O CONCEITO DE FASCISMO
I
O que é o fascismo?
Comecemos por dizer francamente que a nossa repulsa por
ele não nos impede de considerá-lo um dos fenômenos políticos mais
significativos do século XX. E a existência de uma vastíssima literatura
dedicada ao tema sugere que o nosso ponto de vista não é muito
original: milhares de pessoas já viram no fascismo uma realidade
que merecia tornar-se objeto de estudos, reflexões, comentários,
pesquisas, reportagens, interpretações, crônicas, escritos das mais
variadas espécies.
Quem se aventurar a penetrar nessa floresta de papel impresso,
porém, verificará sem dificuldade que a imensa literatura sobre o
fascismo é profunda e incuravelmente contraditória.
Nós fizemos a experiência. E, mesmo fazendo abstração dos
esforços desenvolvidos explicitamente no sentido de legitimar
as posições fascistas, mesmo deixando de lado a literatura de
propaganda do fascismo, tropeçávamos a cada passo com formulações
provenientes de fontes ditas “liberais” ou até “socialistas” cujo uso
social (independentemente das intenções subjetivas de seus autores)
implicava impedir que o fascismo fosse efetivamente compreendido, implicava
confundir e enfraquecer as forças capazes de se opor com firmeza às tendências
fascistas.
Por isso, quando retornamos do passeio que fizemos ao longo
do material consagrado à discussão em torno do fascismo (um
passeio em que nunca tivemos a pretensão de “esgotar” a matéria e
nem mesmo a ilusão de nos tornarmos “especialistas”), decidimos
escrever esse trabalho, um trabalho obviamente polêmico, cuja
intenção é apenas a de facilitar a participação do público brasileiro na
importante batalha teórica que vem sendo travada há várias décadas no interior
da literatura sobre o fascismo.
Essa batalha continua, e provavelmente continuará ainda por
muitos anos. Ela faz parte do confronto teórico geral que se realiza
em torno de todos os temas “quentes” das ciências sociais.
O fascismo é, com toda a certeza, um desses temas. É, aliás, um
tema tão “quente” que costuma provocar queimaduras.
II
Por seu alto teor explosivo, a palavra “fascista” tem sido
frequentemente usada como arma na luta política. É compreensível
que isso ocorra. Para efeito de agitação, é normal que a esquerda
se sirva dela como epíteto injurioso contra a direita. No entanto,
esse uso exclusivamente agitacional pode impedir a esquerda, em
determinadas circunstâncias, de utilizar o conceito com o necessário
rigor científico e de extrair do seu emprego, então, todas as vantagens
políticas de uma análise realista e diferenciada dos movimentos das
forças que lhe são adversas.
Nem todo movimento reacionário é fascista. Nem toda
repressão, por mais feroz que seja, exercida em nome da
conservação de privilégios de classe ou casta é fascista. O conceito
de fascismo não se deixa reduzir, por outro lado, aos conceitos de
ditadura ou de autoritarismo.
A história da humanidade registra episódios de extrema
crueldade em momentos de tirania a mais absoluta, mas nem por
isso tem sentido sustentar que na antiga Esparta havia um Estado
fascista ou classificar Nero, em Roma, de fascista. O conceito de
fascismo também não nos ajudará absolutamente nada no exame
do fanatismo da Santa Inquisição ou no estudo da monstruosa
conquista do Peru pelos espanhóis.
Mesmo aplicado a movimentos, organizações e regimes do
nosso século, a formações sociopolíticas contemporâneas que
recorrem sistematicamente ao terror contrarrevolucionário, o
conceito pode se prestar a equívocos. Um exemplo: o falecido (e
nada saudoso) François Duvalier, o “Papa Doc”, representa no
Haiti um fenômeno comparável ao de Hitler e Mussolini? Na
crônica das perversidades, é possível que a ação dos Tonton-Macoutes
até supere a truculência dos squadristi e a ferocidade dos SA, mas a
significação histórico-mundial do que se passou na Itália, durante
os anos de 1920, e na Alemanha, durante os anos de 1930, é muito
diferente da do regime do “Papa Doc”. A tirania de Duvalier não
passa de uma variante extemporânea (nem por isso menos trágica)
do despotismo reacionário de velho estilo, cujas formas de existência
foram sendo banidas dos centros da história contemporânea e só
subsistem relegadas à periferia do nosso mundo. Mussolini e Hitler,
ao contrário, conquistaram um lugar no próprio centro da história
do nosso século, como pioneiros de uma nova concepção política da
direita.
III
O recurso aos conceitos de “direita” e “esquerda” tem sido,
ultimamente, muito questionado. Porém, se formos verificar,
perceberemos que aqueles que negam validade à contraposição
clássica de direita e esquerda nunca são homens de esquerda. O
historiador Enzo Santarelli lembra, a propósito, que no Congresso de
Roma (novembro de 1921), o recém-eleito deputado Dino Grandi
explicou a seus colegas de partido que ele e os demais fascistas só
tinham ocupado as cadeiras situadas à direita na Câmara por razões
“topográficas e pugilísticas” e não por motivos programáticos.1
Na realidade, o conceito de direita é imprescindível à uma
correta compreensão do conceito de fascismo, embora seja mais
amplo do que este: a direita é o gênero de que o fascismo é uma
espécie. E o objetivo do presente ensaio é exatamente esclarecer
o que é que essa espécie apresenta de novo no quadro da evolução
geral do gênero a que ela pertence.
Em sua essência, a ideologia da direita representa sempre a existência (e as exigências) de forças sociais empenhadas em conservar
determinados privilégios, isto é, em conservar um determinado sistema socioeconômico que garante o estatuto de propriedade de que
tais forças são beneficiárias. Daí o conservadorismo intrínseco da direita.
O conteúdo conservador de uma concepção não implica que ela
se exteriorize necessariamente numa política de resistência passiva à mudança. Os conservadores sabem que, para uma política ser eficaz, ela
precisa ser levada à prática através de iniciativas concretas, manobras,
concessões, acordos, golpes de audácia, formas de arregimentação
das forças disponíveis que transcendem da mera atitude doutrinária.
A efetiva conservação dos privilégios depende menos de esforços
lógicos do que de energia material repressiva: para o responsável pela
prisão é mais importante que os guardas sejam de confiança e as portas
das celas sejam sólidas do que persuadir os presos da excelência do
sistema penal vigente.
Um certo pragmatismo, portanto, se encontra em todas as
expressões qualificadas da direita, tanto em Metternich quanto em
Disraeli, tanto em Bismarck quanto em Churchill. Mas a ideologia da
direita encerra uma contradição interna, que se manifesta com clareza
tanto maior quanto mais abstrato é o nível da sua fundamentação
teórica: na medida em que a direita produz seus ideólogos mais
ambiciosos (os seus filósofos), não pode impedir que eles se lancem
em busca de princípios mais universais para a ideologia que estão
ajudando a elaborar. E a busca da universalidade torna a ideologia
da direita menos funcional, danifica a solidez das suas articulações
pragmáticas, inevitavelmente particularistas.
O próprio sistema em cuja defesa as classes dominantes se
acumpliciam, um sistema que gravita em torno da competição
obsessiva pelo lucro privado, impede que as forças sociais em que
consiste a direita sejam profundamente solidárias: elas só se unem
para os objetivos limitados da luta contra o inimigo comum.
Os ideólogos que, com maior ou menor consciência, representam
o conglomerado insuficientemente coeso das classes conservadoras
precisam competir entre eles. E a representação de cada grupo se
esforça por apresentar seu ponto de vista como mais válido, quer
dizer, mais universal que o dos demais grupos. A cínica confissão do
caráter pragmático, “arbitrário”, de uma mera defesa de interesses particulares enfraqueceria a posição de um ideólogo conservador de
tipo tradicional nessa competição. Por isso os ideólogos conservadores
tratavam de formular princípios “generosos”: tais princípios revelavam
na conquista das consciências uma eficácia mistificadora superior à
da secura pragmática. Mas, aumentando o poder de mistificação da
ideologia da direita, eles aumentavam também, inevitavelmente, os
seus elementos de automistificação. Embriagados com os princípios
“generosos” que haviam forjado, os grandes ideólogos da direita
perdiam a capacidade de legitimar com suficiente agilidade e eficácia
as jogadas dos líderes políticos, “práticos”, dos grupos conservadores
a que estavam ligados. Essa contradição interna do pensamento da
direita tornava para ela extremamente problemática a coordenação do
seu trabalho de resolução de problemas teóricos com o seu trabalho
de resolução de problemas práticos. Os ideólogos especulativamente
melhor aparelhados da direita (como Schopenhauer, Nietzsche,
Bergson) não assumiam funções significativas na direção de
organizações conservadoras especificamente políticas. E os dirigentes
políticos efetivos da direita não mostravam nenhum talento
especulativo, em suas tentativas de teorização. (Basta-nos lembrar
a unidade de teoria e prática em Marx, Engels e Lenin para termos
ideia de como a situação da direita contrastava com a da esquerda).
