinco, fazer uma espécie de composição de altar, do que os ingleses chamam de altar piece. Na Renascença italiana os trípticos de altar eram muito comuns. O tríptico tinha conotação religiosa; frequentemente no tríptico havia uma figura central e duas figuras laterais, secundárias, formando um todo, eram três imagens diferentes que completavam uma composição. E era uma composição que, em geral, se chamava à devoção, isto é, em princípio deveria induzir à devoção. E devoção era absolutamente central no meu caso, tanto que eu resolvi denominar partes desses fragmentos que eu tirei das sinfonias com o nome latino de Adoremus, cometendo uma espécie de blasfêmia proposital não no mau sentido, mas simplesmente fazendo uso de um nome tipicamente religioso em uma composição erótica que, em última análise, era vista como uma abordagem proto-religiosa ou proto-mística seu grau explicitamente erótico. A ideia do tríptico me agradou muito. Daí, então, eu parti, inclusive considerando a conveniência de um número relativamente pequeno, de um número praticamente mínimo de composição, para estendê-la a outras modalidades de fotografia em vez dos nus tirados da sinfonia. O problema da sequência das fotos de praia era sempre muito importante para mim, porque talvez numericamente eu tenha mais negativos de praia do que de qualquer outro assunto, inclusive mesmo dos próprios nus. Eu acumulei vários milhares de negativos de garotos de praia do Rio. Eu me preocupei – e ainda me preocupo muito – com a maneira de dar uma estruturação a esse material, de apresentar esse material. Eu tenho diversos planos mais ou menos engatilhados para explorar esse material. Além dos trípticos de praia e das frisas…

JP – Alair, as frisas são exatamente o que?

AG – A frisa, tal como o tríptico, tem uma composição meio amarrada. Os dois são difíceis de fazer, porque exigem uma amarração muito forte entre uma fotografia e outra. Tanto a frisa quanto o tríptico estão amarrados, as composições tem de ser muito rígidas. Nos Adoremus, que eu tirei da sinfonia, a composição era sempre simétrica, havia uma imagem central e duas imagens laterais postas de tal modo que poderiam ser reinterpretadas como imagens voltadas para a central. Você não chegou a ver alguns dos Adoremus, nenhum dos fragmentos tirados das sinfonias.

JP – Não.

AG – Não cheguei a mostrar para você. Quando eu passei a explorar o material de praia sob o ponto de vista do tríptico, esse esquema me pareceu rígido demais. Mas ao mesmo tempo em que eu o rejeitei, a dificuldade da composição tríptica se tomou extremamente grande, porque o tríptico como Adoremus de altar dá uma ideia de simetria, dá uma amarração de imagem para imagem muito forte, muito óbvia e muito imediata. Tirar essas imagens da sinfonia, que eram sempre de fotografias posadas, de modelos posando para mim, em princípio era muitíssimo mais fácil do que tirar de imagens que não são posadas, colhidas por mim na praia. De qualquer maneira, para fotos de praia um esquema tão rígido como aquele e menos explicitamente erótico – embora também carregadamente erótico – esse esquema talvez não se prestasse tão bem ao material colhido na praia. Então, eu fiquei com o problema de arranjar uma estruturação, uma liga ao plástica visual entre somente três imagens. Pelo fato de elas serem apenas três e não trinta, a exigência de harmonia entre elas se tomou muito grande. Ou seja, a continuidade plástica e significativa entre uma imagem e outra passou a ser excessivamente forte. Razão pela qual eu devo dizer que o Tríptico de Praia é, de longe, o tipo de composição em sequência mais difícil que eu já enfrentei até hoje. Preste atenção a isso: meu plano será fazer no máximo 48 trípticos; eu queria fazer dois grupos de 24 trípticos, como uma espécie de homenagem à ideia do de 24 composições cada uma. Eu tenho plano para os 24. Não cheguei a imprimir os 24 porque o tipo de papel que eu uso não é mais fabricado no Brasil e estou sem papel para isso. Mas para fazer o plano para esses 24 trípticos de praia, além do imenso estoque de fotografias de praia que eu já tinha, devo ter ampliado perto de mil e feito novas fotos, já com o propósito de explorar essas fotos para a composição dos trípticos. Por sua vez, cada foto dessa era inspecionada nos meus arquivos de negativos tendo em vista os trípticos. De modo que já havia previamente uma seleção muito grande dos negativos e na hora tomava nota das fotos que deviam ser ampliadas, muitas vezes eu tive de imprimir uma quantidade enorme de variantes do mesmo assunto. Às vezes, quando eu estava fotografando um garoto na praia, pela minha própria ideia obsessiva, eu batia, dez, vinte tomadas diferentes. Mas quando eu ia usar isso num tríptico muitas vezes eu podia usar apenas uma imagem, porque há trípticos que são compostos pelo mesmo garoto na mesma situação. Em geral, esses representam uma quantidade enorme de imagens tomadas, mas a maioria dos trípticos é feito por garotos diferentes em situações completamente independentes entre si e nos quais eu tenho de achar a harmonia. De modo que, para compor apenas 24 trípticos, às vezes tem de ser feita uma ampliação inicial de 18 x 24 e provavelmente de mais de mil fotos de praia. E o trabalho de casamento de imagem com outra…

