SUPREMACISMO BRANCO
Um menino com uniforme da Juventude Hitlerista posa com uma garrafa de leite para uma propaganda nazista. Tangermünde, Alemanha, 1937.
Reavivado pela "alt right" nos últimos anos, a reivindicação do ato de beber leite como um símbolo de supremacia branca é bem mais antigo.
Embora o leite e seus derivados sejam utilizados como alimentos por seres humanos há milênios, a maior parte da população mundial não consegue digerir de forma completa o açúcar presente nos laticínios. Estima-se que até 65% a 79% dos seres humanos possuem intolerância à lactose.
No Brasil, 43% dos brancos e dos mulatos têm alelo de persistência da lactase, sendo a hipolactasia mais frequente entre os negros e japoneses. Entretanto, na prática clínica indivíduos com hipolactasia podem ser orientados a consumir alguns derivados do leite e alimentos contendo lactose sem apre- sentar sintomas de intolerância, enquanto que outros terão que fazer restrição de lactose na dieta. (Mattar e Mazo, 2010).
Pesquisas tem mostrado que 70% dos brasileiros apresentam algum grau de intolerância à lactose, que pode ser leve, moderado ou grave, segundo o tipo de deficiência apresentada. (Varella, 2020).
Via de regra, os mamíferos, incluindo os humanos, perdem a capacidade de digerir a lactose após o desmame. Essa perda está ligada a parada da produção de uma enzima da classe das hidrolases, a β-galactosidase, comumente conhecida como lactase, e que é produzida com a função de catalisar a reação de hidrólise da lactose um carboidrato, (um dissacarídeo), formado pelos monossacarídeos galactose e glicose que são, facilmente, absorvidos no intestino. No entanto, a domesticação de animais leiteiros e o consumo frequente do produto levou alguns grupos a desenvolverem uma maior tolerância à lactose.
A enzima Lactase
A Lactase é uma enzima, a β-galactosidase, presente na extremidade distal da borda em escova da parede intestinal, e essencial para a digestão da lactose.
Lactose. β-D-Galactopiranosil-(1-4)-D-Glicose (WP)
A lactose compreende cerca de 2–8% do peso do leite. Vários milhões de toneladas são produzidas anualmente como subproduto da indústria de laticínios. Soro de leite ou plasma de leite é o líquido que resta depois que o leite é coalhado e coado, por exemplo, na produção de queijo. O soro de leite é composto por 6,5% de sólidos, dos quais 4,8% é lactose, que é purificada por cristalização. Industrialmente, a lactose é produzida a partir do permeado de soro de leite, soro de leite filtrado para todas as principais proteínas. A fração proteica é usada na nutrição infantil e na nutrição esportiva, enquanto o permeado pode ser evaporado até 60–65% de sólidos e cristalizado durante o resfriamento. A lactose também pode ser isolada por diluição do soro de leite com etanol.(WP). Produtos lácteos como iogurte e queijo contêm baixo teor de lactose (muito pouca lactose). Isso ocorre porque as bactérias utilizadas na fabricação desses produtos decompõem a lactose por meio do uso de β-galactosidases.
A lactose é um dissacarídeo, presente no leite, que precisa ser hidrolisado em seus constituintes, os monossacarídeos: glicose e galactose, para que sua absorção ocorra (Forsgärd, 2019).
Ao longo da evolução, mamíferos desenvolveram um padrão de expressão gênica no intestino delgado que promove a elevada produção de enzima lactase no início da vida e esse padrão é desativado na época do desmame. A produção elevada de lactase é uma característica crítica para a sobrevivência de neonatos, que dependem, naturalmente, do leite materno, uma vez que usam a glicose e a galactose como matérias primas para produção de ATP. (Montgomery, 2007, Ugidos-Rodriguez, 2018).
A ausência de atividade da lactase nessa fase, nos mamíferos, é conhecida como deficiência congênita de lactase, e é muito rara, pois nos primórdios da humanidade essa condição levaria naturalmente à morte. A seleção natural sobre esse gene ou genes, que produzem lactase normal bastante intensa, pois qualquer alteração na enzima leva a perda de sua atividade, o que diminui a chance de indivíduos com essa condição chegar a idade adulta, aumentando a mortalidade infantil. Entretanto, a diminuição da atividade da lactase ao longo do desenvolvimento, é uma condição conhecida como lactase-cessante, é observada na maioria das populações humanas adultas.
A persistência da lactase (o fenômeno que permite que adultos consigam digerir a lactose, usando-a como uma fonte de energia e cálcio) ocorre de forma mais acentuada nas populações que vivem em regiões de clima hostil, e que historicamente sempre dependeram muito do consumo de leite não humano (leite de vaca, cabras, ovelhas etc.).
