COMO A SOLIDÃO ALIMENTA
O AUTORITARISMO
“Na vida solitária, você pode fazer companhia a si mesmo, estabelecer uma conversa consigo mesmo. Nessa solidão, não perde contato com o mundo, porque o mundo da experiência sempre está presente em nossos pensamentos. Para citar Arendt (que por sua vez citava Cícero): 'Um homem nunca está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo. Isso é o que o pensamento ideológico e o pensamento tirânico destroem: nossa capacidade para pensar com e para nós. Essa é a raiz da solidão organizada'”, escreve Samantha Rose Hill, diretora-assistente do The Hannah Arendt Center at Bard College, em artigo publicado por Letras Libres, 01-12-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Hannah Arendt
“O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, outrora uma experiência liminar habitualmente sofrida em certas condições sociais marginais como a velhice, se tornou uma experiência cotidiana” - Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (1951)
“Por favor, escreva-me regularmente, caso contrário, vou morrer aqui”. Hannah Arendt não costumava começar as cartas a seu marido desse modo, mas na primavera de 1955 se viu só em um “marasmo”. Após a publicação de “Origens do totalitarismo”, recebeu um convite para ser professora visitante na Universidade da Califórnia, Berkeley. Não gostava da atmosfera intelectual. Seus colegas não tinham senso de humor e a nuvem do macarthismo sobrevoava a vida social.
Disseram-lhe que teria trinta alunos em suas aulas de licenciatura: havia cento e vinte em cada uma. Detestava dar aulas magistrais todos os dias: “Simplesmente, não posso me expor diante do público cinco vezes por semana, ou seja, nunca sair do olhar público. É como se eu tivesse que ir por aí procurando por mim mesma”.
O oásis que encontrou era o estivador convertido em filósofo Eric Hoffer, mas também tinha dúvidas sobre ele. Disse a seu amigo Karl Jaspers que Hoffer era “o melhor que este país pode oferecer”. Disse a seu marido Heinrich Blücher que Hoffer era “muito encantador, mas não brilhante”.
Os períodos de solidão não eram raros para Arendt. Desde muito pequena, tinha uma aguda percepção de ser diferente, uma outsider, uma pária, e muitas vezes preferia ficar só. Seu pai morreu de sífilis quando ela tinha sete anos. Ela fingiu todos os tipos de doenças para evitar ir ao colégio e ficar em casa. Seu primeiro marido a deixou em Berlim, após o incêndio do Reichstag. Foi apátrida durante quase vinte anos. Mas, como sabia Arendt, a solidão é parte da condição humana. Todo mundo se sente só de vez em quando.
Ao escrever sobre a solidão, muitas vezes se cai em um destes dois campos: a memória excessivamente indulgente ou a medicalização racional que trata a solidão como algo que pode ser curado. Os dois enfoques deixam o leitor um pouco frio. Um fica obcecado com a solidão, ao passo que o outro tenta se livrar dela por completo. E isto em parte se deve ao fato de que a solidão é muito difícil de comunicar.
Quando começamos a falar de solidão, transformamos uma das experiências que é percebida de maneira mais profunda em um objeto de contemplação e algo submetido à razão. A linguagem não consegue capturar a solidão porque a solidão é um termo universal que se aplica a uma experiência particular. Todo mundo experimenta a solidão, mas de modo diferente.
Como palavra, “loneliness” é relativamente nova para o idioma inglês. Um de seus primeiros usos está na tragédia Hamlet de William Shakespeare, que foi escrita por volta de 1600. Polônio roga a Ofélia: “Leia este livro, que mostrar esse exercício pode colorir sua solidão” (Ele a aconselha a ler um livro de orações, para que ninguém suspeite de que está sozinha: a conotação é não estar com os outros, em vez de qualquer sentimento de querer estar).
Ao longo do século XVI, muitas vezes, evoca-se a solidão em sermões para assustar os paroquianos e distanciá-los do pecado: pedia-se às pessoas que se imaginassem em lugares solitários como o inferno ou em uma sepultura. Mas com o século XVII já bem avançado, a palavra poucas vezes era utilizada.
Em 1674, o naturalista inglês John Ray incluiu “solidão” em uma lista de palavras de uso pouco frequente, e a definiu como um termo para descrever lugares e pessoas “distantes de seus vizinhos”. Um século mais tarde, a palavra não havia mudado muito.
No “Dicionário da língua inglesa” (1755), Samuel Johnson descreveu o adjetivo “lonely” só em termos de estar só (a “raposa solitária”) ou relacionado a um lugar deserto (“rochas solitárias”), de maneira semelhante ao modo como Shakespeare utilizou o termo no exemplo anterior de Hamlet.
Até o século XIX, a solidão estava relacionada a uma ação – cruzar uma fronteira, viajar para um lugar fora de uma cidade – e tinha menos a ver com as emoções. Descrições da solidão e o abandono eram utilizadas para induzir o terror da inexistência nos homens, para fazer com que imaginassem o isolamento absoluto, separados do mundo e o amor de Deus. E, de certo modo, faz sentido. A primeira palavra negativa que Deus disse sobre sua criação na Bíblia aparece no Gênesis, após criar Adão: “E o Senhor Deus disse: Não é bom que o homem esteja só, vou lhe dar uma companhia idônea”.
No século XIX, na modernidade, a solidão perdeu sua conexão com a religião e começou a ser associada aos sentimentos laicos da alienação. O uso do termo começou a aumentar bruscamente, após 1800, com a chegada da Revolução industrial, continuou aumentando até os anos noventa do século XX e se estabilizou, para aumentar novamente nas primeiras décadas do século XXI.
A solidão ganhou caráter e causa em “Bartleby, o escrivão”, de Herman Melville (1853), nas pinturas realistas de Edward Hopper e no poema “A terra inútil” de T. S. Eliot (1922). Estava enraizada na paisagem social e política, recebia um ar romântico, era poetizada, lamentada.
Contudo, em meados do século XX, Arendt se aproximou da solidão de outro modo. Para ela, era algo que podia ser feito e algo que podia ser experimentado. Nos anos cinquenta, quando tentava escrever um livro sobre Karl Marx, no apogeu do macarthismo, começou a pensar na solidão e em sua relação com a ideologia e o terror. Arendt pensava que a experiência da solidão havia mudado sob as condições do totalitarismo:
“O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, outrora uma experiência liminar habitualmente sofrida em certas condições sociais marginais como a velhice, se tornou uma experiência cotidiana”.
O totalitarismo no poder encontrou uma forma de cristalizar a experiência ocasional da solidão em um estado permanente. Por meio do uso do isolamento e o terror, os regimes totalitários criaram as condições para a solidão, e depois apelaram com propaganda ideológica à solidão das pessoas.
Antes de sair para dar aulas em Berkeley, Arendt havia publicado um ensaio sobre “Ideologia e terror” (1953) que abordava o isolamento e a solidão (tanto no sentido de “loneliness”, como no de “solitude”, às vezes, traduzido como “vida solitária”) em um Festschrift pelos setenta anos de Jaspers.
Este ensaio, junto com seu livro “Origens do totalitarismo”, se tornou a base de seu muito solicitado curso em Berkeley: “Totalitarismo”. Dividia-se em quatro partes: a decadência das instituições políticas, o crescimento das massas, o imperialismo e o surgimento de partidos políticos como ideologias de grupos de interesse.
Em sua conferência inaugural, apresentou o tema refletindo a respeito de como a relação entre a teoria política e a ideologia se tornou duvidosa na era moderna. Argumentou que havia uma vontade crescente e geral de prescindir da teoria em favor de meras opiniões e ideologias. “Muitos”, disse, “acreditam que podem dispensar a teoria por completo, o que, claro, significa que só querem que sua própria teoria, a que está por trás de suas opiniões, seja aceita como a verdade do evangelho”.
Arendt se referia ao modo como a “ideologia” havia sido empregada como desejo para divorciar o pensamento da ação: “ideology” em inglês vem do francês “idéologie”, e foi utilizada pela primeira vez durante a Revolução Francesa, mas não se tornou popular até a publicação de “A Ideologia Alemã” (escrito em 1846), de Marx e Friedrich Engels, e depois “Ideologia e utopia” (1929), de Karl Mannheim, que Arendt resenhou para “Die Gesellschaft”, em 1930.
Em 1958, acrescentou-se uma versão revisada de “Ideologia e terror” como nova conclusão à segunda edição de “Origens do totalitarismo”.
“Origens do totalitarismo” é uma obra de seiscentas páginas, dividida em três seções sobre o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo. Na medida em que Arendt trabalhava nele, o texto foi mudando para incorporar novas informações que chegavam da Europa sobre Hitler e Stalin. A conclusão inicial, publicada em 1951, girava em torno da ideia de que, mesmo que os regimes totalitários desaparecessem, os elementos do totalitarismo permaneceriam.
“As soluções totalitárias”, escreveu, “podem sobreviver à queda dos regimes totalitários em forma de fortes tentações que aparecerão cada vez que pareça impossível aliviar a miséria política, social e econômica em uma maneira digna dos homens”.
Quando Arendt acrescentou “Ideologia e terror” a “Origens do totalitarismo”, em 1958, o teor da obra mudou. Os elementos do totalitarismo eram numerosos, mas na solidão encontrou a essência do governo totalitário e o terreno comum do terror.
Por que a solidão não é óbvia?