JP – É extremamente difícil.

AG – …é extremamente difícil. Na sonatina, por exemplo, a coisa ficou muito mais facilitada, porque a sonatina sempre se refere a uma única sequência.

JP – E um desenho fotográfico, como você chama também.

AG – Além de ser um desenho fotográfico, e mais por causa da parte técnica fotográfica, que não pode ser nítida. Ela tem de ser um esboço, quase que um borrão fotográfico. Mas acontece que cada sonatina é uma única sequência que aconteceu na realidade; ela é o retrato de um único evento ocorrido na praia, composta em tomo de um único evento, ao passo que no tríptico de praia isso raramente acontece.

JP – Alair, como você foi fazendo essas fotos dos rapazes na praia? Você já me disse que boa parte dessas fotografias você fez daqui, da janela do seu apartamento no sexto andar. Apesar de ser de fundos, felizmente você não tem edifício a sua frente e pode ver muito bem a praia daqui. Você disse que usou uma lente teleobjetiva de 135.

AG – Da praia eu tenho exclusivamente as sonatinas. Eu não tenho nenhum outro material fotográfico, tirado da minha janela, que não sejam as sonatinas. Eu tenho negativos de fotos em abundância, para uma outra composição, tiradas de janela – por causa da distância e da necessidade de grande ampliação – que eu trato também de desenho fotográfico. É uma ideia que pretendo desenvolver sob o conceito de mantras abdominais. Aí no caso seria apenas um garoto dourado fazendo exercício abdominal. Mas eu ainda não compus nenhum mantra abdominal. Tudo que eu campus até agora com fotos tiradas da janela foram as sonatinas. Todas as minhas outras fotos de praia, a imensa maioria dos meus negativos de praia, foram tiradas diretamente na praia.

JP – Mas sempre com teleobjetiva?

AG – Não. Eu uso 300 na praia também, mas com maior frequência a 135 e muitas vezes a própria 50.

JP – E qual é a relação com os rapazes?

AG – Em geral eu acho que é muito boa. Acontece simplesmente o seguinte: todos esses garotos têm uma consciência extremamente nítida da sua excepcional beleza; têm a mais do que justificável necessidade de exibir essa beleza. É um dos modos mais autênticos, genuínos e justos que eles têm de fruir da sua própria beleza e exibí-la em público. É óbvio que no íntimo de sua personalidade um garoto desses exige homenagem à sua própria beleza; que ele saia em lugar público exibindo seu corpo, nada para ele pode ser mais natural do que receber uma homenagem a beleza dele. Em última análise eu creio que, quando eles me percebem fotografando obsessivamente, eles entendem isso como uma homenagem que estou prestando a beleza deles e isso deve torná-los satisfeitos. É verdade que, pela quantidade fantástica de preconceitos sociais, eles imediatamente identificam a atração que obviamente estão exercendo sobre mim como homossexualismo de minha parte. Principalmente em público eles não querem compactuar com isso. De modo que a atitude, na imensa maioria dos casos, é fingir que ignora que estou fotografando. Entretanto, ele se deixa fotografar. De qualquer maneira, aquilo é uma justa homenagem que ele está recolhendo. Mas há muitos casos diferentes. Vários deles de maneira mais natural e espontânea comigo, sem que isso queira dizer absolutamente que pretendam vir para a cama comigo ou mesmo que aceitariam um convite meu. Eles vem falar comigo. Os protestos existem também, mas felizmente são raríssimos.