Segundo Varella (2020) a intolerância à lactose é o nome que se dá à incapacidade parcial ou completa de digerir o açúcar existente no leite e seus derivados. Ela ocorre quando o organismo não produz, ou produz em quantidade insuficiente, a enzima digestiva chamada lactase, que quebra ou hidrolisa, a lactose, i.e., o açúcar do leite, como vimos acima. Como consequência, esse dissacarídeo (lactose) chega ao intestino grosso inalterado. Ali, ele se acumula e é fermentada por bactérias que fabricam ácido lático e gases, promovem maior retenção de água e o aparecimento de diarreias e cólicas.
Ainda segundo Varela, (2020) é importante estabelecer a diferença entre alergia ao leite e intolerância à lactose. A alergia é uma reação imunológica adversa às proteínas do leite, que se manifesta após a ingestão de uma porção, por menor que seja, de leite ou derivados. A mais comum é a alergia ao leite de vaca, que pode provocar alterações no intestino, na pele e no sistema respiratório (tosse e bronquite, por exemplo).
A intolerância à lactose é um distúrbio digestivo associado à baixa ou nenhuma produção da enzima lactase pelo intestino delgado. Os sintomas variam de acordo com a maior ou menor quantidade de leite e derivados ingeridos.
A prevalência mundial da intolerância à lactose só foi descoberta na década de 1960. Mas, intuitivamente, as populações adaptaram suas culturas alimentares a essa condição. No Sudeste Asiático e na África Meridional, o consumo de laticínios sempre foi muito baixo.
Essas simples diferenças na produção da enzima, que ocorrem entre as culturas humanas e seus regimes alimentares foram gradualmente incorporadas pelas teses do racismo científico a partir do século XVIII e utilizadas para reafirmar os valores eurocêntricos e justificar o domínio colonial sobre os povos de outros continentes.
A tese era a de que até mesmo a alimentação do homem europeu o fazia superior aos demais. Warren Hastings, governador britânico da Índia, afirmava que os europeus possuíam cérebros mais desenvolvidos do que os indianos porque comiam carne e bebiam leite.
Essas ideias foram fortalecidas com o desenvolvimento do darwinismo social e da eugenia no fim do século XIX, alimentando o supremacismo branco, sobretudo nos Estados Unidos, onde vigorava o violento regime segregacionista das Leis de Jim Crow.
O consumo preferencial do leite por brancos era vendido como um sinal de superioridade. Um panfleto do Conselho Nacional de Laticínios dos anos 20 assegurava que “as pessoas que consomem grandes quantidades de leite se destacam na ciência e nas atividades intelectuais”.
Em seu “History of Agriculture of the State of New York”, publicado em 1933, Ulysses Hedrick especulava que o grande consumo de leite seria um dos fatores responsáveis pelo “rápido e alto desenvolvimento” dos povos arianos, tornando-os “física e mentalmente mais fortes”.
Na Alemanha nazista, o leite também foi utilizado como um símbolo de pureza, força e vitalidade, evocando a alegada superioridade da “raça ariana”, ao mesmo tempo em que servia ao projeto econômico de substituir o consumo de produtos importados por alimentos naturais.
A descoberta de que a persistência da lactase variava a cada grupo étnico gerou bastante debate, mas não resultou na alteração das políticas de fomento ao setor de laticínios. O Departamento de Saúde dos EUA seguiu recomendando o consumo de leite a todas as minorias.
Nos últimos anos, grupos racistas dos EUA desenvolveram teses pseudo-científicas, ou teorias da conspiração, baseadas nesse debate. Supremacistas brancos passaram a defender a ideia de que as pessoas de ascendência europeia sofrem menos de intolerância à lactose por serem “geneticamente superiores”. Uma ideia que não tem fundamento algum na realidade.
Essas ideias foram difundidas em fóruns frequentados por extremistas de direita nas redes sociais. Assim, ostentar orgulho de poder beber leite se tornou um código reivindicado por pessoas que se julgam racialmente superiores.
A tese, obviamente, é esdrúxula. A persistência da lactase é apenas uma de inúmeras características genéticas isoladas, como por exemplo, a menor incidência de melanoma em pessoas de pele negra. Mas isso não impediu que fosse abraçada com entusiasmo pela “alt right”.
Ideólogos da extrema-direita como Richard Spencer, presidente do “think tank” supremacista National Police Institute, e Tim Treadstone, vulgo “Baked Alaska”, tem ajudado a popularizar a tese nas redes sociais e na base de apoio trumpista.
Grupos de supremacistas brancos e neonazistas tem organizado manifestações onde se reúnem para beber leite e se gabar de sua alegada superioridade racial. Publicar fotos bebendo leite nas redes sociais também se tornou um código frequentemente usado para evocar tais ideias, e para informar outros supremacistas, que aquele perfil concorda com tais teses.