O fascismo representou, na história contemporânea da direita,
uma enérgica tentativa no sentido de superar a situação altamente
insatisfatória que a contradição de que vínhamos falando tinha criado
para as forças conservadoras mais resolutas. Enfrentando o problema
das tensões que se haviam criado no âmbito da direita entre a teoria e
a prática, o fascismo adotou a solução do pragmatismo radical, servindo-se
de uma teoria que legitimava a emasculação da teoria em geral.2
2 “A ação enterrou a filosofia”, dizia o Duce: L’azione ha seppellito la filosofia
(Opera Omnia, vol. XVIII, p. 465).
IV
Para elaborar suas concepções, o fascismo foi, pragmaticamente, buscar ideias no campo do inimigo. Numa direita apavorada
com a revolução proletária, era natural o impulso de macaqueá-la,
“assimilando-a” desfigurada para tentar neutralizá-la. Os conservadores
se puseram, então, a ler Marx, a estudar o socialismo. Alguns desertores
do movimento socialista vieram ajudá-los na tarefa de saquear o
arsenal ideológico do marxismo. A essência do pensamento de Marx
era naturalmente incompatível com os interesses vitais das classes
conservadoras, mas a direita não estava iludida a esse respeito e não
tinha a menor intenção de se converter ao marxismo: o que ela queria
era “importar” do marxismo alguns conceitos, desligando-os do contexto
em que tinham sido elaborados, mistificando-os e tornando-os úteis
aos seus propósitos.
Coube ao fascismo italiano empreender, pioneiramente, o
assalto. Mussolini, ex-agitador do Partido Socialista, que em 1910
dirigia uma publicação intitulada Lotta di classe (em Forli), passou-se
com armas e bagagens para o lado da burguesia e se incumbiu de
vender-lhe a sua interpretação da teoria da luta de classes.
Segundo essa nova interpretação, Marx havia descrito com vigor
uma dimensão real da história, um fato essencial da evolução das
sociedades (fato que, aliás, conforme ele mesmo reconhecera, Marx
não fora o primeiro a observar). Havia, porém, no filósofo alemão, uma certa ingenuidade que Mussolini julgava ter superado: Marx
acreditava que, na fase atual da sua história, a humanidade estava
preparada para, através da ação revolucionária do proletariado, pôr
fim à luta de classes e criar o comunismo. Mussolini encarava a luta
de classes como um aspecto permanente da existência humana, uma
realidade trágica insuperável: o que se precisava fazer era discipliná-la,
e o único agente possível dessa ação disciplinadora teria de ser uma
elite de novo tipo, enérgica e disposta a tudo.
Além disso, Mussolini achava que Marx se tinha fixado
exageradamente no confronto do proletariado com a burguesia e
tinha deixado de lado um aspecto da luta de classes que era ainda
mais importante que o outro: a luta entre as nações proletárias
e as nações capitalistas. (A burguesia italiana, que tinha chegado
tarde à partilha do mundo pelas potências imperialistas, não podia
deixar de ver com simpatia esse “desenvolvimento” da teoria da
luta de classes, que legitimava as reivindicações imperialistas que
ela, como representante da Itália-proletária, apresentava aos
ingleses e franceses.)
Ainda mais significativa que a interpretação fascista da luta de
classes, porém, foi a interpretação fascista de outro conceito de Marx:
o conceito de ideologia.
Marx havia formulado o princípio da unidade da teoria e da prática
e havia sustentado que toda produção cultural, todo pensamento
significativo, nasce, vive e morre (ou se transforma) em visceral
ligação com as condições materiais de vida dos seres humanos que
a elaboraram, numa ligação essencial com as condições sociais do
mundo determinado em que essa cultura “brotou”.
Marx mostrou que qualquer tentativa no sentido de analisar
uma teoria fazendo abstração de seu uso social só podia encerrar
uma mistificação. Mas nunca lhe passou pela cabeça reduzir o
patrimônio de verdades dos seres humanos a uma função episódica,
circunstancial, a uma instrumentalização estreita, ao uso imediato de
um momento fugaz. Marx sabia que a dimensão da mudança só pode ser pensada concretamente se não perdermos de vista os problemas
relativos à continuidade da história. Marx não era Heráclito de Éfeso,
que não acreditava na possibilidade de um homem tomar banho
duas vezes no mesmo rio, não absolutizava de maneira unilateral e
abstrata a transformação constante a que todos nós estamos sujeitos.
Quando, na sua Introdução geral à crítica da Economia Política, falou
da arte grega clássica, não deixou de chamar a atenção para o fato
de que era mais fácil explicar em que Homero e Ésquilo exprimiam
a sociedade grega de seu tempo do que explicar por que as obras
que deixaram superaram as barreiras da geografia e da cronologia
e continuaram a ser fonte de prazer estético e lição viva para nós,
ainda hoje. Reconhecendo a capacidade de persistência de certos valores,
Marx não se afastou da história: apenas demonstrou claramente que
não a concebia de maneira estreita, relativista, amputando-a da sua
dimensão de continuidade.
Mussolini, entretanto, transformou a teoria marxista da
unidade da teoria e da prática numa identidade de teoria e prática. A teoria
perdeu sua capacidade de “criticar” a prática: cortaram-lhe as asas,
ela deixou de poder se elevar acima do solo onde surgia e se viu
completamente instrumentalizada. Em lugar de se reconhecerem
socialmente condicionadas (como em Marx), as verdades passaram a
morrer, sistematicamente, pregadas na cruz da utilidade circunstancial que
o cinismo dos fascistas encontrava para elas.3
3 Cf. Mussolini: “Se la verità è incrinata, è invecchiata, è superata, noi non
ci attacchiamo a questa verità come le ostriche allo scoglio, ma la gettiamo
perché è diventata un impaccio al nostro cammino e al nostro progredire”
(Opera Omnia, XVI, p. 174). E mais adiante: “Noi ci permettiamo il lusso
di essere aristocratici e democratici, conservatori o progressisti, reazionari e
rivoluzionari, legalitari e illegalitaria, a seconda delle circostanze di tempo,
di luogo, di ambiente” (Opera Omnia, XVI, p. 212).
V
Mas o empenho político pragmático e radical do fascismo na
luta contra a revolução exclui um relativismo absoluto. O relativismo é
incapaz de armar os homens para o combate, ele impede a formação
de bases suficientemente sólidas para as convicções apaixonadas
que devem mover ao engajamento. Mussolini compreendia que o
fascismo se beneficiaria da mais extrema flexibilidade ideológica e
definia o fascismo como “um movimento super-relativista” (Opera
Omnia, vol. XVII, p. 268), porém não lhe escapava também a
necessidade de indicar aos seus liderados uma direção clara e permanente
para a canalização das energias deles. “Negare il bolscevismo è necessario”,
dizia o Duce, e completava: “ma bisogna affermare qualche cosa” (Opera
Omnia, vol. XIII, p. 29). Era imprescindível um princípio sagrado,
posto acima de qualquer discussão, imune a qualquer dúvida, capaz
de funcionar como bússola quando o barco tivesse de manobrar em
meio à tempestade, um valor supremo que nunca se degradasse e
pudesse alimentar incessantemente a chama da fé no coração dos
combatentes.
Mussolini percebeu logo no começo da guerra de 1914-1918
qual poderia ser esse valor supremo, esse mito: a pátria. Ele
próprio o diz, com sua franqueza habitual: “Criamos o nosso
mito. O mito é uma fé, é uma paixão. Não é preciso que seja
uma realidade. [...] O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação! (Noi abbiamo creato il nostro mito. Il mito è una
fede, è una passione. Non è necessario che sia una realità. [...] Il nostro
mito è la nazione, il nostro mito è la grandezza della nazione!) [Opera
Omnia, vol. XVIII, p. 457].
A nação italiana era, evidentemente, uma realidade: uma
realidade complexa, uma sociedade marcada por conflitos
internos profundos, dividida em classes sociais cujos interesses
vitais se chocavam com violência. Mussolini fez dela um mito,
atribuindo-lhe uma unidade fictícia, idealizada. Aproveitando
uma ideia do nacionalista de direita Enrico Corradini,
apresentou a Itália como uma “nação proletária”, explorada por
outras nações, e acusou seus ex-companheiros socialistas de
utilizarem o proletariado italiano para, com suas reivindicações,
enfraquecerem internamente o país em proveito dos inimigos
que a Itália tinha no exterior.