JP – Com muitos dos rapazes que você fotografou na praia você teve uma relação mais íntima?

AG – A partir de um certo tempo eu erotizei de uma maneira tão grande a minha atividade fotográfica – talvez eu hoje esteja me livrando um pouco dessa obsessão -, que a abordagem de um jovem desconhecido para mim só passou a ser possível se eu estava com a câmara na mão. Eu fotografei tantos garotos com os quais eu tive vontade de ir para a cama que, comparado com o número dos que na verdade chegaram a minha cama, a proporção e ínfima. De qualquer maneira a máquina fotográfica foi mesmo um instrumento…

JP – Sexual, um falo.

AG –… de abordagem. Há em relação à minha personalidade uma coisa também interessante. Minha prática do erotismo sempre desejou se desenvolver na forma de uma homenagem que eu queria prestar a um rapaz que, por sua beleza e sexualidade, eu praticamente divinizava. Tenho uma característica que talvez limite minha personalidade, principalmente agora na velhice: eu nunca desejei homenagem ao meu corpo ou ao meu sexo. Eu desejei foi a oportunidade de homenagear o corpo alheio.

Então, esse é meu gênero de abordagem coincidiu com […] entrou em harmonia muito grande com a prática da fotografia de garotos e também com essa tendência que se formou em mim de só fazer uma abordagem erótica nova por meio da fotografia. Era uma homenagem que eu estava prestando. E conforme fui envelhecendo cada vez se tomou mais nítida também a consciência de que eu não podia apresentar nenhum atrativo erótico para esses garotos. O que eu poderia apresentar de interesse para eles, do ponto de vista erótico, era justamente minha homenagem erótica à beleza deles.

JP – Alair, em maio do ano que vem você vai fazer, na Cândido Mendes, a exposição das fotografias eróticas dos jovens e belos rapazes. Você não acha que os homens heterossexuais vão ficar muito incomodados com isso?

AG – Eu tenho a impressão de que isso é possível… Não sei fazer uma previsão certa. Até pouco tempo atrás isso pareceria óbvio. E dependendo também de você ter persistência. Quando eu fiz a exposição da sequência dos cento e tantos (ou trinta) garotos andando na praia, lá no Shopping Cassino Atlântica, um coronel, do condomínio do Cassino Atlântica, que era simplesmente o representante da ilibada Capemi, proprietária da maioria das lojas do Shopping, fez um escândalo, dizendo que minha exposição era absolutamente imoral – parece até que puxou um revolver – e que não permitia, em nome da ilibada Capemi, que o trabalho fosse exibido.

JP – Mentira! É mesmo? Que horror!

AG – Ele era da Capemi, e é muito importante que isso fique bem gravado. Isso se compreende e aconteceu com um coronel. A exposição acabou ficando lá mais de um mês. Que outro coronel da Capemi apareça é muito possível! Mas os coronéis da Capemi não estão muito em moda, culturalmente não são muito atrativos hoje para a população. A partir dos anos 60, a liberação dos costumes foi tão grande que a minha ideia é de que os jovens que vão ver as fotografias lá possivelmente não vão se irritar. Talvez a reação deles seja muito parecida com a reação à minha “fotografação” na praia: tentem ignorar, passem por lá e finjam que não veem, que deem de ombros e vão embora. Se eles vão parar para meditar sobre o assunto, vai ser uma questão pessoal. Eu não excluo a possibilidade de ter algum aborrecimento grave por causa disso, mas isso não me parece muito provável, não. Em relação à minha “fotografação” em praia, há uma coisa interessantíssima: eu já tive protestos. Felizmente são raríssimos. Muito raros, mas tão raros mesmo que não cria nenhuma inibição de voltar a praia tantas vezes quanto eu tempo eu tenha para fotografar. Muitas vezes há risos em torno de mim, as pessoas apontam, riem como se eu fosse um palhaço, um doido. Mas esses não são os garotos. Desse número mínimo de protestos há uma coisa engraçadíssima: a imensa maioria desses protestos, 90% dos protestos, foram de garotos feios que eu não estava fotografando.