A resposta de Arendt era: porque a solidão separa radicalmente as pessoas da conexão humana. Definiu a solidão como uma espécie de marasmo onde uma pessoa se sente abandonada por todo o humano e pela companhia humana, inclusive quando os outros a cercam. A palavra que utilizava em sua língua materna para designar a solidão era “Verlassenheit”: um estado de ser abandonado, ou de abandono.
A solidão, arguia, “é uma das experiências mais radicais e desesperadas da humanidade”, porque na solidão somos incapazes de realizar toda a nossa capacidade para a ação como seres humanos. Quando experimentamos a solidão, perdemos a capacidade de experimentar qualquer outra coisa, e na solidão não podemos começar novamente.
Para ilustrar por que a solidão é a essência do totalitarismo e o terreno comum do terror, Arendt distinguia a solidão do isolamento, e solidão em sentido de “loneliness”, de solidão como “solitude”. O isolamento, argumentava, às vezes é necessário para a atividade criativa. Até mesmo a mera leitura de um livro, disse, requer certo grau de isolamento. É preciso se afastar propositalmente do mundo para dar lugar à experiência da solidão, mas, uma vez que se está só, sempre é possível voltar:
“O isolamento e a solidão não são a mesma coisa. Eu posso estar isolada, ou seja, estar em uma situação em que não possa agir porque não há ninguém que atue comigo, sem estar só, e posso estar só, ou seja, em uma situação em que eu, como pessoa, me sinto abandonada de qualquer companhia humana, sem estar isolada”.
O totalitarismo utiliza o isolamento para privar as pessoas da companhia humana, impossibilitando a ação no mundo e, ao mesmo tempo, destrói o espaço para estar só. A banda de ferro do totalitarismo, como a chamava Arendt, destrói a capacidade humana de se mover, de agir e de pensar, enquanto lança cada indivíduo neste isolamento contra os outros e contra si mesmo. O mundo se torna um marasmo, onde a experiência e o pensamento não são possíveis.
Os movimentos totalitários utilizam a ideologia para isolar os indivíduos. Isolar significa “fazer com que uma pessoa esteja ou permaneça só ou longe dos outros”. Arendt dedica a primeira parte de “Ideologia e terror” para decompor as “receitas de ideologias” em seus componentes básicos, para mostrar como se faz:
- As ideologias estão separadas do mundo da experiência vivida, e impedem a possibilidade de novas experiências;
- As ideologias se concentram em controlar e prever a maré da história”;
- As ideologias não explicam o que é, mas o que veio a ser;
- As ideologias dependem de procedimentos lógicos de pensamento, que estão separados da realidade;
- O pensamento ideológico insiste em uma “realidade mais verdadeira”, oculta atrás do mundo das coisas perceptíveis.
Nosso modo de pensar o mundo afeta as relações que temos com os outros. Ao injetar um significado secreto em cada acontecimento e experiência, os movimentos ideológicos se veem forçados a mudar a realidade de acordo com suas afirmações, quando chegam ao poder. E isso significa que já não é possível confiar na realidade de suas experiências vividas no mundo.
Em vez disso, deve-se aprender a desconfiar de si mesmo e dos outros, e a confiar sempre na ideologia do movimento, que deve ser correta. Mas para fazer com que os indivíduos sejam suscetíveis à ideologia, primeiro é preciso destruir a relação deles com eles próprios e com os outros, tornando-os céticos e cínicos, de modo que já não possam confiar em seu próprio juízo:
“Do mesmo modo que o terror, inclusive em sua forma pré-totalitária e simplesmente tirânica, arruína todas as relações entre os homens, assim a autocoação do pensamento ideológico arruína todas as relações com a realidade. A preparação tem êxito quando os homens perdem o contato com seus semelhantes, bem como com a realidade que existe em torno deles, porque, junto com esses contatos, os homens perdem a capacidade tanto para a experiência como para o pensamento. O objeto ideal da dominação solitária não é o nazista convencido ou o comunista convencido, mas as pessoas para quem já não existe a distinção entre o fato e a ficção (ou seja, a realidade empírica) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (ou seja, as normas do pensamento)”.
A solidão organizada, gerada a partir da ideologia, conduz ao pensamento tirânico, e destrói a capacidade que um indivíduo possui de distinguir entre fatos e ficção, de fazer juízos. Na solidão, não se consegue conversar consigo mesmo, porque a capacidade de pensar é vista como um compromisso. O pensamento ideológico nos afasta do mundo da experiência vivida, mata de fome a imaginação, nega a pluralidade e destrói o espaço entre os homens que permite que se relacionem de formas significativas.
E uma vez que o pensamento ideológico se enraizou, a experiência e a realidade já não têm efeito sobre o pensamento. Em vez disso, a experiência se submete à ideologia ao pensar. Por isso, quando Arendt fala da solidão, não fala apenas da experiência afetiva da solidão, fala de uma forma de pensar. A solidão surge quando o pensamento está separado da realidade, quando o mundo comum foi substituído pela tirania das demandas lógicas coercitivas.
Pensamos a partir da experiência, e quando não temos mais novas experiências no mundo, a partir das quais pensar, perdemos os critérios de pensamento que nos guiam na hora de pensar no mundo. E quando alguém se submete à autocompulsão do pensamento ideológico, renuncia à liberdade interior de pensar. É esta submissão forçada da dedução lógica que “prepara cada indivíduo para a tirania em seu solitário isolamento frente a todos os outros”. O livre movimento para pensar se vê substituído pela corrente propulsiva e singular do pensamento ideológico.
Em um de seus diários, Arendt se pergunta: “Gibt es ein Denken das nicht Tyrannisches ist?” (“Existe uma forma de pensar que não seja tirânica?”). Segue a pergunta com a afirmação de que a questão é evitar que se deixe levar pela maré. O que faz os homens se deixar levar? Arendt argumenta que o medo subjacente que atrai alguém para uma ideologia é o medo da autocontradição. Este medo da autocontradição é o motivo pelo qual pensar é perigoso, pois pensar tem o poder de desenraizar nossa fé, nossas crenças, nosso conhecimento de nós mesmos. Pensar pode desnudar tudo o que apreciamos, o que confiamos, o que damos por determinado, diariamente. Pensar tem o poder de nos desfazer.
Mas a vida é caótica. Entre o caos e a incerteza da existência humana, precisamos de uma sensação de lugar e sentido. Precisamos de raízes. E as ideologias, como as sereias na Odisseia de Homero, nos atraem. Mas aquelas pessoas que sucumbem ao canto da sereia do pensamento ideológico devem se afastar do mundo da experiência vivida. Ao fazer isto, não podem se confrontar com elas próprias ao pensar, pois caso ajam assim, arriscam-se a minar as crenças ideológicas provenientes de sua concepção de propósito e lugar. Para dizer de uma maneira muito simples: as pessoas que se subscrevem a uma ideologia têm ideias, mas são incapazes de pensar por elas próprias. E essa incapacidade de pensar, de fazer companhia a elas próprias, faz com que se sintam sós.
O argumento de Arendt sobre a solidão e o totalitarismo não é fácil de tragar, porque implica um elemento ordinário nas tendências totalitárias que apelam à solidão: se você não se satisfaz com a realidade, se esquece o bom e sempre pede algo melhor, se não está disposto a enfrentar cara a cara o mundo como é, será suscetível ao pensamento ideológico. Será suscetível à solidão organizada.
Quando Arendt escreveu a seu marido: “Simplesmente, não posso me expor diante do público cinco vezes por semana, ou seja, nunca sair do olhar público. É como se eu tivesse que ir por aí procurando por mim mesma”, não se queixava vaidosamente do foco. A exposição constante a uma audiência pública, fazia com que fosse impossível para ela manter a companhia a si mesma. Era incapaz de encontrar o espaço privado e reflexivo para pensar. Era incapaz de povoar sua solidão.
Esse é um dos paradoxos da solidão. A solidão como “solitude” ou vida solitária requer estar só, ao passo que a solidão como “loneliness” se revela de forma mais aguda na companhia de outros. Do mesmo modo que dependemos do mundo público das aparências para obter reconhecimento, precisamos do domínio privado da via solitária para estar sós com nós mesmos e pensar. E é isso que Arendt perdia quando não tinha espaço para estar só consigo mesma. “O que torna a solidão tão insuportável”, escrevia, “é a perda do próprio eu, que pode se realizar na vida solitária...”.
Na vida solitária, você pode fazer companhia a si mesmo, estabelecer uma conversa consigo mesmo. Nessa solidão, não perde contato com o mundo, porque o mundo da experiência sempre está presente em nossos pensamentos. Para citar Arendt (que por sua vez citava Cícero): “Um homem nunca está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo. Isso é o que o pensamento ideológico e o pensamento tirânico destroem: nossa capacidade para pensar com e para nós. Essa é a raiz da solidão organizada”.
Artigo publicado pela revista da Unisinos
Hannah Arendt
(Getty Image - Fred Stein Archive)
Hannah Arendt (nascida Johanna Arendt; Linden, 14 de outubro de 1906 – Nova Iorque, 4 de dezembro de 1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX.
A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, fizeram-na decidir emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política".
Arendt defendia um conceito de "pluralismo" no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas. Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Em acordos políticos, convênios e leis, devem trabalhar em níveis práticos pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Immanuel Kant, Martin Heidegger e Karl Jaspers, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu. Justamente graças ao seu pensamento independente, a teoria do totalitarismo (Theorie der totalen Herrschaft), seus trabalhos sobre filosofia existencial e sua reivindicação da discussão política livre, Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos.