Para Mussolini, as contradições da Itália, agravadas pela guerra
e pela crise do imediato pós-guerra, se resumiam numa única
luta entre a nação e a antinação (lotta fra la nazione e l’antinazione)
[Opera Omnia, vol. XIV, p. 172]. Processava-se uma absorção do
social pelo nacional. A fórmula veio a se tornar um dos princípios
básicos do fascismo e logo adquiriu notável influência em escala
internacional. Hitler adotou-a e radicalizou-a, sustentando, já em
1922, que “nacional” e “social” eram conceitos idênticos (‘National’
un ‘Sozial’ sind zwei identische Begriffe).4
Assim como Mussolini utilizou a concepção da “Itália proletária”
de Corradini, Hitler se apoiou nos escritos de um nacionalista de
direita, Arthur Moeller van den Bruck, que, num livro publicado
em 1923, O Terceiro Reich (livro que mais tarde viria a dar seu nome
ao regime hitleriano), advertia a opinião pública de seu país para
o fato de que as outras nações europeias, vencedoras da guerra de 1914-1918, estavam proletarizando a Alemanha. “Estamos nos
tornando uma nação proletarizada”, dizia ele.5
O sentido social conservador dessa ideia era claro: tanto na
Alemanha quanto na Itália, os trabalhadores eram convidados a ver
em seus compatriotas capitalistas não os beneficiários de um sistema
social baseado na exploração interna, mas sim colegas proletarizados (ou
em vias de proletarização), vítimas de um sistema de exploração internacional.
4 Sozialismus, wie ihn der Fuehrer sieht, F. Menstre, ed. Heerschild, Munchen,
1935, p. 26.
5 Wir sind auf dem Wege, eine proletarisierte Nation zu werden (Moeller van den
Bruck, Das Dritte Reich, p. 158).
VI
O recurso fascista ao mito da nação só pôde ser eficaz porque, em
sua evolução, o capitalismo havia ingressado em sua fase imperialista:
nos países capitalistas mais adiantados, o capital bancário havia se
fundido com o capital industrial, constituindo o capital financeiro; as
condições criadas nesses países exigiram deles a exportação sistemática
de capitais; acentuou-se a competição em torno da exploração colonialista; e,
no bojo da guerra interimperialista de 1914-1918, difundiram-se em
alguns países acentuados ressentimentos nacionais, análogos, à primeira
vista, às mágoas dos povos explorados.
Havia, porém, uma diferença essencial entre os ressentimentos nacionais cuja difusão as classes dominantes patrocinaram na
Itália e na Alemanha (e, em outros termos, também no Japão) e
a autêntica revolta nacionalista dos povos submetidos à exploração
colonial. O nacionalismo dos povos efetivamente oprimidos e explorados
é tendencialmente democrático e se fortalece através da mobilização popular
feita “de baixo para cima”. Ele nasce de um movimento cujas raízes
se acham nas condições reais da nação e por isso a assume em toda
a sua complexidade, em sua contraditoriedade interna, não precisa
renegá-la e substituí-la por um mito. O pretenso “nacionalismo”
fascista, ao contrário, por seu conteúdo de classe e pelas condições
em que é posto em prática, exige a manipulação das massas populares,
limita brutalmente a sua participação ativa na luta política em que são utilizadas, impondo-lhes diretivas substancialmente imutáveis
“de cima para baixo”.
Na prática, a demagogia fascista assume frequentemente
formas “populistas”, lisonjeando o “povo”, prestando-lhe todas as
homenagens e contrapondo-o à “massa” (que representa apenas o
peso morto da “quantidade”). Mas esse “populismo” pressupõe um
“povo” tão mítico como a “nação”, nos quadros da ideologia fascista.
E todas as vezes em que alguma tendência no interior do fascismo se
mostrou mais sensível a pressões “plebeias” e procurou aprofundar
certos aspectos “populistas”, foi sumariamente cortada pelas forças
que mantinham a hegemonia no movimento fascista. Basta lembrar
aqui a queda de Gregor Strasser, na Alemanha, o afastamento de
Farinacci, na Itália, ou a derrota de Kita Ikki, no Japão.
6
O nacionalismo que exprime os sentimentos de um povo explorado pelo capital estrangeiro ou que exprime a revolta de um povo
contra imposições de outra nação é um nacionalismo essencialmente
defensivo: seus valores podem levá-lo a hostilizar circunstancialmente os
estrangeiros exploradores, mas ele não se afirma em contraposição
à humanidade em geral e não nega os valores das outras nações. A
valorização fascista da nação, ao contrário, exatamente porque é
6 Gregor Strasser, farmacêutico bávaro, tornou-se líder nazista no Norte da
Alemanha e exerceu forte influência sobre Goebbels até 1926. No livro
Kampf um Deutschland, publicado em 1932, insistia em que os nazistas eram
socialistas, “inimigos mortais do sistema econômico capitalista”. Hitler
mandou matá-lo em 30 de junho de 1934.
Roberto Farinacci, líder do fascismo em Cremona, expoente da “linha
dura”, assumiu a secretaria-geral do Partido Nacional Fascista para liquidar a oposição antifascista, mas não aceitou as manobras de composição de
Mussolini com a Igreja e foi derrubado do cargo em 30 de março de 1927.
(Ressurgiu, mais tarde, a serviço da política de Hitler).
Kita Ikki, profundamente impressionado pelo movimento revolucionário
chinês de Sun Yat Sen, lançou as bases de um movimento de libertação da
raça amarela em luta contra a raça branca, num livro publicado em 1919
(Esboço de programa para a reforma do Japão), onde o fascismo assumia tons
anti-imperialistas. Em 1937, tentou um putsch que fracassou e foi fuzilado.
inevitavelmente retórica, precisa ser agressiva, precisa recorrer a uma
ênfase feroz para disfarçar o seu vazio e tende a menoscabar os
valores das outras nações e da humanidade em geral. Isso se verifica, por exemplo, numa frase do Discurso a las juventudes de España
(1935), em que o fascista espanhol Ramiro Ledesma proclama:
“Nos importan más los españoles que los hombres” (p. 52). No caso dos
fascistas alemães, o fenômeno ainda se mostra com maior clareza,
por causa da ideologia racista, que veio a fortalecer imensamente o
chauvinismo.
7
7 As proporções assumidas pelo racismo e pelo antissemitismo no caso do fascismo alemão contribuem para que alguns autores – como Leon Poliakov e
Josef Wulf, por exemplo – percam de vista o fato de que na ideologia fascista é
o chauvinismo que é essencial, e não o racismo. Pode existir um fascismo que
não seja racista, mas não pode existir fascismo que não seja chauvinista.
VII
Apesar de sua fragilidade intrínseca, o mito fascista da nação
mostrou-se eficiente: brandindo-o exaltadamente, o fascismo
conseguiu recrutar adeptos em todas as classes sociais (inclusive
nas classes que nada teriam a lucrar com a sua política).
As razões para essa eficácia derivam de um conjunto de
circunstâncias. No plano cultural, a direita havia preparado terreno
para o avanço do fascismo através de um bombardeio constante
e prolongado, que destruía não só os princípios do liberalismo
como, sobretudo, as convicções democráticas e a confiança nas massas
populares, que poderiam constituir a única base suficientemente
sólida para a oposição consequente à expansão das tendências
fascistas. Em certos círculos intelectuais, ostentava-se acentuado
desprezo pela “plebe”, pelas “moscas da praça pública”, como dizia
Nietzsche. E essa difusão de preconceitos aristocráticos influiu
sobre algumas forças potencialmente progressistas, levando-as a
subestimar na prática a necessidade do trabalho político com as massas
(Deficientemente preparadas no plano ideológico, deficientemente
organizadas, inseguras e confusas, e submetidas a uma pressão
que as desagregava internamente, as massas passaram a encontrar
crescentes dificuldades para seguir os caminhos das soluções coletivas;
suas energias começaram a se dispersar pelos múltiplos caminhos
– socialmente ilusórios – das “soluções” individuais).
Nos planos econômico, social e político, por outro lado, haviam
amadurecido tendências destinadas a desempenhar um papel ainda
mais importante que o da preparação cultural para a expansão do
fascismo. O capitalismo, como sistema, jogara os homens uns contra
os outros, numa competição desenfreada onde só uma coisa podia
contar: o lucro privado. Desenvolveram-se enormes metrópoles
capitalistas, povoadas por multidões de indivíduos solitários,
amedrontados, cheios de desconfiança. As condições técnicas da
produção industrial aproximavam os seres humanos, socializavam a
vida deles, mas as condições privadas, exacerbadamente competitivas,
criadas pelo capitalismo para a apropriação da riqueza produzida
afastavam-nos uns dos outros. Vítimas da tendência desagregadora
que se fortalecia no interior da vida social, reduzidos a uma solidão
angustiante, os indivíduos – reconhecendo sua fragilidade –
ansiavam por se integrar em comunidades capazes de prolongá-los, de
completá-los. O socialismo, apoiado sobre a massa do proletariado
industrial, que o próprio capitalismo precisara concentrar em suas
fábricas, representava uma perspectiva de atendimento a essa exigência,
propondo uma reorganização prática da vida social, uma superação
revolucionária das relações capitalistas de produção: por isso, o seu
apelo e a sua mensagem encontraram eco nas massas populares
em geral, além das fronteiras da classe operária em sentido estrito.