JP – Garotos feios que você não estava fotografando!

AG – Obviamente é incômodo ele ver que outro recebe homenagem e ele não.

JP – E como as mulheres recebem seu trabalho?

AG – Eu tenho uma quantidade enorme de amigas, inclusive amigas jovens, estudantes, de todas as idades, desde garotas de vinte anos de idade, que foram minhas estudantes há pouco tempo, até senhoras a quem tenho mostrado isso. E quase sempre a reação é muito positiva. A situação da mulher em relação à ascensão da homossexualidade masculina no presente é muito curiosa, muito diferente do que a gente poderia esperar. A mulher tem reagido a isso de uma maneira inesperadamente livre, aberta, muito menos preconceituosa do que o homem. Parece que ela só protesta no caso, perfeitamente compreensível, que é o seguinte: quando seus interesses pessoais estão em jogo. Mas da mesma maneira que no jogo heterossexual, praticamente sem nenhuma diferença. Em relação às fotografias do tipo sonatina, onde aparece um certo elemento óbvio de atração erótica de um garoto pelo outro, atração erótica essa que é visível, que, segundo tudo indica não é explicitamente aceita por ele, ao reconhecer esse fato eu tenho a impressão de que a maioria das mulheres sentem um certo júbilo, uma certa alegria, provavelmente e uma espécie de expressão do júbilo dela contra a ideia do machismo. Parece que aquilo justifica toda a oposição contemporânea ao conceito de machismo, oposição que tanto rege a obra da própria mulher. Essa impressão me parece visível. A compreensão do elemento feminino com esse meu gênero de fotografia, mesmo quando sai da sonatina para outro gênero, um gênero mais erótico, é fantástica, tem sido muito boa.

JP – Alair, a fita esta acabando. O que você vai dizer é capaz de ser interrompido por isso. Mas, por favor, conclua com alguma coisa.






CAIXA CULTURA DO RJ EXIBE FOTOGRAFIAS
DE ALAIR GOMES
(13/12/2016-19/02/2017)

Caixa Cultural Rio de Janeiro exibe fotografias de Alair Gomes | 13/12/2016 - 19/02/2017


PERCURSOS: ALAIR GOMES

Considerado um dos precursores da fotografia homoerótica no Brasil, Alair Gomes notabilizou-se a partir dos anos 1960 pelas fotografias que enfocam o corpo do homem belo e jovem, seguindo a tradição da história da arte, notadamente das esculturas greco-romanas. Com forte acento voyeurista, muitas de suas fotografias, realizadas entre 1960 e 1992, foram feitas a partir da janela e também no perímetro de seu apartamento na orla da praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Desde então, sua produção tem sido estudada por críticos brasileiros e estrangeiros, e vem ganhando espaço em livros, revistas, galerias e museus.

Séries e temas

“Alair Gomes ­– Percursos” é aberta com uma série inédita de 32 fotografias da Praça da República, em São Paulo, em 1969, auge do movimento hippie no Brasil. Chiodetto se surpreendeu ao encontrar essa série em sua pesquisa no acervo da Biblioteca Nacional: “essas imagens ajudam a entender a pulsão da obra de Alair como um desdobramento da revolução comportamental ocorrida após maio de 1968, é uma ode ao hedonismo, aos prazeres sem culpa possibilitado pelo sexo livre e pela regressão de certos dogmas”, diz o curador.