Como fontes de suas investigações Arendt usa, para além de documentos filosóficos, políticos e históricos, biografias e obras literárias. Esses textos são interpretados de forma literal e confrontados com seus pensamentos. Seu sistema de análise - parcialmente influenciado por Heidegger - a converte em uma pensadora original situada entre diferentes campos de conhecimento e especialidades universitárias. O seu devenir pessoal e o de seu pensamento mostram um importante grau de coincidência.
Pensamento
Banalidade do mal
Um dos principais conceitos de Hannah Arendt é conhecido por ter sido estabelecido enquanto a autora cobria jornalisticamente os julgamentos de ex-oficiais nazistas, que tiveram início em 1961, na cidade de Jerusalém, quando escreveu sua importante obra Eichmann em Jerusalém. O conceito de "banalidade do mal" trata sobre o que ela chama de "desenraizamento" das experiências humanas em relação à realidade, da amoralidade, da subserviência à ordens, do acriticismo. Uma citação do livro As Origens do Totalitarismo, que fala sobre a estrutura do movimento totalitario, dá luz à ideia:
"os membros fanatizados são intangíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte".
O conceito de banalidade do mal, postulado no fim da obra Eichmann em Jerusalém, causou um certo mal estar e polêmica na comunidade intelectual da época, pois Arendt tratou de assuntos delicados como a participação e colaboração de judeus, através dos Conselhos Judaicos, com os nazistas para seu extermínio. Daí a ideia de que a banalidade do mal estaria ligada a um "colapso moral" tanto dos que perseguiam, quanto das vítimas.
O alvoroço também girou em torno de seu postulado, como questiona Luciano Oliveira: "qualificar de banal um mal da dimensão do nazismo não seria diminuir sua enormidade?"[23]. O fato é que o termo banalidade surge em meio à sua interpretação da figura de Eichmann, que seria, nesse sentido, um "sujeito normal". Arendt chega a dizer que "não se pode extrair profundidade diabólica ou demoníaca em Eichmann" e ainda coloca que ele não era um "monstro". Daí o sentido de banalidade estar ligado com um indivíduo que apenas cumpria e executava ordens advindas de uma burocracia com hierarquias rigidamente estabelecidas. Ao mesmo tempo, aponta Oliveira, para Hannah Arendt o sujeito banal descrito teria de "sacrificar suas convicções, honra e dignidade humana" para que se pudesse aceitar o nazismo.
Ao fim de sua obra, a autora coloca o que seria central para o entendimento do conceito, a saber, a incapacidade de reflexão e empatia, ou melhor, a "hipótese de que o mal talvez esteja intimamente relacionado com a ausência de pensamento naquele que o pratica".
Ideologia
Na concepção de Arendt, a Ideologia ou o pensamento ideológico possui três elementos fundantes. O primeiro deles é a característica dos movimentos totalitários de sempre terem uma explicação total sobre a História, em termos de passado, presente e futuro. Ou seja, fala sobre o quanto as ideologias, seja a racista no hitlerismo, ou a marxista no stalinismo, orientam-se pelo "devir", pelo "movimento", não analisam o passado segundo "um conjunto de postulados acerca do que é, [...] mas de um processo que está em constante mudança".
O segundo elemento trata sobre propaganda, conspirações e doutrinação. Arendt dá exemplos de doutrinação, como as escolas nazistas para formar exércitos, as Ordensburgen, e as escolas soviéticas do Comintern. Mas, mais importante para o conceito, fala sobre o quanto as ideologias têm a capacidade de "emancipar" as pessoas da realidade em que vivem.
Por último, Arendt explica, através da filosofia, como são e quais são os métodos utilizados pelo totalitarismo para distanciar as pessoas da experiência empírica ou da realidade. Os processos de "movimento" e de "emancipação da realidade" descritos anteriormente se dão através da dedução, que parte de uma ou mais premissas axiomáticas. Seria o racionalismo prevalecendo completamente sobre o empirismo. E, a partir do momento que o sujeito adentra em tal "movimento", tudo o que é anterior seria esquecido. Daí a ideia de que a Ideologia estaria ligada com uma prática de esquecimento, descrita por ela em outras obras. Tal elemento, ela conclui, trata tanto de uma prática persuasiva dos líderes e representantes do movimento, em seus discursos, quanto de seus slogans e propagandas. Ao mesmo tempo, Arendt propõe uma certa crítica e reconhece que há uma "substância" na base do marxismo que, com as ideologias, ficou esquecido, como é o caso da exploração do proletariado. Ou seja, até mesmo princípios importante do marxismo foram deixados de lado em prol da "camisa de força da lógica".
Formas ou tipos de governo
Hannah Arendt explica cada tipo de governo através da organização política interna e as técnicas de administração. O que ela chama de Tirania remete aos tipos de governo fundados nas ideias trazidas por Platão, em A República, onde existe a política de "um contra todos" feita por um líder, ou seja, "os 'todos' que ele oprime são iguais, a saber, igualmente desprovidos de poder". Este líder seria fonte da Lei e governaria de acordo com as suas próprias vontades. A metáfora por ela utilizada é a de uma pirâmide que possui baionetas que suspendem o topo apoiadas em sua base, onde na base se encontram indivíduos "cuidadosamente isolados, desintegrados e completamente iguais".
No tipo de governo Autoritário, Arendt também utiliza a metáfora da pirâmide, mas esta é descrita de tal modo:
“a sede do poder se localiza em seu topo, do qual a autoridade e o poder se filtram para a base de maneira tal que cada camada consecutiva possua alguma autoridade" ”
[...] estes diferentes níveis se "interrelacionam como raios convergentes cujo ponto focal comum é o topo da pirâmide, bem como a fonte transcendente de autoridade acima dela". Importante notar que a fonte de autoridade neste tipo específico são os códigos e leis, como a nossa constituição, "o direito natural, os mandamentos divinos".
Ao descrever o tipo de governo Totalitário, Arendt recorre à pouco conhecida metáfora da cebola:
"cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, está o líder; o que quer que ele faça, integre o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano, ele o faz de dentro, e não de fora ou de cima".
Cada nível hierárquico se interrelaciona, de uma lado, montando uma fachada de uma realidade externa sem caos e, de outro, realizando o papel de um "extremismo radical", no que a autora conclui que tal estrutura "torna o sistema organizacionalmente à prova de choque contra a factualidade do mundo real". Ou seja, há a suspensão completa da realidade do mundo e dos fatos quando está em vigência no aparelho burocrático do Estado o regime totalitário. E, diferentemente do tipo tirânico no qual a fonte da Lei é o próprio líder, o ditador totalitário se coloca como executor de "leis mais altas".
Autoridade
Arendt fala sobre o conceito de autoridade se referindo às instituições, aos modos de vida e às tradições políticas do Ocidente. Ela explica que não existe autoridade se o Estado ou outro ator social qualquer usa da força, ou seja, de "meios externos de coerção" para conter ou controlar a população -por exemplo, o uso da força policial em manifestações públicas. Ao mesmo tempo, adverte que a autoridade também não existe se esta se valer de meios de convencimento ou "persuasão", pois ela "pressupõe igualdade e argumentação". Nesse sentido, Arendt se refere ao aparelhamento da propaganda nazista ministrado por Joseph Goebbels, que através de várias técnicas discursivas, como a repetição incessante de mentiras e o uso do status científico como instrumento de poder, convenceram as massas alemãs à adesão aos pressupostos e projetos do nacional-socialismo. Ou seja, não houve confiança política da população, pois ela teve de ser convencida e fanatizada. A título de exemplo do que pode ser considerado autoridade em termos de tradição, Arendt diz que:
"o sintoma mais significativo da crise de autoridade, a indicar sua profundeza e seriedade, é ela ter se espalhado em áreas pré-politicas tais como a criação dos filhos e a educação".
Deste modo, quer dizer que quando estes elementos se tornam um questionamento na sociedade, provavelmente isto significa dizer que a política perdeu seu poder de autoridade e, deste modo, de confiança.
Solidão e Isolamento
A diferença entre solidão e isolamento é uma excelente fonte de explicação para a forma como a organização totalitária moldava e controlava a população e, assim, se mantinha no poder. Uma citação em particular resume a ideia:
“ o que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. [...] Posso estar isolado -numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo- sem estar solitário; e posso estar solitário -numa situação em que me sinto completamente abandonado da companhia humana- sem estar isolado (Origens do Totalitarismo). ”
Assim, o isolamento seria "impotência", "incapacidade básica de agir", ou seja, estaria ligada a uma incapacidade comum das pessoas de se unirem em prol de questões ou motivações políticas. A exemplo -situado na história do Brasil-, a supressão e perseguição de sindicatos e partidos Comunistas pelo ditador Getúlio Vargas no golpe de 1937 e o fechamento do Congresso Nacional pelo Estado Novo. Como diz Arendt, as características humanas da "ação e poder são frustradas" e, junto a isso, ela afirma que tais pressupostos estão atrelados à forma tirânica de governar. Não obstante, a ideia de solidão está conectada com a noção de vida privada ou de "vida humana como um todo". A noção de solidão está ligada com o importante conceito de banalidade do mal, pois ele contempla as ideias de "superfluidade" e "desarraigamento", no que ela identifica o segundo, a ausência de raíz, como "não ter no mundo um lugar garantido e reconhecido pelos outros" e o primeiro com a ideia de não pertencimento ao mundo, ou seja, ambos ligam-se à noção de direitos humanos, o primeiro sobre o direito de ter garantias ou o direito de ter direitos, e o segundo sobre o direito de pertencer a um país, nação, pátria. É fundamental ressaltar que em sua conceituação de totalitarismo, a noção de solidão seria novidade, ou seja, seria um paradigma novo na ciência política da época e que descreve o fenômeno totalitário.