Mas o socialismo, desenvolvendo-se num meio hostil e sob a
poderosa pressão de seus inimigos, não podia permanecer imune
à influência da ideologia dominante, isto é, à ideologia das classes
dominantes: o amadurecimento das contradições da nova fase em
que o capitalismo ingressara – a fase imperialista – acabou por se
manifestar numa guerra interimperialista (a guerra de 1914-1918)
e o movimento socialista, que já estava em crise, acabou por se
cindir. E foi precisamente no auge da crise do movimento socialista,
quando a cisão tumultuava no espírito de muitos a compreensão
do seu sentido, que o fascismo passou a se empenhar a fundo
na apresentação do seu mito da nação como algo capaz de satisfazer às exigências de vida comunitária, que os indivíduos, no quadro da
sociedade capitalista, são levados a experimentar de maneira intensa
porém frequentemente confusa.
A classe operária foi, evidentemente, menos envolvida pela
demagogia “nacionalisteira” dos fascistas do que a pequena
burguesia e as chamadas camadas médias da população. Mas mesmo
alguns trabalhadores chegaram a se entusiasmar com a ideia de
pertencerem à “comunidade popular” (Volksgemeinschaft) dos
alemães, à superior “raça ariana”; ou então – na Itália de Mussolini
– chegaram a se entusiasmar com a ideia de serem os herdeiros
do antigo império romano, de César e de Augusto, e de ajudarem
a relançar as bases da grandeza italiana no mundo, partindo do
conceito religioso da “italianidade” (Mussolini: “gettare le basi della
grandezza italiana nel mondo, partendo del concetto religioso dell’italianità”,
Opera Omnia, vol. XVI, p. 45).
Na Itália e na Alemanha, países que só realizaram a unificação
nacional na segunda metade do século 19, o chauvinismo fascista
assumiu tons particularmente histéricos e monstruosos; mas a
verdade é que o uso do mito da nação como sucedâneo da autêntica
comunidade humana pela qual as pessoas anseiam é uma característica
essencial do fascismo e se manifesta em todos os movimentos
desse tipo, independentemente dos países em que se realizam e
independentemente das formas particulares que assumem (seja no
Dai Nihon kokusuikai, isto é, na “Sociedade da Tradição Nacional
Japonesa”, com que o ministro Tokonami Takejiro tentou dividir
os trabalhadores nipônicos em 1919, seja na “democracia orgânica”
de Salazar ou no comparativo de superioridade da “Greater Britain”
do fascista inglês Oswald Mosley).
Aliás, já que mencionamos os aspectos mais “monstruosos”
que a demagogia fascista assumiu, ao servir-se do mito da nação, na
Itália e na Alemanha, convém alertar os leitores para o erro em que
incorrem alguns estudiosos do fascismo hitleriano e do fascismo
mussoliniano: eles ficam tão (compreensivelmente) impressionados com a “monstruosidade” do fenômeno que acabam por renunciar
à tarefa de esclarecer por que ele chegou a ocorrer. Para esclarecer a
eficácia do chauvinismo fascista, convém lembrar que ele conseguiu,
às vezes, tirar proveito de críticas bastante bem fundamentadas aos
imperialismos rivais. Durante a guerra com os ingleses, em 1940,
Hitler lembrou, por exemplo, que a Inglaterra, com 46 milhões de
habitantes, havia subjugado 480 milhões de habitantes de outros
países e conquistado territórios que, somados, chegavam a ter 40
milhões de km2
. E acusou: “A história da Inglaterra é uma sequência
de violações, de chantagens, de atos de prepotência, de opressão e
de exploração de outros povos” (Discurso de 30/1/1940, em Der
Grossdeutsche Freiheitskampf).
VIII
Outra circunstância que não pode ser esquecida no exame das
causas que permitiram os êxitos do fascismo nos anos de 1920
e 1930: o fascismo foi o primeiro movimento conservador que,
com seu pragmatismo radical, serviu-se de métodos modernos de
propaganda, sistematicamente, explorando as possibilidades que
começavam a ser criadas por aquilo que viria a ser chamado de
sociedade de massas de consumo dirigido.
No bojo das transformações que lhe eram impostas pelas condições do imperialismo, o sistema capitalista, impelido a expandir-se,
deixou de controlar apenas a produção e começou a estender seu
controle também ao consumo, promovendo investimentos cada
vez mais substanciais na propaganda dos produtos, para influenciar a conduta do consumidor. O fascismo percebeu, agilmente, que
esse crescente investimento na propaganda, servindo-se de novas
técnicas e de novos meios de comunicação, abria também novas
possibilidades para a ação política, e tratou de aproveitá-las. No
lugar da imagem dos políticos conservadores tradicionais, com seus
fraques e cartolas, muitas vezes apoiando em bengalas seus vultos
pálidos e senis, difundiu-se pela Itália inteira a imagem de um Duce
cheio de vitalidade, viajando frequentemente de avião e ditando por
telefone os artigos diários destinados aos leitores do seu jornal. No
lugar da polida oratória parlamentar, impôs-se o discurso enérgico, de agitação,
8
pronunciado ao vivo em múltiplos comícios ou então
ressoando por todo o país, graças ao uso sistemático (pioneiro) do
rádio. (Hitler cuidou inclusive de promover o fabrico barato de uma
grande quantidade de aparelhos de rádio padronizados – os “rádios
do povo” – para que todas as famílias da “comunidade popular”
alemã pudessem ouvir em casa, em condições de “igualdade”, a
voz do Fuehrer).
A principal vantagem dessa “imagem”, difundida com eficiência
em escala massiva, é que ela disfarçava o conteúdo social conservador do
fascismo e fixava a atenção da massa no “estilo novo”, “dinâmico”,
nas potencialidades “modernizadoras” do movimento fascista. O
movimento foi caracterizado por Goebbels como “tão moderno
que o mundo inicialmente não pôde entendê-lo” (Der Faschismus
und seine praktischen Ergebnisse, Berlim, 1934. No original: so modern,
dass die Welt es nicht begreifen konnte).
8 Por ter pragmaticamente renunciado a empenhar-se nas formas necessariamente complexas da elaboração teórica, doutrinária, o fascismo, concentrando-se nas formas simples da agitação, levou vantagem sobre as demais
forças representativas da direita e explorou com maior proveito que elas as
possibilidades oferecidas pelo rádio.
IX
Os imponentes investimentos dos fascistas no setor da
propaganda nos impõem a pergunta: de onde provinham os fundos
que eram investidos? Uma primeira resposta, óbvia, que nos ocorre
imediatamente, é a de que o dinheiro só podia ser fornecido por
aqueles que o tinham. Mas é preciso tentar esclarecer quais os setores
que financiaram o fascismo.
Normalmente, esse esclarecimento apresenta grandes
dificuldades. Por sua própria natureza, esse tipo de fornecimento
de dinheiro evita deixar-se documentar. Mas os historiadores
conseguiram apurar numerosos casos de grande significação.
Sabe-se hoje, por exemplo, que, no momento em que Mussolini
estava bastante deprimido com a derrota eleitoral que os fascistas
italianos sofreram em novembro de 1919, ele recebeu substancial
apoio financeiro de alguns grandes industriais, entre os quais Max
Bondi, do grupo Ilva, que era o principal grupo siderúrgico da Itália.9
Sabe-se, também, que, durante a crise que se seguiu ao assassinato
do deputado socialista Giacomo Matteotti em 10 de junho de 1924,
o grande capital poderia ter retirado seu apoio ao Duce e este teria
9 Cf. Renzo De Felice, Mussolini il Rivoluzionario, ed. Einaudi, Torino, 1965. E
também Valerio Castronovo, “Il Potere economico e il fascismo”, em Fascismo e Società Italiana, Quazza e outros, ed. Einaudi, Torino, 1973.
caído, realizando-se a passagem do poder, sem grandes riscos, para
uma coalizão de políticos liberais-conservadores recrutados entre
os oposicionistas que abandonaram o Parlamento e foram reunir-se
sobre uma das colinas de Roma, no Aventino. Mas o grande capital
continuou a preferir a ditadura de Mussolini a um governo centrista
comandado, digamos, por Giovanni Amendola.
No caso da Alemanha, sabe-se, ainda, de coisas mais sérias.