Em “Sonatinas, Four Feet” (1970-1980), o artista alude à composição musical para criar sequências com imagens de uma ação que ocorre num tempo-espaço bem definido, em geral com dois rapazes se exercitando na praia.
”Essa narrativa fraturada nos dá a percepção de uma coreografia ritmada e sensual. Por meio dessa estratégia, Alair extrai da cena um erotismo muitas vezes imperceptível para quem a vê no contínuo do tempo”, escreve Eder Chiodetto. Entre as séries sequenciais que tornaram a obra de Gomes conhecida mundo afora, a curadoria selecionou treze “Beach Triptych”, série de trípticos focada em jovens que se exercitam na praia flagrados do calçadão de Ipanema nos anos 1980.

Realizada entre 1967 e 1974, a série “The Course of the Sun” apresenta 25 fotografias feitas a partir do apartamento à beira-mar em Ipanema, onde Alair morava. Usando lentes de longo alcance, ele fotografava rapazes indo e vindo da praia de sunga. A sombra dos corpos se alonga no chão criando uma tensão entre a figura e sua projeção.

Em “Esportes” (1967-1969), Alair fotografa atletas de diversas modalidades esportivas. Esses registros, porém, são muitos diferentes daqueles que normalmente vemos na cobertura esportiva realizada por fotojornalistas. Alheio à competição, o olhar de Alair perscruta os corpos dos rapazes com foco na musculatura, no contorno, no movimento por meio do qual esses corpos bem torneados revelam a perfeição da forma. “Bem-aventurado sou eu, por ter tantas vezes adorado a elevação e a manifestação da via sagrada do mundo na carne dos jovens rapazes”, escreveu Alair em seu diário.

Na sala anexa ao espaço expositivo, por sua vez, estão fragmentos da série “Symphony of Erotic Icons” (1966-1978), realizada no estúdio caseiro do fotógrafo. Não raro, Alair mostrava aos garotos da praia as fotos que realizava furtivamente e os convidava para seu estúdio, onde promovia sessões fotográficas mais íntimas, explorando diferentes ângulos e sombras de seus corpos nus. Chiodetto complementa a série com outra, intitulada “A New Sentimental Journey”, espécie de diário textual-imagético que trata da viagem do artista para a Inglaterra, França, Suíça e Itália em 1969, onde Alair revela seu apreço pela estatuária clássica greco-romana.





Alair Gomes

A exposição Alair Gomes e Robert Mapplethorpe na Fortes D’Aloia & Gabriel traz uma aproximação inédita entre a obra de Alair Gomes (1921–1992) e de Robert Mapplethorpe (1946–1989). Esta é a terceira exposição de Mapplethorpe na Galeria e a primeira em que o trabalho do célebre fotógrafo americano é visto lado a lado de um artista brasileiro.

O ponto de partida deste diálogo é o desejo – compartilhado por ambos os artistas em textos e entrevistas – de fazer presente em suas obras a experiência de transcendência do sexo. A exposição explora essa relação através do olhar que busca no corpo a perfeição da escultura clássica; na noção de teatralidade presente em Mapplethorpe em oposição ao corpo natural de Gomes; e finalmente na praia como um lugar idealizado do prazer, retratada por ambos os artistas. Dessa forma, os trabalhos são intercalados formando grupos temáticos, sem uma ordem cronológica. Embora as fotografias apresentadas partam de um período próximo, do final da década de 1970 ao início dos anos 1980, essa aproximação é também capaz de marcar algumas diferenças fundamentais entre a produção dos dois. É curioso notar, por exemplo, que enquanto Mapplethorpe nomeia seus personagens, não apenas mostrando seus rostos, mas emprestando-lhes status de celebridade, Gomes opta pelo anonimato total.

