Leonardo Sanchez
RIO DE JANEIRO A ditadura bra sileira matou uma revolução musical em curso nas décadas de 1950 e 1960. Depois, a Argentina matou um dos maiores expoentes desse movimento. E uma afirmação forte do personagem ficcional que conduz “Atiraram no Pianista”, ao refletir sobre a bossa nova e uma de suas dezenas de dedos mais talentosas, Francisco Tenório Júnior.
Hoje pouco lembrado, o pianista passa por um resgate no Festival do Rio, que nesta quinta-feira abriu uma edição com uma animação pela primeira vez. O filme entra em circuito nacional no final do mês.
A escolha do filme é curiosa pela natureza agridoce da trama. Por um lado, é uma carta de amor à bossa nova e ao Rio de Janeiro. Por outro, denuncia com melancolia os horrores das ditaduras latinas.
Tenório Júnior desapareceu em 1976 numa Buenos Aires prestes a sofrer um golpe, mas já sitiada por militares.
Ele fazia uma série de apresentações ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho, quando, numa madrugada, deixou seu hotel e nunca mais voltou.
Até hoje não há uma versão oficial para o caso do músico, que não tinha envolvimento com atividades políticas e tampouco era um perseguido pela ditadura brasileira.
Misturando documentário e ficção, o filme acompanha um jornalista americano, encantado com a bossa nova e o samba jazz, que decide escrever um livro sobre Tenório Júnior.
Ele chega num Rio de Janeiro colorido e romântico, onde se reúne com expoentes da música, parentes e amigos de Tenório Júnior. O jornalista não é real, mas os encontros, sim.
Dupla já indicada ao Oscar por “Chico e Rita”, os espanhóis Javier Mariscal e Fernando Trueba mergulharam num processo de quatro anos que os levou à casa de gente como Chico Buarque, Caetano, Gil e Milton Nascimento, todos no filme em forma de desenho.
Edu Lobo, Ferreira Gullar, João Donato, Toquinho, João Gilberto e parentes de Vinicius de Moraes também deram entrevistas, que nas telas viraram uma conversa com o tal jornalista americano.
Por que um diretor de Madri estaria fazendo uma investigação no Brasil? Seria mais crível um jornalista de Nova York, porque a música brasileira teve grande influência na americana. E há a relação política, porque todas as ditaduras da América Latina foram apoiadas pelos Estados Unidos", diz Mariscal.
"E depois [Henry] Kissinger (secretário de Estado americano, entre os anos 1960 e 1970) ainda ganhou um Nobel da Paz, mesmo com a quantidade de mortos que esse filho da puta carrega nas costas.
O cineasta conta que, mesmo espanhois, ele e Trueba admiram a cultura brasileira e ficaram intrigados com a história esquecida. Eles até tentaram buscar uma coprodução na Argentina e no Brasil, mas diz que estava difícil conseguir verba para esse tipo de filme no governo Bolsonaro.
A animação foi uma saída para recriar eventos que não poderiam ser contados com imagens de arquivo. O filme também homenageia os principais nomes da bossa nova, incluindo uma cena que rememora o primeiro encontro de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.
Chapadas, com cores blocadas e movimentos travados, as ilustrações de “Atiraram no Pianista” reverberam os desenhos industriais de Mariscal, que fez carreira no design antes de chegar ao cinema.
Mariscal diz que a escolha de cores quis refletir os sentimentos de cada depoimento, evocando melancolia, saudade e alegria. “Queríamos a identidade do Rio, um lugar com muita luz, tropical. Para mim, o Rio é uma selva querendo engolir uma cidade. e uma cidade querendo engolir uma selva. É como uma ópera.”
(O repórter viajou a convite do festival).
Atiraram no Pianista
Espanha, França, Holanda, 2023. Dir: Javier Mariscal e Fernando Trueba.
Estreia em 26 de outubro nos cinemas.