Sabe-se que, em 26 de janeiro de 1932, Hitler fez no Clube da Indústria de Dusseldorf um discurso no qual antecipava seu programa
econômico de governo e seu discurso foi calorosamente aplaudido
por várias dezenas de grandes industriais e grandes banqueiros.
Num artigo publicado no Preussische Zeitung, em 3/1/1937, Emil
Kirdorf, proprietário principal da empresa que explorava as minas
de Gelsenkirchen, conta como, desde 1927, ele se empenhava em
ampliar e aprofundar os contatos entre o Fuehrer e os representantes
do capital financeiro. Entre estes, ao lado de Fritz Thyssen (que se
orgulhava de financiar Hitler desde 1923), havia muitos que em
1931 já contribuíam com regularidade para o Partido Nacional-
-Socialista, como Fritz Springorum, da Hoesch (indústria química),
Albert Vögler, Ernst Poensgen e Ernst Brandi (das Empresas Unidas
do Aço, Vereinigte Stahlwerke), Wilhelm Keppler, Rudolf Bingel
(Siemens & Halske), Emil Meyer (Dresdner Bank), Friedrich Heinhardt (Commerz und Privatbank), Kurt von Schroeder (Bankhaus
Stein) e diversos outros. Os autos do “Processo contra os principais
criminosos de guerra perante o Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg (de 14 de novembro de 1945 a 1º de outubro de 1946)”
estão cheios de depoimentos e documentos de vários tipos, que
comprovam abundantemente a íntima vinculação do nazismo com o
capital financeiro. No volume 35, à página 70, catalogado com o título
de “Documento D-317”, encontra-se um texto em que o magnata
Krupp explica que, quando Hitler desencadeou a guerra, “os empresários alemães empreenderam de todo coração a caminhada pelo
novo curso; que eles, com a melhor disposição e conscientemente agradecidos, compreenderam e adotaram como suas as grandes
intenções do Fuehrer, reafirmando-se como fiéis seguidores dele”.
Outros textos, não menos eloquentes, mostram que, sem o apaixonado empenho da direção da IG-Farben no fabrico de borracha
sintética e de produtos de magnésio, teria sido impossível a Hitler
lançar-se à guerra.10
Mas há ainda um outro nível – mais abstrato – de vinculação
do fascismo com os interesses básicos do capital financeiro.
A guerra de 1914-1918 manifestou com clareza as profundas
contradições existentes no mundo criado pelo capitalismo em sua
fase imperialista. Pela concentração de poder econômico realizada
em suas mãos, o capital financeiro foi levado a assumir a liderança na
luta pela conservação (e correspondente atualização) do sistema. Para o
capital financeiro, entretanto, o sistema só poderia ser salvo por meio
de reformas que suprimissem certos estorvos, remanescentes da fase
da “livre competição”, acentuassem a concentração do capital (uma forma
de “racionalização” da economia) e aprofundassem a interdependência
entre os monopólios e um “Estado forte”.
11 Antes da crise mundial do
capitalismo em 1929, esse programa ainda encontrou dificuldades
para se traduzir em formas claras. Mussolini, durante os anos de
1920, ainda hesitava quanto aos modos de concretizá-lo, insistindo
demais no fato de que o Estado deveria ser politicamente forte, mas
deveria esquivar-se a toda e qualquer intervenção na esfera econômica. Mais
tarde, o Duce evoluiu no sentido de aceitar a intervenção do Estado
na esfera econômica. Com Hitler, contudo, já não houve hesitação:
subindo ao poder após a crise de 1929, o Fuehrer já assumiu seu posto de comando com uma clara visão das tarefas que o Estado teria
fatalmente que assumir nas condições de implantação do capitalismo
monopolista de Estado.
10 Cf. Dieter Halfmann, Der Anteil der lndustrie und Banken an der faschistischen
Innenpolitik, Pahl-Rugenstein, Colônia, 1974. Cf. também Eberard Czichon,
Wer verhalf Hitler zur Macht?, Pahl-Rugenstein, Colônia, 1967.
11 Convém frisar o termo interdependência. No capitalismo monopolista de
Estado, o Estado depende do apoio dos monopólios, os monopólios dependem do apoio do Estado, mas não se processa uma fusão do Estado com os
monopólios.
X
Em face do que já foi dito, podemos então formular uma
primeira tentativa de conceituação do fascismo.
Repetimos a pergunta com que iniciamos nossas considerações:
o que é o fascismo?
E respondemos: o fascismo é uma tendência que surge na fase
imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições
de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se
através de uma política favorável à crescente concentração do capital;
é um movimento político de conteúdo social conservador, que se
disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia
de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e
conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo
manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal,
antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento
num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma
preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das
forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência
junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada
sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência
nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital
industrial, isto é, a existência do capital financeiro.
Michelangelo Bovero
Do cientista político Norberto Bobbio (1909-2004) "Do fascismo à Democracia" reune doze ensaios escritos ao longo de 32 anos de análise da história política da Itália. A seguir um texto desse importante pensador contemporânea.
Prefácio à edição brasileira por Michelangelo Bovero, talvez a primeira tradução em outra língua que não o italiano da coletânea de ensaios de Norberto Bobbio que organizei em 1997, sob o título "Do fascismo à democracia".
São ensaios dedicados à história política e político-cultural italiana da primeira metade do século XX. Portanto, não seria implausível considerar que os acontecimentos e os personagens dos quais Bobbio trata aqui possam chamar a atenção exclusivamente do leitor italiano, e que, fora da Itália, a tradução de um livro como este corra o risco de não suscitar grande interesse, senão de alguns especialistas de história contemporânea, além, naturalmente, dos estudiosos do pensamento de Bobbio, particularmente difundidos na América Latina, e dos apaixonados leitores das suas obras, espalhados por todo o mundo e sempre atentos a extrair ensinamentos gerais, mesmo que indiretos, de seus escritos, qualquer que seja o tema.
De meu ponto de vista, ao contrário, a fecundidade e a atualidade das análises de Bobbio contidas nestes ensaios vão muito além dos limites histórico-geográficos de seu objeto específico. Por isso, parece-me que deva ser considerada mais que oportuna esta tradução em língua portuguesa, proporcionada pela mesma editora brasileira que há poucos anos foi a primeira a publicar, e em tempo curtíssimo, considerando o edifício da obra, uma ótima tradução da substanciosa Teoria generale della política [Teoria geral da política], de Bobbio.
A relevância para um público não apenas italiano deste livro dedicado à história política italiana possui acima de tudo uma razão objetiva. Os acontecimentos que conduziram à gênese e à afirmação do fascismo, depois à difusão da resistência contra o regime, e por fim à instauração da democracia constitucional na Itália, são por muitos aspectos e em muitos sentidos paradigmáticos.
Exemplar, infelizmente, foi, em primeiro lugar, o próprio fascismo: um modelo banido, uma verdadeira praga política do século XX, que carrega a marca original "made in Italy" e que conheceu inúmeras imitações e adaptações em todas as partes do mundo. O modo pelo qual Bobbio reconstrói a natureza do regime e da ideologia fascista, isto é, do protótipo italiano da ideologia fascista, isto é, do protótipo italiano da antidemocracia, oferece um parâmetro para a análise comparativa de muitos fenômenos análogos.
Mas também a agregação das forças antifascistas italianas em uma única frente de oposição ao regime, e sobretudo a sua convergência no projeto comum de refundar a convivência política tendo por base o pluralismo ideológico, representa uma história exemplar: a história do nascimento, ou renascimento, de uma comunidade democrática.
Enfatizo que, exatamente a partir da reflexão sobre a experiência italiana, Bobbio extraiu um modelo teórico da gênese da democracia cujos momentos essenciais são especificados em uma série de pactos entre sujeitos políticos com interesses e aspirações ideas diferentes.
A formulação conclusiva do pacto de convivência política é a Constituição. Pois bem, também a constituição italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no imediato pós-guerra por obra de uma Assembléia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e cujas características e origem Bobbio reconstrói em um capítulo deste livro, pode ser considerada a seu modo exemplar: tanto é verdade que foi assumida como ponto de referência e, por muitos aspectos, exatamente como um modelo, por exemplo, pelos redatores da Constituição espanhola pós-franquista.
O mais forte motivo de interesse não circunscrito deste livro não é contudo objetivo, mas sim, subjetivo: quero dizer, reside não no seu objeto, mas no modo pelo qual o seu autor o enfrenta.
Do fascismo à democracia não é apenas um livro de história, assim como Bobbio não é sobretudo um historiador, a não ser talvez no sentido no qual Hegel, referindo-se a si mesmo, interpretava a figura do filósofo como um "historiador pensante" e definia a filosofia como "o próprio tempo captado em pensamentos".