Ao longo da maior parede da Galeria, um grupo heterogêneo de imagens de Mapplethorpe trata a praia como um lugar de hedonismo e prazer. O corpo parece integrar-se à paisagem em poses que imitam relevos, fotografados à luz do sol. Outras fotos menos conhecidas revelam o olhar do artista sobre a paisagem crua. Essas imagens são intercaladas com as Sonatinas, Four Feet (1970–1980) de Alair Gomes, realizadas com uma teleobjetiva da janela de seu apartamento em Ipanema. Embora conceda um alcance maior, o uso dessa lente reduz a nitidez das imagens, de modo que as Sonatinasprivilegiam a composição geométrica dos corpos em relação à textura contrastada da areia e aos instrumentos de ginástica. O olhar distante procura na ação espontânea uma estrutura geométrica rígida, ao mesmo tempo em que explicita códigos não falados da masculinidade, da interação e da intimidade entre dois homens em público.

Ao fundo da Galeria, fotos de estúdio de Mapplethorpe retratam partes do corpo em recortes precisos, cuidadosamente posados e iluminados com objetivo de realçar suas qualidades escultóricas – volume, peso e superfície estão em evidência. O corpo da fisiculturista Lisa Lyon se mistura aos nus masculinos dessa sequência, denotando a preocupação do artista nas questões de representação de gênero. Ao lado dessas imagens, aparecem os Beach Triptychs (c. 1980) de Gomes que, apesar de sua natureza espontânea, do momento captado sem pose, traduzem a mesma preocupação com a representação clássica de um corpo-escultura.

Um terceiro grupo une imagens de S&M de Mapplethorpe (como Leather Crotch e Frank Diaz, ambas de 1980) com outras onde papéis masculinos e questões de raça são evidenciados por vestimentas. Hooded Man (1980), por exemplo, mostra um homem negro totalmente pelado usando apenas um capuz. Esse grupo aparece lado a lado da obra Sonatinas, Four Feet nº 32, talvez a mais explicitamente homoerótica da série.

Robert Mapplethorpe (Nova York, EUA, 1946 – Boston, EUA, 1989) é um dos artistas americanos mais importantes do século XX. Sua produção, catalogada e organizada ainda durante sua vida, continua sendo vista e reexaminada à luz das discussões contemporâneas de gênero. Com o apoio da Robert Mapplethorpe Foundation, criada em 1988, sua obra tem sido tema de retrospectivas em diversas instituições. Destacam-se suas exposições recentes em: Kunsthal Rotterdam (Roterdã, 2017), The Getty Museum of Art (Los Angeles, 2016), LACMA (Los Angeles, 2016), Montreal Museum of Fine Arts (Montreal, 2016), Kiasma Museum (Helsinki, Finlândia, 2015), Bowes Museum (Durham, Reino Unido, 2015), Tate Modern (Londres, 2014), Grand Palais (Paris, 2014), Musée Rodin (Paris, 2014). Mapplethorpe está presente em diversas coleções importantes ao redor do mundo, entre as quais: MoMA (Nova York), Solomon R. Guggenheim Museum (Nova York), Metropolitan Museum of Art (Nova York), Whitney Museum of Modern Art (Nova York), SFMOMA (San Francisco), Tate (Londres), National Portrait Gallery (Londres), Centre Georges Pompidou (Paris), Stedelijk Museum (Amsterdã), Museum of Contemporary Art (Tóquio).

Alair Gomes (Valença, Brasil, 1921 – Rio de Janeiro, Brasil, 1992), apesar de celebrado por um público seleto, permanece pouco conhecido e estudado, tanto no Brasil quanto fora. Sua obra tem sido resgatada aos poucos, especialmente desde o sucesso de sua exposição na Fondation Cartier, Paris, em 2001. Suas exposições recentes incluem: Young Male, Casa Triângulo (São Paulo, 2016), Muito Prazer, Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, 2016), Percursos, Caixa Cultural (São Paulo, 2015), 30. Bienal de São Paulo (2012), A New Sentimental Journey, Maison Européenne de la Photographie (Paris, 2009).




































































































































































DESEJO EM MOVIMENTO
(MINHA VERSÃO PARA AS IMAGENS DE ALAIR GOMES)













































Bibliografia