Crítica a Karl Marx
De acordo com Camargo (2013), Hannah estabelece uma diferenciação que fica compreensível e entendível no conceito de Labor e Trabalho. Proporcionando um melhor entendimento acerca do tema e das condições do sujeito para o sujeito, seja para sobrevivência própria direta (labor) ou para seu sustento no que tange a questão capitalista financeira. Com relação a crítica que exerce à Marx no conceito trabalho, Hannah entende haver a possibilidade do trabalho ser produtivo ou improdutivo, ambos possibilitando entendimento e produzindo objetos, matéria, pela simples ação do sujeito. Já Marx considera apenas o trabalho produtivo como fonte de objeto, matéria, desconsiderado o improdutivo, como se apenas produzisse resultado quando o trabalho é convalidado como “status” de concluído na fase que se encontra.
Arendt também estabelece uma espécie de crítica à concepção marxista de violência em seu ensaio Religião e política, dizendo que, para Karl Marx e o marxismo, todo o discurso e o debate existentes seriam de alguma forma "ideológicos" e por isso a única ação política genuína seria a não-discursiva, ou seja, a política seria "intrinsecamente violenta". Ela também comenta, em outro ensaio chamado Compreendendo o comunismo, de 1953, que trata, exatamente como o ensaio mencionado acima, sobre o assunto que estava em voga nas ciências sociais da época: a função e finalidade dos fenômenos sociais -ou seja, o que acontece em consequência a eles e não necessariamente o que e como eles são. Arendt fala sobre o quanto a crítica de Marx à religião como ideologia seria equivalente ao próprio marxismo, ou seja, coloca ambas como ideológicas e como ideias que preenchem "necessidades sociais básicas" dos seres humanos, ainda dentro do método sociológico vigente. (Wikipedia)
A atualidade de Hannah Arendt e a demanda por responsabilização: uma entrevista com Renata Schittino
Post on: 03/07/2019
HHM: Professora Renata Schittino, primeiramente gostaríamos de agradecer a sua disponibilidade em ceder essa entrevista à HH Magazine.
Ao longo de sua carreira você tem trabalhado com temas caros ao mundo contemporâneo como totalitarismo, terrorismo, imperialismo, revoluções… Gostaríamos de ouvir um pouco sobre sua trajetória e, se possível, ouvir também como o pensamento de Hannah Arendt contribui para o desenvolvimento das questões que motivaram suas pesquisas.
R.S.: Olá. Inicialmente, gostaria de agradecer o convite para a entrevista. É uma alegria conversar com vocês. Tenho muito entusiasmo e carinho pelos estudos de teoria da história ligados à UFOP. Em especial, agradeço também à Professora Thamara Rodrigues pela interlocução e ao pessoal da HH Magazine, que preparou as questões.
Bom, narrar a si é esse exercício interminável e nunca definitivo, mas vamos lá. Lembro ainda hoje de leituras marcantes no começo da minha formação em História. E lá estava Arendt. O Da revolução; O Eichmann em Jerusalém. Mas também estavam Foucault, Poulantzas e outros. Interessava-me a questão do poder. Além disso, os debates que envolviam a relação entre os saberes e a vida. Na minha pesquisa de IC tive a oportunidade de escolher um tema e decidi estudar a atuação de um grupo armado basco – o ETA -, que reivindicava socialismo e liberdade. Questões gerais que permeiam minha trajetória de trabalho já apareciam aí como: guerrilha, terrorismo, fascismo, imperialismo.
No mestrado, voltei-me mais especificamente para o conceito de terrorismo, mas esse trabalho tinha ainda uma vinculação direta com indagações que advieram da tentativa de entender o funcionamento do ETA e sua relação com a sociedade. Estava claro que havia uma diferença entre o ETA que lutara contra a ditadura franquista e o ETA que ainda operava pelas armas depois da democratização da Espanha. Quando li novamente Arendt, nesse período, de uma maneira mais contundente, percebi o quão próximas eram muitas das minhas questões sobre a especificidade e a contemporaneidade da violência política espetacular em voga no atentado terrorista e as observações da autora sobre o totalitarismo, sobretudo no que se refere à novidade dos eventos. Num panorama geral, percebe-se que Arendt, de fato, toca em quase todos os temas com os quais venho trabalhando ao longo da minha carreira: totalitarismo, imperialismo, modernidade. Mas nem sempre fiz, digamos, o caminho arendtiano. Quer dizer, nem sempre cheguei a tais problemas através de Arendt, embora, com certeza, o encontro com a obra arendtiana tenha sido sempre rico e instigante, pois se tem algo muito significativo no pensamento dessa autora, quer se concorde ou não com suas respostas, é o anseio de compreender o mundo contemporâneo e sua trágica realidade de massacres, genocídios; intolerância e terror. O pensamento arendtiano foi muito marcante para mim justamente pela sua busca para vislumbrar como os homens agem e como a história aparece.
HHM: Em sua pesquisa mais recente, que integra o seu projeto de pós-doutorado na Universidade Federal de Ouro Preto junto ao professor Marcelo Rangel, você tem trabalhado com as noções de “compreensão” e “responsabilidade” em Hannah Arendt relacionadas à emergência de uma nova configuração ética desde o pós-segunda guerra mundial. Poderia nos contar um pouco mais sobre o projeto?
R.S.: Exatamente. Estou desenvolvendo desde março último essa pesquisa de Pós-doc no âmbito do Programa de pós-Graduação em História da UFOP e ao prof. Marcelo Rangel. A pesquisa tem como tema o pensamento arendtiano, mais especificamente, seus trabalhos sobre compreensão e responsabilidade. A ideia é considerar o aparecimento de uma nova noção de compreensão; uma compreensão que está intimamente conectada ao anseio ético. Entendo esse estudo como uma parte de um panorama mais geral sobre a questão ética desde o pós-segunda guerra mundial, que é o tema com o qual venho trabalhando desde antes do Pós-doc – na verdade, praticamente desde o meu Pós-doc anterior, sobre o conceito de totalitarismo. Embora Arendt não tenha desenvolvido exatamente uma “ética” no sentido tradicional da filosofia, entende-se que é possível visualizar proposições éticas em sua obra. Alguns comentadores mencionam até a existência de uma ética negativa, que não pretende dizer o que fazer, mas permitiria evitar certas ações em momentos decisivos. Arendt, como sabemos, enfrentou, por experiência própria o anti-semitismo e o exílio. A ascensão do nazismo e o aparecimento dos campos de extermínio foram eventos que marcaram definitivamente sua trajetória e sua obra. Depois do totalitarismo, que, para ela, teria surgido como uma verdadeira ruptura da tradição ocidental; tornou-se necessário reconsiderar o significado da política e reconhecer a importância do que é estar no mundo em companhia de outrem. Nessa pesquisa, quero mostrar como a noção de compreensão vislumbrada por Arendt se desenvolve e passa a abarcar algo que vai muito além de uma ideia de compreensão como empatia; ou como um colocar-se no lugar do outro. Compreender, como a própria autora diz, “não é tudo perdoar”. Não é um exercício de alteridade isento do mundo. Mas se não se trata de perdoar, isso não significa que a compreensão seja permissiva. Ao contrário, como pretendo sublinhar, compreender guarda uma demanda por responsabilização. O caso Eichmann, analisado por Arendt, é bastante claro nesse propósito. A autora diz que quer compreender a participação de Eichmann no nazismo; compreender como ele conseguiu enviar pessoas para a morte nos campos de concentração. Compreender os atos de Eichmann não significa dizer que ele não é responsável pelo que fez. Então, a pesquisa vai por aí, no sentido de mostrar como a noção de compreensão arendiana está relacionada com a demanda por responsabilização.
HHM: A noção de “cultura da responsabilidade” parece central a suas intuições. Poderia explicar para gente a categoria?