Também em ocasiões, como esta, em que assume o papel de historiador de instituições e de ideologias, a a contribuição peculiar de Bobbio não reside tanto na reconstrução da realidade dos fatos, acontecimentos e personagens, mas na construção de categorias analíticas de vasto alcance para interpretar a realidade e dela colher o significado essencial. Destes ensaios dedicados à história da Itália emerge um modelo interpretativo e valorativo de horizonte mais amplo, aplicável portanto também a realidades historicamente distintas daquela oferecida pelo estudo de caso inicial.
Como procurei enfatizar na introdução à edição italiana do volume, a estrutura elementar do modelo aqui proposto por Bobbio consiste a dúplice equação entre fascismo e antidemocracia e entre democracia e antifascismo, que permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resume na negação total da democracia.
Ao apresentar esta meritória edição em língua portuguesa, permito-me indicar (apenas por acenos e alusões) algumas direções ulteriores de análise e reflexão, nas quais poderia mostrar-se novamente fecundo e iluminador recorrer ao modelo conceitual construído por Bobbi nestas páginas.
Há algum tempo vêm se difundindo no mundo formas de agir político que os estudiosos designam de modo essencialmente negativo: "antipolítica". Mesmo que O conceito seja ainda nebuloso, seria necessário um Bobbio que o tomasse em exame e o redefinisse, o termo designa a visão e a estratégia de partidos e movimentos que visam a agregar consenso em torno de fórmulas demagógicas neopopulistas.
Na Europa, muitos atores políticos de direita e de extrema direita, expressões do "chouvinismo do bem-estar" produzido pela globalização, vêm obtendo sucessos notáveis com métodos antipolíticos.
Na América Latina são de fato alguns sujeitos, (supostos e atribuídos) de Direita, que se voltam às vítimas da globalização, assumindo os esquemas da assim denominada antipolítica.
Eu estaria tentado, para designar a ambos, os de direita e de extrema direita, a adotar novamente o termo mais explícito "antidemocracia"; também para sugerir que, não obstante o consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, aliás, de um arremedo de democracia: de uma democracia aparente que reveste e traveste formas incipientes de autocracia à custa de eletiva.
E recorrendo ao modelo de Bobbio causar arrepios em historiadores profissionais, que mal suportam o uso extensivo do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária italiana, e decididamente hostilizam a acepção genérica do mesmo termo no qual estão compreendidos vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários eu proporia caracterizar o variado fenômeno ao qual estamos assistindo em muitas partes do mundo, em diversos graus e formas, como fascismo pós-moderno: que, da mistura entre repressão violenta e engano demagógico própria do fascismo histórico, privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e por vezes dá expressão à figuras grotescas do poder carismático; que visa ao fortalecimento do executivo enfraquecendo vínculos e controles; que age em formas tendencialmente (mas por vezes claramente) eversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais.
Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e Forza Itália, o partido pessoal inventado por Berlusconi, apontando em ambos a natureza essencialmente "eversiva".
Em um dos ensaios incluídos no presente volume, escrito em 1983, depois de ter recordado o juízo irônico de Marx, segundo o qual certos fenômenos históricos se apresentam duas vezes, primeiro como tragédia, depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo fora a um só tempo tragédia e farsa: "o tribunal especial e o salto através do círculo de fogo...". Assim concluía, à época, que o fascismo não poderia se repetir.
Hoje, um observador desencantado da realidade não teria muitas hesitações em julgar tal conclusão no mínimo apressada. E se fosse particularmente pessimista, proporia a hipótese de que talvez se tenha aberto um novo ciclo de tragédias e farsas, talvez com os termos invertidos: em suma, levantaria a dúvida de que muitos episódios políticos farsescos, de fascismo pós-moderno, dos quais somos, em variada medida (e não apenas na Itália), espectadores, que não se divertem, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século XIX, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra ao enaltecimento do Primato morale e civile degli italiani [Primado moral e civil dos italianos]. Nas mais recentes estações políticas, tive com freqüência a tentação de inverter a retórica giobertiana, denunciando o primado imoral e incivil dos italianos, que no início do século XX ofereceram ao mundo o modelo do fascismo, e, não satisfeitos, no fim do milênio, quase como prefiguração grotesca do apocalipse, levaram à ribalta uma variante inédita da antidemocracia, baseada na idiotização midiática dos cidadãos.
Bobbio costumava repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: por vezes parece o laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E porque muitos produtos "made in Italy" demonstraram saber alcançar estrondoso sucesso, recomendo a todos continuarem a observar atentamente o que sai do nosso laboratório. Para o bem, e para o mal. Produzimos também coisas boas. Aqui, como conclusão, só posso recomendar também como meio para nos dotarmos de anticorpos contra os perigos de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, de um fascismo pós-moderno a leitura deste volume: um produto melhor cultura italiana. Digo-o sem fingimentos, com o orgulho do aluno.
1. Contextualização
(...)
O Brasil fez figura – e má figura – nesse quadro de degeneração democrática com a eleição, em outubro de 2018, de um ex-militar historicamente acusado de planejar atentados terroristas, chefe de um clã familiar suspeito de envolvimento e de ativa participação junto às milícias do Rio de Janeiro e com um currículo de 30 anos de vida política preenchida exclusivamente por discursos de natureza fascista. A vitória de Jair Bolsonaro, embalada, ao menos na superfície, por uma combinação de lavajatismo (em referência à Operação Lava Jato), antipetismo e ressaca de crise econômica
[10], trouxe à cena no palco da política brasileira a associação (não inédita, frise-se) entre extrema-direita política, reacionários morais e comportamentais vários e liberais ortodoxos em matéria econômica, acrescidos, desta feita, de turbas e milícias digitais – ingrediente inédito na tradição do reacionarismo autoritário brasileiro.
Inspirado, de um lado, pelo chamado olavismo e, de outro, pelo “guedismo” (uma visão privatista reducionista de liberalismo econômico), com o suposto institucionalismo militar ocupando uma posição intermediária, o governo Bolsonaro mostrara-se em flagrante desacordo com os princípios mais elementares da democracia liberal representativa constitucional já em seu primeiro ano de mandato. Em 2019, desfilaram os escândalos políticos de variados portes, todos com a inequívoca e inamovível marca do autoritarismo iliberal que define o bolsonarismo, tendo a afronta aos demais poderes da República, a intimidação da imprensa e das vozes críticas da sociedade civil e a premeditada degradação institucional servido, combinadamente, como norteadores para uma suposta “revolução conservadora” de que Jair Bolsonaro seria o líder. Tal cenário radicalizou-se de modo singular já nos primeiros meses de 2020, quando, ainda em janeiro, o Secretário Nacional de Cultura protagonizou um vídeo oficial de perfil abertamente nazista, seguido pelo agravamento da imobilidade do governo em fevereiro, e chegando ao ápice com a eclosão da crise sanitária deflagrada pelo chamado novo coronavírus em março.
Foi a partir da reação errática do governo federal no combate à pandemia de COVID-19 no País que suas características autoritárias, antidemocráticas e iliberais – núcleo da identidade política do governo – tornaram-se ainda mais explícitas, e para um número maior de pessoas, o que é fator decisivo. Descaso grosseiro com os mais pobres e mais afetados pela crise; combate à saúde e à ciência no lugar de combate à pandemia (haja vista, por exemplo, a demissão de dois ministros da saúde neste ínterim); teorias conspiratórias e fake news transformadas em política de Estado; participação ativa na concepção e na prática de diversas atividades golpistas e potencialmente criminosas; envolvimento suspeito, direto e indireto, com forças paramilitares de apoio ao governo; estímulo à fanatização mortífera de parcelas da população; organização, no centro mesmo do governo, de estruturas de ataque à imprensa e aos demais poderes, culminando na agressão física (já tornada comum) a jornalistas; aparelhamento institucional, seja em cargos próprios do Executivo, preenchidos por olavistas que compõem a assim chamada “ala ideológica” do governo, seja em órgãos de controle, como a Polícia Federal (não perdendo de vista o fato de que, ainda neste ano, Jair Bolsonaro indicará um novo ministro ao Supremo Tribunal Federal, já tendo anunciado que nomeará alguém “terrivelmente evangélico”) – eis, em síntese, o cenário em que se deu a escalada de mortes que levou o Brasil a ser um dos países em que a pandemia de COVID-19 causa uma devastação de vidas humanas das maiores proporções.
Foi no interior de tal crise, importa acrescentar, que se deu a queda do então Ministro da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro, símbolo do combate à corrupção para expressiva parcela do eleitorado (precisamente aquela a que se pode chamar de lavajatista e antipetista) por sua atuação como juiz da Operação Lava Jato. Demissionário, o Ministro revelou um conjunto notável de crimes supostamente cometidos pelo Presidente da República, que, a serem comprovados, atestam inequivocamente o aparelhamento institucional e, em última análise, a implantação de um regime familiar-miliciano-militar à revelia do Estado de Direito, motivo pelo qual, agora mesmo, é periclitante a situação da República e é explícita a natureza fascista do atual governo.