R.S.: Sim. Como vocês puderam acompanhar na minha palestra e como já venho indicando nessa entrevista, a pesquisa sobre o conceito de compreensão na obra arendtiana é parte de uma teoria mais geral, que surgiu da conexão dos meus estudos sobre totalitarismo e crimes contra a humanidade; debate pós-colonial; e feminismo. Todos esses estudos, de certo modo, têm me levado a pensar sobre justiça e justiça transicional. Desenvolvi a noção de cultura da responsabilidade para explicar um processo, que, a meu ver, vem se delineando desde a segunda guerra mundial, sobretudo, desde o pós-guerra – que é um processo de ênfase na responsabilização. Cultura da responsabilidade é uma cultura que valoriza os procedimentos e os dispositivos de responsabilização. Creio que essa cultura ascende no imediato pós-segunda guerra mundial. Pode ser visualizada nos tribunais de guerra, nos processos de justiçamento dos colaboradores ou inimigos de guerra. Na França, por exemplo, pode-se detectar muitos casos de justiçamento “com as próprias mãos” – seja pela violência física propriamente dita, seja pela segregação social. A cultura da responsabilidade encontra um expoente forte no braço institucional, mas, na verdade, ela perpassa toda a sociedade. Por isso, entendo que é muito importante tratar esse advento como o aparecimento de uma cultura no sentido geral e não simplesmente considerar os procedimentos no âmbito de uma justiça de transição. A cultura da responsabilidade permeia toda a sociedade. Aparece nos tribunais, nas sentenças, nos justiçamentos, nos debates públicos, nas discussões acadêmicas, etc. Note-se que ela não se refere apenas a cidadãos ou instâncias específicas. Aliás, entendo que esse é um dado central da cultura da responsabilidade. Ela alcança ou pode alcançar a todos. É uma cultura que envolve a demanda por justiça nos e para além dos tribunais. Está relacionada à postulação por responsabilidade. Para entender como se delineia a cultura da responsabilidade temos que vislumbrar certamente a grande novidade das guerras totais no início do século XX. Uso aqui a categoria cunhada por Eric Hobsbawm na Era dos extremos. A ideia de total tem pelo menos três sentidos. Está ligada à rendição incondicional – uma espécie de guerra até o limite total. Refere-se ainda à noção de totalidade do social, no sentido, de que não há uma divisão estanque entre civis e militares, já que a guerra afeta por completo a vida de todos os envolvidos e deixa-os sujeitos a ataques diretos (cidades bombardeadas) e indiretos (falta de alimentos, etc). Total, na perspectiva de Hobsbawm, tem ainda relação com a imagem de totalidade do globo. Quer dizer que, de um modo ou de outro, a totalidade do planeta é afetada ou participante nas guerras totais. Isso me interessa porque deixa perceber que quando finda a segunda guerra mundial estamos diante de uma série de novidades. Aparecia não só um novo tipo de crime – o crime contra a humanidade -, mas se configurava uma nova situação no que tange à questão da responsabilidade. Numa guerra onde todos estão de algum modo implicados; todos são também de certo modo responsáveis. Podemos visualizar os primeiros efeitos do aparecimento da cultura da responsabilidade quando acompanhamos os debates e os julgamentos sobre os crimes de guerra no imediato pós-segunda guerra mundial. Hannah Arendt é uma fonte riquíssima para visualizar elementos desse período. Sua interlocução calorosa com Jaspers a respeito do tema já nos diz muito. Jaspers preferia falar em culpabilidade da nação alemã. Enquanto Arendt pretendia fazer a distinção entre culpabilidade e responsabilidade. Para ela, uma coisa era sentir-se culpado moralmente, outra era realmente ter, de alguma maneira, participado ou executado um crime. Quando Arendt refuta o argumento do “dente na engrenagem” – que era usado pela defesa dos oficiais nazistas para dizer que os réus apenas cumpriam ordens de Estado –, deixava ver claramente o que está em jogo nessa nova cultura da responsabilidade: cada um é responsável pelo que faz e precisa arcar com seus atos. A cultura de responsabilidade, creio, é a cultura que não aceita isenção de responsabilidade. É uma cultura que “descobre” que os processos históricos; que os atos criminosos têm agentes responsáveis por trás deles. É uma cultura na qual as pessoas se sentem no direito e no dever de cobrar reparação, penalização, responsabilização por atos criminosos – físicos ou verbais. Atos que atingem os seres humanos em sua dignidade e pluralidade. Nesse sentido, a cultura da responsabilidade surge na esteira dos crimes contra a humanidade. Mais especificamente, na esteira da responsabilização pelos crimes contra a humanidade no pós- segunda guerra mundial.
HHM: Na sua palestra “Responsabilidade e juízo em Hannah Arendt” aqui na UFOP você falou em três diferentes momentos que o século XX pós-1945 teria vivido em relação a isto que seria a “cultura de responsabilidade”. Gostaríamos de ouvir um pouco mais a respeito, especialmente, sobre o terceiro momento que corresponde a nossa conjuntura atual.
R.S.: Acredito que a cultura da responsabilidade se forma no imediato pós-guerra com o desenrolar dos julgamentos dos oficiais nazistas e dos debates sobre a culpabilidade alemã. Os tribunais de guerra e os distintos meios de justiçamento são típicos desse período que se desenvolve até mais ou menos o final da década de 1960. Dos anos 40 aos 60, vemos que a demanda por responsabilização encontra vários expoentes. Não se fala apenas na segunda guerra mundial. A cultura de responsabilidade revela-se muito claramente na seara do anticolonialismo. Fanon, Césaire e tantos outros intelectuais e movimentos passam a exigir a responsabilização pelos atos criminosos cometidos durante as guerras coloniais; pelos crimes cometidos e sustentados pelo imperialismo. A demanda por justiça e reparação às vítimas passa a postular a identificação do agente colonizador, que é também responsável por crimes contra a humanidade e genocídios. Até agora recentemente vimos o presidente do México cobrar um pedido de desculpas da Espanha pela colonização. É sempre arriscado propor uma datação ampla, mas defendo que a cultura da responsabilidade tem uma fase de desenvolvimento até o fim da década de 60. Podemos ficar com 1968 como marco. A partir de 1968, a cultura da responsabilidade entra numa fase que denomino fase de afirmação. Esse período se prolonga até mais ou menos os idos de 2011. O tal ano, como nos indicou Zizek, em que “sonhamos perigosamente”. De 2011 pra cá, podemos visualizar uma espécie de disputa em torno da cultura da responsabilidade, e, é nesse, sentido, que entendo que se mostra uma nova configuração. Então, se no primeiro momento, a cultura da responsabilidade se desenvolve em torno dos debates e penalizações relativos aos crimes contra a humanidade, na segunda fase, acredito, temos uma espécie de consenso em torno da importância da responsabilização. Nesse segundo momento, temos o aparecimento de uma série de tribunais e comissões da verdade – lembre-se que estamos falando do período de ascensão e declínio das ditaduras latino americanas, de regimes autoritários e criminosos no cone sul. E também pode ser contabilizada uma vasta gama de pedidos de perdão – aparecem pedidos de desculpas pela inquisição, pela escravidão, pelo holocausto, etc – e processos de reparação. Creio que essa fase, que chamo de afirmativa, encontra seu ápice na década de 1980. 1980 será um ano simbólico no que se refere ao ‘boom’ de memória experimentado pelas gerações descendentes das guerras mundiais. Como destaca François Hartog, no seu Regimes de historicidade, 1980 será considerado o ano da memória na França. O respeito que as noções de memória e testemunho vão adquirir nesse momento é muito sintomático disso que vislumbro como afirmação da cultura da responsabilidade. É significativo perceber que a ênfase em relatos e sobreviventes é correlata de uma determinada perspectiva teórica. Penso inclusive na própria concepção historiográfica, que se volta com força para o estudo de traumas e passados esquecidos. Sujeitos outrora invisíveis. Toda a “literatura menor”, para trazer a formulação de Deleuze, torna-se fundamentalmente tema da escrita. Tudo aquilo que estava nas bordas. Tudo aquilo que era minoria torna-se o centro. Isso vai acontecer na historiografia, na filosofia, na literatura, etc. Visualizar esse movimento como algo próprio à cultura da responsabilidade é notar que está em jogo aí um anseio por fazer justiça, seja por meios concretos – nos próprios tribunais e comissões da verdade -, seja pela via teórica – nas diversas formas narrativas. Dar voz aos que não tiveram voz. Dar vida aos oprimidos, marginalizados, esquecidos, invisíveis da história significa recontar os eventos, rever os cânones. Significa fazer uma espécie de justiça histórica (que é também como eu disse literária, filosófica, etc). No âmbito da cultura da responsabilidade é importante destacar que esse período é de afirmação porque nesse momento, quando todos os tipos de reparações são exigidos, seria como se pudéssemos ver essa cultura em seu ápice. Creio que a coisa toda foi vivenciada de tal forma que quase acreditamos que estaríamos ali para sempre. E então chegamos ao terceiro momento, que se apresenta desde os idos da primeira década do século XXI; desde mais ou menos 2011. Poderíamos falar também em 2008, ano de crise do capital. Mas entendo que vale circunscrever 2011 na esteira dessa crise, como um ano decisivo para a virada na cultura da responsabilidade. Virada que agora experimentamos com mais clareza. 2011, ano do Occupy Wall Street. Ano da Primavera árabe. O que me parece constitutivo desse período não é exatamente um declínio da cultura da responsabilidade. Não há exatamente um declínio, mas há um questionamento. Da afirmação do momento anterior, tal cultura passa agora à fase de disputa. A própria cultura da responsabilidade está em disputa. Temos de um lado, uma tendência de avanço da cultura da responsabilidade – cobramos cada vez mais retratações, reparações, desculpas, julgamentos, punições. Nesse período, creio que seja possível perceber, inclusive, uma crescente luta por justiça de gênero. Por outro lado, vemos uma espécie de reação à cultura da responsabilidade. Pós-verdade, fake news, discursos contra a pluralidade, questionamento da Ciência – em especial, que muito nos toca, o questionamento da História como ciência; da verdade dos fatos. Talvez aí seria melhor dizer um anseio de substituir uma idéia de verdade histórica por mera invencionice. Tudo isso parece ter vindo crescendo como que numa contra corrente daquelas demandas da cultura da responsabilidade. Esse terceiro período, momento em que estamos, é quando vamos nos dando conta de que aquela afirmação em torno da responsabilidade está agora, de certo modo, ameaçada. Com o crescimento da intolerância, da xenofobia, do racismo. Com o avanço da extrema direita, que se orgulha de pautas como essas, percebe-se que a cultura da responsabilidade, que emergiu no imediato pós-guerra e passou por transformações ao longo da segunda metade do século XX e início do século XXI, deixou atrás de si um rastro de ódio. Vemos como esse terceiro momento da cultura de responsabilidade aparece, hoje, para muitos de nós, em especial, para os historiadores como um pesadelo. No Brasil, por exemplo, ficamos muito chocados com o revisionismo em torno do golpe de 1964. É um susto ainda ter que lutar por questões tão óbvias, já há muito evidenciadas. Que houve golpe, repressão, torturas, assassinatos. Que esse passado precisa ser reparado. Que os crimes precisam ser punidos. Se há algo que podemos aprender, ao vislumbrar a cultura da responsabilidade nessa longa duração, é que precisamos lutar por ela.