Nesse contexto, a pesquisa acadêmica sobre a crise da democracia liberal, sobre as novas ondas populistas, ou sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil, ao mesmo tempo em que ganha em relevância teórica, adquire também contornos de uma intervenção no debate público e na cena política cheia de uma urgência característica do melhor ensaísmo esclarecido – uma tradição nacional – e do alto jornalismo.
É bem verdade que a urgência e a relevância do assunto são quase que autoevidentes: basta ligar a televisão ou ler as primeiras manchetes de qualquer jornal. Por outro lado, e sobretudo em debates de natureza imediata, convém notar a justificação acadêmica para um projeto desta espécie. Muito embora já exista uma ampla discussão sobre uma suposta crise da democracia (parte manifesta nas obras mencionadas acima, de impacto relevante), é bastante comum – ainda mais quando tratamos de conceitos posicionais, interpretativos por excelência – que não mais se saiba exatamente sobre o que se está falando. Qual é a concepção de democracia que se discute (ou se postula como ideal)? Quais são exatamente as linhas demarcatórias possíveis que permitem a atribuição de um denominador comum aos diferentes governos democráticos e aos diferentes regimes iliberais? Quando falamos em esquerda ou direita, quando afirmamos ou negamos uma crise institucional, uma crise de representação, uma crise democrática, sobre o que estamos falando? O movimento a que chamamos bolsonarismo ou novo fascismo brasileiro, para ficar no exemplo diretamente relacionado à investigação, articula-se como “representante do povo”, prometendo uma “relação imediata” com esse mesmo “povo” reivindicado (remetendo, assim, à ideia de “democracia delegativa” como articulada por O’Donnell
[11] e ao conceito de populismo como definido por Urbinati
[12]). O governo abertamente iliberal teve apoio de autointitulados liberais; a “revolução” que se pretende “conservadora” seria anátema à tradição do conservadorismo britânico de Hooker a Oakeshott. Democracia, liberalismo, conservadorismo, esquerda, direita, centro. A pesquisa acadêmica de excelência, em respeito às exigências do rigor que marca o saber científico, é o que permite que a discussão e o debate sejam construídos com graus mínimos de responsabilidade conceitual.
O ponto é que, como se nota, estamos aqui tratando de um debate de natureza imediata. A crise da democracia, no Brasil de 2020, é constituída por pequenas grandes crises quase que diárias. O certo grau de distanciamento que marca a pesquisa acadêmica de qualidade não pode, ao mesmo tempo, caracterizar imobilismo ou complacência, sob pena de permanecer confinada aos gabinetes de uma suposta intelligentsia (que acabaria, paradoxalmente, por personificar exatamente um tipo de “elite descolada da realidade do povo”, como diria um típico slogan de movimentos populistas ao redor do globo). Assim, à combinação desse saber técnico, de avaliação aprofundada e interpretação matizada que caracteriza imperiosamente o bom trabalho acadêmico, deve somar-se, portanto, a crítica política ágil e informada, da cultura e da sociedade de nosso tempo, que é indissociável da boa prática jornalística e do melhor de nossa produção ensaística. A proposta, portanto, é acadêmica, mas não é apenas acadêmica; é de intervenção no debate público, mas não é apenas de intervenção no debate público. O que se pretende, aqui, é exatamente a construção de uma ponte entre o que há de melhor nessas duas esferas, permitindo uma articulação conjunta entre o saber acadêmico-científico e a atenção às circunstâncias de nosso presente em todas as suas peculiaridades, nuances e crises. Esse é o tipo de produção de conhecimento exigido pelo fenômeno social e político do bolsonarismo, cada vez mais articulado em termos de um novo fascismo brasileiro.
Considerando (1) que “democracia” é um termo posicional, contestável
[13] – sendo reivindicado por todo tipo de grupo ou partido político, inclusive os antidemocráticos – e (2) que temos o rigor acadêmico como premissa fundamental, a tomada de posição aqui indicada exige algumas explicações de natureza mais teorética. Quando afirmamos que o bolsonarismo é um movimento político que efetivamente coloca a democracia em risco, não pretendemos aqui iniciar um mero exercício retórico ou articular qualquer tipo de acusação vazia, desprovida tanto de responsabilidade intelectual quanto de significado.
Pela natureza própria do conceito, é bastante difícil definir a democracia de forma taxonômica, como se fosse um simples conceito criterial. Interpretativo por excelência, o conceito convida à elaboração de diversas concepções distintas. De nossa parte, adotamos uma concepção na linha do que dizia Thomas Mann, em The Coming Victory of Democracy: “É insuficiente definir o princípio democrático [simplesmente] como o princípio majoritário, traduzindo a democracia literalmente, muito literalmente, como o governo do povo”; afinal, como alertava o próprio Mann, essa é uma expressão “de duplo significado”. Sem princípios mínimos que informem sua própria raison d’être, o governo da maioria pode estar “mais próximo da definição de fascismo”.
[14] Essa ideia, tão bem ilustrada por Mann, é precisamente a consagração dos alertas já delineados por autores como James Madison, nos Federalist Papers, e Alexis de Tocqueville, no clássico De la démocratie em Amérique – alertas contra o que já se convencionou chamar na própria linguagem ordinária de tirania da maioria.
O ponto fundamental, aqui, é que a concepção de democracia que adotamos é mais do que um conjunto formal de critérios a serem preenchidos de modo a respeitar a regra majoritária, e eis tudo. Uma democracia liberal autêntica é a que consagra, respeita e materializa precisamente as conquistas do liberalismo democrático enquanto tal: noções como direitos humanos e sociais, pluralismo, tolerância, separação de poderes, ordem legal, constitucionalismo em sentido amplo, império da lei. Adotamos uma concepção de democracia representativa, que só é possível quando prevalece a ideia de que há órgãos intermediários entre governantes e governados. Partidos políticos, imprensa livre, Judiciário forte e independente; como não falar, então, em crise da democracia no Brasil, quando o Presidente da República diz coisas como “eu sou a Constituição”
[15] e afirma que o “poder popular não precisa mais de intermediação”,
[16] incentivando e até praticando a perseguição à imprensa,
[17] cada vez mais atacada – inclusive de forma direta – por seus apoiadores?
[18] Quando um de seus filhos, que já havia sugerido o fechamento do STF,
[19] ameaça uma “ruptura institucional” após decisão da Suprema Corte?
[20] Quando são mais do que relevantes os indícios de interferência política em órgãos de controle?
[21]
Reafirmar a democracia em crise no Brasil, portanto, não é um mero jogo de palavras. É precisamente porque as palavras importam que a crise pode ser constatada, uma vez que são explícitos os ataques a todos os princípios que dão forma a uma concepção de democracia liberal que, parafraseando José Guilherme Merquior, encarece a exigência epistemológica para a caracterização de um conceito.
O mesmo vale para nossa afirmação de que lidamos com um novo fascismo. A despeito do reconhecimento de se tratar de termo com frequente emprego retórico, servindo de acusação dirigida contra adversários políticos, e, mais ainda, a despeito da evidente dificuldade para precisar conceitualmente o termo fascismo, que padece, em certo sentido, das mesmas peculiaridades acima descritas em termos da contestabilidade do predicado “fascista”, é fato que existe abundante produção acadêmica e intelectual oriundas da historiografia, da sociologia, da ciência política, da filosofia política, da economia e da psicologia que nos permitem usar tal vocabulário com suficiente rigor acadêmico na identificação do bolsonarismo como fenômeno fascista.
Basta indicar dois clássicos da bibliografia relativa ao tema para que possamos analisar o bolsonarismo com essas lentes. Considere-se, por exemplo, as chamadas “paixões mobilizadoras” do fascismo, tal como descritas e elencadas por Robert Paxton:
[22] “o sentimento de um crise catastrófica, além do alcance das soluções tradicionais”; “a primazia de um grupo”, assim como a crença de que tal grupo é “uma vítima”; bem como “o pavor da decadência do grupo sob os efeitos corrosivos” da modernidade, do individualismo moderno, do conflito de classes ou de “ameaça estrangeira”. Uma a uma, tais paixões mobilizadoras têm comparecido com alarde no universo político do bolsonarismo, às quais pode ser acrescido o agravante encontrado na definição de Michael Mann,
[23] que muito bem identificou a tendência para “construção de um Estado-nação transcendente e expurgado por meio do paramilitarismo” como tendo papel central na definição do fascismo – este mesmo fascismo que hoje caracteriza o bolsonarismo.