HHM: Como esse terceiro momento se relaciona aos estudos pós-coloniais e decoloniais?
R.S.: A questão não é nova. Não sei se do ponto de vista da cultura da responsabilidade podemos indicar a conexão tão clara entre um terceiro momento e os estudos pós-coloniais e decoloniais. Como falei antes, encontramos nos autores e intelectuais ligados ao processo de descolonização as demandas da cultura da responsabilidade. Fanon, em Condenados da terra, cobra do colonizador e da elite colonial que lhe é herdeira um posicionamento sobre a hierarquização do mundo entreposta com a colonização. Libertação não aparece simplesmente como a formação de um país independente, mas com a construção de um país livre politicamente, economicamente e culturalmente. Nos anos 1980, o crescimento dos chamados estudos pós-coloniais pode sim ser conectado à afirmação da cultura de responsabilidade. Está ligado ao desenvolvimento de uma literatura e uma historiografia que vão procurar escapar da grade teórica eurocêntrica e tentar deixar falar os mundos nativos, outrora esquecidos, ofuscados, estigmatizados. É interessante a pergunta, pois entendo que a questão colonial está intimamente relacionada ao desenvolvimento e à afirmação da cultura da responsabilidade – sendo possível notar essa relação nos diferentes momentos da cultura da responsabilidade -, mas ela talvez sempre tenha nos dado pistas mais claras de que precisamos lutar pela cultura da responsabilidade. Se é possível circunscrever aí a cobrança pela responsabilidade do colonizador, a exigência da reparação física e/ou simbólica, a demanda por tribunais e pedidos de perdão. Se podemos ver em seu âmbito o movimento de afirmação teórica, a busca pela memória e testemunho, o anseio de reverter teórica e historicamente o apagamento dos povos nativos; também conseguimos vislumbrar que todos esses momentos fazem parte de uma luta constante e ainda não acabada. A luta contra o colonizador ainda persiste. Ainda é necessária. Mesmo depois de muitos movimentos de libertação nacional terem alcançado a independência.
HHM: Como a diferenciação entre “compreensão” e “conhecimento” pode auxiliar a História e as humanidades em geral em seus desafios epistemológicos, éticos, ontológicos… contemporâneos?
R.S.: Na perspectiva arendtiana, que estou estudando, a compreensão é um processo distinto do conhecimento. A compreensão precede e sucede o conhecimento. É um processo interminável que só acaba com a morte. Está relacionada à infinita – ou seja, sempre inacabada, reconciliação com a realidade. Arendt gosta de dizer que a compreensão tem a ver com podermos nos sentir em casa neste mundo. Porque ela tem a ver não com um produto final, com alguma coisa produzida, mas com a possibilidade de vislumbrar como alguma coisa foi possível – como alguma coisa veio ao mundo. Creio que as Humanidades e a História enquanto disciplina têm que considerar muito propriamente essa atividade da compreensão, pois o nosso trabalho não pode ser medido simplesmente através do produto final. Tratamos da existência dos homens e mulheres no mundo; de como agimos, de como nos responsabilizamos, de como significamos a vida, a nossa vida individual e coletiva. Se ficarmos com a teoria arendtiana, vemos que a compreensão lhe interessa não apenas no sentido formal, como uma categoria ou coisa assim. Ela se interessa pela compreensão porque quer, de fato, compreender seu mundo; compreender como o totalitarismo foi possível. Nesse sentido, a compreensão tem uma relação direta com a refutação das filosofias da história. Em determinado momento de sua obra, Arendt diz “compreensão é o outro lado da ação”. Quer dizer, a compreensão é uma atividade sumamente importante porque as pessoas agem e sua ação não está previamente definida. As ações têm a ver com escolhas, com desejos; muito provavelmente, também tem a ver com carências, traumas, medos. Mas de qualquer modo a ênfase na compreensão está ligada à refutação das filosofias da história, por um lado, e, por outro, à percepção de que quando alguma coisa passa a existir, quando um fato ocorre, não pode mais deixar de existir. A compreensão é importante porque as ações humanas e os fatos que delas resultam são irrevogáveis. Se a compreensão guarda esse impulso ético, como suponho que há em Arendt, ela é uma atividade muito significativa para nós historiadores, pois ela indica que o humano não pode ser pensado como coisa e a História não pode ser vislumbrada como um processo cujo sujeito é uma entidade transcendental.
HHM: A partir da responsabilidade ética em Hannah Arendt como você tem pensado sobre questões como memória, justiça, comissões da verdade?
R.S.: Arendt é uma autora bastante interessante para pensar essas questões de justiça e comissões da verdade. Creio que ela faz uma reflexão particularmente importante sobre a novidade do crime contra a humanidade, que se visualiza no pós-segunda guerra mundial. Ela nota que o que está em jogo não é a intenção do crime, mas o crime cometido. Nesse sentido, tenta retirar o debate da esfera da moral. Isso significa, no meu entendimento, reconsiderar a justiça sob a ótica do mundo. Da pluralidade do mundo. Na corte de Jerusalém, que julgava Eichmann, por exemplo, a promotoria teria ficado, de modo inócuo, tentando demonstrar que o réu teria matado com as próprias mãos. Ao passo que a defesa de Eichmann insistia no argumento do dente na engrenagem, quer dizer, defendia que Eichmann teria apenas cumprido ordens de estado. Na análise desse julgamento, Arendt observa uma série de equívocos e destaca a dificuldade de ambos os lados em compreender a novidade do crime em questão. O crime contra a humanidade, que pode ser assim chamado por ferir a pluralidade da humanidade, deve ser julgado pelo acontecido no mundo. A interioridade do perpetrador não deve ter o mesmo peso que o direito positivo lhe atribuía. O que vem à tona nesse crime é a relação com o mundo. Ultrapassa-se a relação mais específica do indivíduo com indivíduo (indivíduo perpetrador/indivíduo violado/assassinado). O crime contra a humanidade fere a todos e não apenas os que de fato morreram. Trata-se da relação dos homens no mundo, em sua pluralidade.
HHM: Haja vista as recentes e crescentes manifestações amparadas por movimentos e governos de extrema direita em uma conjuntura global, quais relações são possíveis traçar entre essa conjuntura atual e os totalitarismos vivenciados e tematizados por Arendt?
R.S.: Essa é uma questão que também venho me perguntando. Tem movimentado uma série de formulações que pretendem comparar – não Arendt exatamente – mas o momento atual e o período de ascensão dos fascismos. Parece-me que, do ponto de vista arendtiano, essa aproximação deve ser muito cuidadosa, sobretudo, porque o totalitarismo é pensado pela a autora como uma nova forma de governo. Ele é muito mais que uma formulação conteudística, como xenofobia, anti-semitismo, racismo, etc. Totalitarismo está relacionado à combinação de ideologia e terror. Ideologia, por sua vez, significa para a autora, a lógica de uma ideia. Quer dizer, uma premissa através da qual as pessoas explicam a realidade. Terror também encontra uma especificidade no pensamento arendtiano. O terror totalitário ataca não um inimigo determinado – que tenha feito algo específico contra o governo ou que tenha características definidas. O regime tem sempre inimigos, que vão sendo classificados e adjetivados de modo próprio, mas o que mais importa na compreensão do totalitarismo é que ele não existe sem inimigos e que seus inimigos são “objetivos”. Posto isso, não acho que temos ainda o reaparecimento de regimes totalitários propriamente ditos, mas creio que governos como os de Trump, nos EUA; de Bolsonaro, aqui no Brasil, carregam elementos totalitários. Se ficarmos com a análise de Arendt, podemos ver algo para além das declarações e posicionamentos xenófobos e racistas. A presença da ideologia, de modo análogo ao caracterizado por Arendt em Origens do totalitarismo, pode ser notada facilmente nos partidários desses políticos. A ferramenta do Whats App e das redes sociais, inclusive, parece ter insuflado esse aspecto. A ideologia como premissa; como uma lógica através da qual se vê o mundo, deixou, na verdade, muitas pessoas cegas para a realidade. No processo eleitoral brasileiro isso apareceu de modo significativo. Os defensores de Bolsonaro simplesmente não aceitavam nenhum argumento que pudesse contrariar o que concebiam como realidade. Não vou me alongar com exemplos porque a entrevista já está muito extensa, mas, nessa analogia, ainda temos que notar como fica o terror. Ingrediente fundamental para os totalitarismos. Acho que esse elemento está presente nos governos atuais e foi importante para a tomada do poder e para o crescimento da extrema direita, mas ele se manifesta de modo distinto agora. O terror, que está, como vimos, relacionado à existência do inimigo objetivo, é, sobretudo, no momento atual, um terror narrativo; simbólico. O imigrante, o petista, o comunista, etc são os inimigos objetivos. O projeto não parece ser exterminá-los do globo terrestre através dos expurgos ou campos de concentração, mas há um discurso de apagamento desses tipos e até ações mais específicas para retirá-los de cena. Creio que não é possível dizer que há um totalitarismo, no sentido descrito por Arendt, mas acho que temos indícios para concluir sobre a presença de elementos totalitários nesses regimes democráticos.
HHM: Por fim, gostáramos que você comentasse sobre os caminhos e desafios para um pensamento ético politicamente orientado no Brasil hoje, e isto atentando a questões de responsabilidade e compreensão em Hannah Arendt. Se possível falando um pouco do elogio de Arendt a um perfil de historiador que tem um olhar atento sempre para o novo.
R.S.: Muitos desafios! É curioso porque agora vejo que a minha geração, talvez muito marcada pela discussão da memória e do testemunho, tenha, de um modo não tão claro, acreditado que ditaduras e totalitarismos eram coisas do passado. Estamos vivenciando um momento decisivo. Como estou entendendo, um momento de disputa em torno da cultura da responsabilidade. Cada vez mais, creio que devemos ter consciência de como somos agentes históricos, de como nossas escolhas e nossas narrativas importam. Precisamos ter e demandar responsabilidade no nosso dia a dia, no nosso trabalho, no nosso fazer, na nossa vida. Necessitamos resguardar e aprofundar a luta contra a intolerância, o apagamento histórico, a opressão. Que os nossos saberes sejam éticos, quer dizer, que estejam comprometidos, conscientes e dispostos a dar conta realmente da pluralidade do mundo. Que possamos entender que não somos meros sujeitos, ou inter sujeitos, como quer a noção de intersubjetividade. Somos já sempre uns com os outros, perpassados uns pelos outros, atravessados uns com os outros. Arendt tem um otimismo bonito, apesar de falar de grandes mazelas do nosso século e de nossa história. Ela diz que o milagre do humano é ser um ser que existe para o novo. Somos voltados para agir, para criar o novo, assim como somos nós mesmos novidade no mundo, ao qual chegamos ao nascer. O historiador é aquele que, por profissão, tem olhos treinados para a novidade. É quem pode vislumbrar como a História se compõem de muitas novidades, de muitos começos e não de muitos finais. É quem pode zelar, de modo especial, pela ação humana e sua liberdade.
Entrevista realizada por Ana Paula Santana, Larissa Ivo, Júlio Araujo e Ricardo Aquino.
Renata Schittino é professora de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense. Tem mestrado e doutorado em História pela PUC-Rio. É autora, dentre outros, de Hannah Arendt. A politica e a história. Trabalha com os seguintes temas: terrorismo, totalitarismo, imperialismo, responsabilidade e escrita da história. Atualmente, realiza pesquisa de Pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFOP.
Thiago Dias da Silva (abril de 2019)
Tem sido comum o recurso ao pensamento de Hannah Arendt para compreender o fenômeno Bolsonaro e, de modo mais amplo, o sucesso de certo tipo de direita ao redor do mundo. O recurso é valioso e deve ser estimulado, mas enfrenta uma dificuldade específica, pois as brilhantes análises da autora levam a comparações fáceis demais com os anos 1930 e à tentação de denunciar como “totalitário” qualquer movimento autoritário. Este equívoco impede a observação precisa do que está acontecendo hoje e, diante deste risco, é necessário afirmar de saída: se tomarmos Arendt como referência, o movimento que levou Bolsonaro ao poder não é um movimento totalitário, e seu governo não parece ter muitas condições de se converter em um governo totalitário. Isto não quer dizer que está tudo bem, evidentemente, pois há indícios de que o atual governo pode se tornar especialmente autoritário ou mesmo desembocar em uma ditadura. O ponto é que falta ao bolsonarismo uma série de elementos que permitiriam caracteriza-lo como totalitário, a começar pela ausência de um líder apto e de uma ideologia totalizante, pretensamente capaz de explicar o curso da história humana desde o início dos tempos até a grande superação final.
A fragilidade do líder, notada por alguns já à época da preparação da candidatura, é hoje patente. Sua autoridade é abertamente disputada por um vice mais preparado, por filhos ambiciosos, pela autoridade técnica do ministro da Economia, pela (suspeita) autoridade moral do ministro da Justiça e pela autoridade mística e intelectual de um guru. Esta disputa no governo expressa ainda a notável falta de unidade ideológica do bolsonarismo, pois é sustentado por ao menos quatro frações muito distintas entre si: liberais, militares, um baixo clero da política institucional e uma fração meio amalucada formada por seguidores do tal guru.
O único elemento comum aos membros deste confuso balaio de gatos é a negação de tudo aquilo que o PT, justa ou injustamente, passou a simbolizar na cena pública: esquerda, sistema, corrupção, democracia, Estado, crise econômica, direitos humanos, comunismo globalista. Ou seja, mesmo a “solidariedade negativa” que cimenta o bolsonarismo é insustentavelmente heterogênea e, portanto, inteiramente incapaz de formar os conteúdos positivos de uma ideologia coesa — quanto menos totalizante! — capaz de conferir um rumo determinado ao movimento e ao governo.
Isto não significa, evidentemente, que a análise dos acontecimentos dos anos 1930 contida em As origens do totalitarismo seja inútil para a compreensão do presente. O ponto é que o livro não oferece padrões de repetição política ou histórica, mas a identificação e a descrição de elementos que cristalizaram em dois governos totalitários, o de Hitler e o de Stálin. Alguns destes elementos sobreviveram ao fim destes dois governos e, se observados de perspectiva adequada, ganham sentido para nós porque ainda estão entre nós e provavelmente permanecerão aí por longo tempo. Faz-se necessário, portanto, identificar com clareza estes elementos e revelar-lhes o sentido.
Dentre os elementos decisivos para a compreensão do presente, parece-me importante destacar o papel conferido por Arendt aos indiferentes, ou seja, à enorme massa de pessoas para as quais a cena pública normalmente não desperta interesse. A figura do indiferente se refere a um tipo marcado por uma postura moral, da qual não tratarei aqui, e por uma postura política; ou melhor, uma postura não-política. Presente em todas as classes, o indiferente é aquele que, tendo passado a totalidade de sua existência fechado sobre si mesmo e sobre os seus, ocupando-se exclusivamente com a manutenção da própria vida, permaneceu sempre distante do mundo e do que é comum a todos, de modo que ele é completamente ignorante a respeito do funcionamento do espaço público e do tempo que o estrutura. Tendo garantida aquela liberdade de tipo negativa, que separa sua casa do restante do mundo, e tendo garantida a possibilidade de trabalhar para se manter e talvez prosperar, esta figura é indiferente a tudo o que se passa “lá longe, no mundo”.
Uma mudança nesta indiferença foi fundamental para os acontecimentos dos anos 1930, pois os movimentos nazista e comunista “recrutaram seus membros nesta massa de pessoas aparentemente indiferentes e que haviam sido abandonadas pelos demais partidos por serem demasiado apáticas ou estúpidas para merecer atenção. Resultou disto que a maioria dos membros era formada por pessoas que nunca antes haviam aparecido na cena política”, escreve Arendt em As origens do totalitarismo. Ou seja, os indiferentes se tornaram um problema porque repentinamente “adquiriram apetite por organização política” e apareceram na cena pública, moveram-se de fora para dentro do espaço público.
Mas, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o problema não está na entrada destas pessoas em cena, e sim na reclusão, típica da modernidade, aos interesses e vícios privados, que até pode resultar em benefícios econômicos para o conjunto da sociedade, mas traz consigo também a formação deste enorme e indefinido contingente de pessoas que ignoram completamente o sentido da política e o funcionamento do espaço público. Ou seja, o problema está na formação contínua desta massa localizada bem ao lado da cena pública e composta por milhões de indivíduos que são, no sentido original do termo, perfeitamente idiotas – em grego, idios quer dizer “propriedade”, em oposição ao que é comum, donde idiōtēs, que é “proprietário” e, em oposição ao homem público, é “estranho aos ofícios”, portanto “não versado”, “ignorante”, “vulgar”.
Projetando sobre o espaço público o funcionamento do espaço privado, os indiferentes gritam, aos montes, que os problemas da economia nacional se resolvem se todos acordarem mais cedo para trabalhar, que as questões sociais se sanam com castigos mais severos. Insensíveis ao tempo da política, acreditam que grandes mudanças exigem apenas o tempo de demonstração de suas verdades, creem no fim instantâneo da corrupção e nos efeitos imediatos de leis moralizantes. Sem a mínima noção do que é possível realizar dentro do espaço público, acreditam que um vereador pode acabar com a nudez das artes, que o jornalismo deve entregar bandidos e corruptos à polícia, que seus filhos se tornarão bons alunos porque o presidente prometeu educação rígida.
Todo este apetite por grandes mudanças esbarra, evidentemente, na realidade do corpo político, que, para a surpresa dos neófitos, não cede imediatamente a estes empurrões. Diante da resiliência do real, os indiferentes, incapazes de distinguir o que veem, não sabem se os obstáculos vêm do status quo, de adversários ou da simples impossibilidade do que querem, e terminam por ver, em cada dificuldade, a ação de um abstrato “sistema” contra o qual é necessário “fazer alguma coisa”, do que resulta uma luta confusa contra símbolos de um sistema que não sabem exatamente o que é e nem onde está.
Arendt chama esta luta de ativismo, negando-lhe o conceito de “ação”, muito mais nobre em seu pensamento. Para a autora, a ação é uma atividade necessária porque os humanos são todos diferentes entre si e precisam estabelecer consensos em vários níveis, o que faz dela a atividade política por excelência. Mas, para que a ação efetivamente ocorra, é necessário haver um espaço em que as diferenças se tornem visíveis a quem o frequenta, um espaço capaz de receber a pluralidade de atos e palavras de agentes identificáveis; enfim, é necessário um espaço público. Os agentes, para agir de modo eficaz, devem considerar a pluralidade essencial do público, escolher o tempo certo e os meios adequados à ação, ou seja, a ação exige capacidade de se mover no espaço público, senso de oportunidade, percepção das diferenças, conhecimento dos meios, coragem e, sobretudo, disposição para sair do espaço privado em direção ao público. Ela exige, portanto, tudo aquilo que falta a quem passa a existência indiferente ao mundo.