[24]
2. Descrição: natureza, especificidades e propósito
O Projeto Bolsonarismo: o Novo Fascismo Brasileiro (BNFB) é uma iniciativa do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, fruto da compreensão do atual momento político e social do País tal como descrito acima. Expressa, em seu formato, uma das convicções basilares do LABÔ, a saber, a necessidade de construir uma ponte entre a universidade e o grande público não especializado, unindo produção de conhecimento rigoroso em alto nível com ensaísmo de qualidade, acessível e de impacto, valendo-se, para tanto, de diversas plataformas de interlocução com a sociedade e de divulgação acadêmica e intelectual. Ainda, como sói ser o caso das atividades do LABÔ, o projeto aprofunda a vocação interdisciplinar e colaborativa das pesquisas do Laboratório, bem como seu compromisso de contribuir com produção de conhecimento para a compreensão de temas contemporâneos de notória relevância pública.
O Projeto BNFB nasce de uma dupla aposta interpretativa fundamental, que deve ser devidamente expandida e avaliada criticamente. Em primeiro lugar, está a identificação de um cenário de crise da democracia instaurado no Brasil (não de agora) e que tem conexões e similaridades fortes com o mesmo fenômeno vivido globalmente, ainda que com características próprias; assim, o BNFB recusa o argumento de uma permanente “normalidade” da vida democrática brasileira no período recente e nos dias em que corre o bolsonarismo oficialista, e frisa que os testes de “estresse” das instituições políticas do País são, em verdade, processos de implosão continuada dessas nunca devidamente bem formadas instituições, inserindo-se globalmente em uma perspectiva de abalo da democracia liberal constitucional representativa e dos seus mecanismos de funcionamento. Segundo, o reconhecimento do movimento político e social chamado de bolsonarismo como uma modalidade de fascismo político que dialoga tanto com a tradição do autoritarismo de direita no Brasil (como o integralismo e a ditadura militar, para dar dois exemplos) quanto com variadas experiências internacionais de perfil fascistizante – de Salvini a Orbán, por exemplo.
Em ambos os casos, impõe-se, é claro, a tarefa de precisar conceitualmente a jogada interpretativa aqui exposta, não apenas contrastando hipóteses rivais – quer acerca da democracia, em geral, quer acerca da natureza específica do bolsonarismo – como robustecendo as definições com que se opera para garantir tanto o primeiro quanto o segundo aspecto de tal linha de interpretação. É, contudo, partindo do pressuposto razoável no acerto do diagnóstico acima que o Projeto BNFB se propõe a investigar esse e todos os temas correlatos (detalhados a seguir, na seção 3). O resultado de tal investigação é, assim como sua própria natureza indica, distinto da produção acadêmica regular, pois não apenas (i) elege como matéria para exame um fenômeno multifacetado a se desdobrar correntemente, como (ii) se propõe a oferecer resultados também sob a forma de intervenções públicas no debate esclarecido do Brasil contemporâneo. Assim, algumas especificidades desta investigação precisam ser explicitadas:
o presente trabalho deverá expandir o procedimento de interdisciplinaridade e de método colaborativo, prática usual do LABÔ, e ativamente agregar aos esforços da investigação do BNFB pesquisadores das mais diversas áreas (ciência política, filosofia, sociologia, direito, economia, ciência de dados, gestão pública, antropologia, psicologia e psicanálise, filosofia da religião, etc.) que sejam capazes de contribuir para a melhor compreensão do fenômeno ora estudado; deve-se privilegiar, nesse sentido, a inclusão de pesquisadores de outras instituições universitárias com reconhecido trabalho em suas respectivas áreas de atuação, abrindo espaço para as mais variadas perspectivas teóricas, sempre com vistas a tornar o presente estudo plural, profundo e ágil; destaque-se, desde a origem deste projeto, a referência modelar do Observatório da Extrema-Direita, coordenado pelos professores Guilherme Casarões (FGV-SP) e David Magalhães (PUC-SP/FAAP) e Odilon Caldeira (UFJF), ainda em processo de institucionalização;
tal colaboração deve suceder de maneira voluntária, participativa e produtiva, tendo por base (i) a troca de informação especializada, de acordo com a legislação vigente, das áreas dos pesquisadores envolvidos, seja por meio de materiais produzidos previamente sobre tópicos atinentes ao tema da pesquisa, seja por meio de conferências, aulas e reuniões de trabalho (presenciais ou remotas); (ii) a produção de material escrito ou em mídias diversas (podcasts, vídeos, aulas e palestras) relativo aos temas que compõem este estudo;
o trabalho conjunto e cooperativo não gera nenhum tipo de vínculo entre os participantes e colaboradores e as respectivas instituições de atuação regular de cada pesquisador, aí incluso o próprio LABÔ;
a dimensão contemporânea do trabalho imprime à pesquisa um ritmo de avaliação conjuntural permanente, e agilidade e presteza na produção e veiculação de conteúdos a ela concernentes.
Em vista de sua justificativa, já devidamente contextualizada na seção 1, e de sua natureza essencial e especificidades acima relatadas, o presente trabalho busca atingir os seguintes objetivos concretos de curto e médio prazo:
coletar, organizar, analisar e divulgar dados relativos aos temas gerais da pesquisa, bem como aos diversos tópicos detalhados que compõem o projeto;
escrever e publicar artigos de natureza acadêmica sobre os tópicos listados abaixo (idealmente, ao menos um para cada tópico);
escrever e publicar artigos e ensaios de intervenção na imprensa escrita do País com vistas a publicizar os dados, as análises e as reflexões produzidas no interior desta pesquisa (idealmente, ao menos um para cada tópico);
Organizar e realizar, ainda em 2020, um seminário para apresentação de trabalhos com a temática da pesquisa;
Organizar e publicar um livro que reúna a produção final da pesquisa.
3. Temas a serem desenvolvidos
Tendo em vista a já mencionada natureza interdisciplinar e colaborativa do projeto, dividimos os grandes eixos temáticos que compõem a investigação do BNFB nos seguintes tópicos:
A – Fundamentação teórica geral e experiência global
A crise da democracia liberal e de suas instituições;
Extrema-direita, populismo e movimentos políticos iliberais;
Fascismo, integralismo, autoritarismo e bolsonarismo;
Democracia Digital Direta, redes sociais e fake news;
B – Símbolo, religião e fanatismo
Apropriação simbólica: Israel, USA, “Ocidente” e outros mitos da narrativa do BNFB;
O novo fanatismo de base religiosa: neopentecostalismo e tradicionalismo católico a serviço do BNFB;
O novo fanatismo de base política: “mito”, “guru” e realidade no BNFB;
C – Doutrina do BNFB
Olavismo, doutrina do BNFB;
Militares e o BNFB;
Nacionalismo “orgânico” e “transcendente” na retórica e na estratégia do BNFB;
“Revolução conservadora” e “mobilização permanente” no BNFB;
Afirmação da violência: culto da tortura, culto da agressão, culto do ódio e culto da morte no BNFB;
Obscurantismo e retórica anticiência e anti-intelectual do BNFB;
As teorias da conspiração do BNFB;
D – Milícias, milícias digitais e financiamento
Milícias, crime organizado e BNFB;
Milícias digitais e BNFB;
Estruturas de financiamento do BNFB: Luciano Hang, Winston Ling, Brasil 200 e demais redes;
E – Apropriação do Estado, ataque às instituições e corrosão democrática
Destruição e degradação institucional: princípio e tática do BNFB (análise geral);
Ruptura com os Poderes e desafio à democracia: do populismo ao fascismo com o BNFB;
Casos específicos a serem investigados: (a) aparelhamento, inoperância e aviltamento do MEC e do MCT na gestão do BNFB; (b) o ocaso do Ministério da Cultura sob as ordens do BNFB; (c) Meio-Ambiente e a ordem do BNFB para a devastação; (d) o fim da política de direitos humanos; (e) a diplomacia brasileira sob regime do BNFB;
Ambição de controle de força policial/militar e de criação de força paramilitar: das franjas lunáticas ao apoio real no centro de poder do BNFB;
F – Apoios, reais e digitais
A adesão dos institutos e dos movimentos liberais brasileiros ao BNFB;
A ilusão dos “bots” como “povo” na retórica do BNFB;
O “cidadão de bem” e o BNFB;
O servilismo voluntário: jornalistas, pundits e intelectuais do BNFB;
A síndrome de Chauí: conivência, adesão e silêncio de intelectuais em face do BNFB;
G – A Mente Reacionária
A retórica de ódio a minorias, a mulheres e a pobres no BNFB;
A obsessão pela homossexualidade por parte do BNFB;
Tradicionalismo e kitsch nas artes; estética clássica e medieval em linguagem digital: vaporwave, kitsch e reacionarismo de gosto: as marcas culturais do BNFB.
H – Guerras culturais e guerra cultural bolsonarista
I – Psicopatologia do bolsonarismo e do olavismo