Os indiferentes de hoje são parecidos com os dos anos 1930, mas o surgimento das redes sociais alterou o espaço em que realizam seu ativismo. Antes, a expressão de um mal-estar causado em um indivíduo por uma notícia lida no jornal à mesa do café alcançava os membros da família ali presentes, chegava a alguns colegas de trabalho, talvez a alguns amigos, e só muito raramente cruzava a linha do espaço privado ganhando aparência pública. Isto porque, para ir ao público, seria necessário sair do círculo privado, formar alianças com pessoas incomodadas e dispostas a se mexer, identificar o lugar e o momento certo de cada passo, esperar os resultados, enfrentar as resistências. Ou seja, seria necessário agir, atividade que exige muito e nem sempre vale a pena. Com as redes sociais, no entanto, surgiu uma forma de ativismo que se dá pelo consumo e compartilhamento de imagens, que tem efeitos imediatos, não exige relação com as diferenças e, embora se dê de dentro da esfera privada, garante alguma aparência na cena pública. Sem ser exatamente público nem privado, o espaço das redes sociais permite que os indiferentes, sem perturbar sua liberdade negativa, exerçam forte pressão sobre a cena pública, sobre o espaço onde se faz a política.
Nos anos 1930, foi possível a alguns líderes convocar os novatos e formar aquelas massas cujas imagens nos impressionam ainda hoje. Atualmente, o marketing político, servindo-se de certas ferramentas capazes de individualizar a oferta de produtos a consumidores, aperfeiçoou suas técnicas, tornando-as capazes de controlar mais estritamente o que se vê ou deixa de ver nas redes, do que resulta um histérico ativismo fundado em imagens fabricadas para pequenos grupos e não naquilo que está no mundo e aparece para todos os que o frequentam. Hábeis marqueteiros, de dentro de seus escritórios, têm obtido grande sucesso em excitar e acalmar grandes quantidades de indivíduos atomizados que, sem sair do espaço privado, têm dado aparência a todos os seus incômodos e, evidentemente, formulado e exigido grandes mudanças para solucionar seus problemas. A esta altura dos fatos, a pressão exercida por esta forma de ativismo sobre o espaço público é visível na radicalização, nas polarizações, na frequência das afirmações delirantes, e a eficiente manipulação de mensagens de WhatsApp na reta final da campanha de Bolsonaro (assim como o caso Cambridge Analytica) exemplifica o uso eleitoral desta forma de recrutamento.
Deste ponto de vista, a forma política de parte do bolsonarismo parece mais perigosa do que o conteúdo conservador que o anima (um conteúdo que, lembremos, não é exatamente uma novidade no Brasil), pois ela se caracteriza pela entrada na esfera pública de milhões de indiferentes excitados e convocados ao ativismo de redes sociais. Por ter como centro um indivíduo muito parecido com um indiferente, foi especialmente fácil fabricar, a partir da estupidez de Jair, uma imagem de “antissistema” e, assim, atrair os indiferentes. Mas é perfeitamente possível fabricar outras imagens (de esquerda, inclusive) capazes de exercer pressão perigosa sobre o espaço onde fazemos política. De um ponto de vista arendtiano, portanto, o bolsonarismo é uma nova cristalização de certos elementos antipolíticos do mundo moderno, pois tem, entre suas origens, a silenciosa massa de indiferentes e este recente ativismo digital que, ao que parece, também veio para ficar.
THIAGO DIAS DA SILVA é doutor em filosofia pela USP, membro do Centro de Estudos Hannah Arendt e pesquisador do Centro de Estudos Hannah Arendt da Faculdade de Direito USP
As últimas páginas do livro “As origens do totalitarismo” (“The Origins of Totalitarianism”, edição em inglês, 1951), de Hannah Arendt, são dedicadas à análise de três termos – isolation, loneliness e solitude – que representam três modos de estar sozinho que a filósofa alemã naturalizada estadunidense analisa com uma alta precisão linguística, que leva a esclarecer o conceito de solidão e ajuda a se orientar dentro desse sentimento que se manifestou com grande evidência no recente confinamento e que, no entanto, representa uma condição com a qual o ser humano deve se defrontar desde sempre.
O comentário é de Lucio Coco, estudioso italiano de espiritualidade e literatura cristã grega e antiga, em artigo publicado em L’Osservatore Romano, 18-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na sequência que a autora apresenta, que assume o caráter de um verdadeiro “clímax ascendente”, primeiro bem o isolation, o isolamento. Ele equivale a uma condição de solidão na qual “todos os contatos entre os indivíduos são rompidos”, e “as capacidades de ação, frustradas”.
O isolamento afeta a função relacional e política do ser humano de se organizar, de formar equipe, de criar grupo. O ser humano isolado paga o preço, em primeiro lugar, da impossibilidade da socialização. Normalmente, diz Arendt, os regimes totalitários sempre se beneficiaram dessa situação, na qual o uno prevalece sobre os muitos (pollói), sobre os quais, pelo contrário, se constrói a democracia da polis, que deve a sua etimologia precisamente ao adjetivo polýs [muito]”.
Do ponto de vista psicológico, o isolamento interrompe as malhas da relacionalidade dentro das quais o ser humano está inserido, faz dele uma ilha, mas nada impede que, nessa ilha, possa haver vida. De fato, embora isolado, o ser humano conserva intactas as suas faculdades criativas. Pelo contrário, o isolamento corresponde à exigência delas para que o ser humano possa se afirmar como homo faber.
No isolamento, ele pode continuar trabalhando, projetando. O mundo, do qual ele está isolado, permanece sempre no seu horizonte, precisamente por meio do seu fazer e realizar. Com efeito, escreve Arendt que, “no isolamento, o ser humano permanece em contato com o mundo como artifício humano”, e isso na medida em que ele consegue conservar “a capacidade de acrescentar algo de próprio ao mundo comum”.
A situação é diferente com a segunda forma de solidão, a loneliness, levada em consideração pela filósofa alemã. Na loneliness, o horizonte mundano que o ser humano pressupõe no seu isolamento é completamente anulado. O que predomina nessa segunda condição é o dado existencial do “sentido de absolutamente não pertencer ao mundo [not belonging to the world at all]”, que, para a escritora alemã, “é uma das experiências humanas mais radicais e desesperadas [which is among the most radical and desperate experiences of a man]”.
A loneliness, acrescenta ela, “está estreitamente ligada ao desenraizamento e ao supérfluo [uprootedness and superfluousness]; o desenraizamento de não ter um lugar reconhecido e garantido pelos outros; o supérfluo de não se sentir parte do mundo”.
A solidão da loneliness corresponde, por isso, a uma forma de alienação que é “contrária às exigências fundamentais da condição humana”. No entanto, como acontece com Dante que, na confusão da “selva”, também entrevê o “bem”, essa obscura passagem existencial que coincide com o estranhamento de si mesmo, do ponto de vista psicológico, também representa “uma das experiências fundamentais de toda vida humana [one of fundamental experiences of every human life]”, no sentido de que toda vida, para se formar e se fortalecer, deve necessariamente fazer as contas com tal condição de abandono.
A loneliness, porém, especifica a filósofa em uma passagem muito significativa da sua argumentação, não é a solidão. Na loneliness, de fato, “eu sou efetivamente uno, abandonado por todos os demais [deserted by all others]”, enquanto, na solitude, eu estou “comigo mesmo e, por isso, dois em um [two-in-one]”.
Na solitude, eu mantenho um “diálogo pensante [thinking dialogue]” comigo mesmo, no qual eu nunca perco de vista os meus semelhantes e o mundo, que permanecem sempre presentes no eu com o qual eu conduzo o diálogo.
Na loneliness, essa referência ao mundo se perde, e o ser humano se encontra na incapacidade de fazer companhia a si mesmo no colóquio íntimo que mantém entre si e consigo. É precisamente esse tipo de solidão boa, que leva Cato, no “De re publica”, de Cícero, a dizer (a citação também é de Arendt) que “nunca estava menos sozinho do que quando estava sozinho” [numquam minus solum esse quam cum solus esse]”.
O contrário é a má solidão da loneliness, que “perde o contato com o mundo dos seus semelhantes” e entrega o ser humano à condição de se sentir “abandonado por toda a companhia humana [I as a person feed myself deserted by all human companionship]”.
Há, no entanto, uma saída para essa situação. Isso ocorre quando o lonely man consegue se reencontrar e recomeçar “o diálogo da solitude [the dialogue of solitude]”. Ou seja, quando ele volta a falar consigo mesmo de modo que o mundo e os seus semelhantes voltem a povoar o seu eu como referências possíveis, embora não presentes.
É evidente que aqui a autora de “A banalidade do mal” se refere ao destino de muitos internados nos campos de concentração nazistas, que conseguiram se salvar do desespero e da loucura, quando não caíram nas mãos dos seus algozes, precisamente encontrando espaços de solidão verdadeira.
No entanto, desse modo, a escritora de origem judaica está mostrando a todos nós o caminho para subir novamente ao cume da “perda do eu” que ocorre na loneliness através da reconquista “da confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos [the trust in himself as partner of his thoughts]”, que representa o pressuposto para transformar uma condição de fechamento em uma vivência positiva de abertura à vida que está na base de toda “solidão boa” em que cada um não sente que se perdeu, mas sim que se reencontrou.
