INÍCIO

25 janeiro 2023

GENOCÍDIO YANOMAMI

HOLOCAUSTO YANOMAMI É PROJETO MILITAR

Carla Jimenez
Quarta-feira, 25 de janeiro de 2023


Imagens dos Yanomami em pele e osso remetem ao extermínio dos povos originários na ditadura e aos campos de concentração da Alemanha.

Qualquer assunto a ser tratado por esta coluna tornou-se secundário diante das fotografias aterrorizantes que o mundo viu de bebês, crianças e idosos Yanomami em pele e osso, divulgadas na semana passada. Não temos como apagar da retina as imagens de seres humanos desnutridos, cadavéricos, desmoralizados por uma política de tortura, que só havíamos visto em cenas de indigência extrema em países paupérrimos da África, em filmes sobre o holocausto judeu, ou durante seca no Nordeste no século 20.

Desnutrição severa do povo Yanomami (1).

O planeta inteiro viu nitidamente como o Brasil comete o genocídio de sua comunidade indígena. O Instituto Brasil Israel comparou o genocídio dos Yanomami com os judeus presos na Alemanha nazista. “Sim, estamos fazendo comparações com campos de concentração. Devemos usar o Holocausto como um exemplo que jamais deve ser seguido. Infelizmente, parece que parte do mundo não aprendeu o verdadeiro significado de 'nunca mais'”, escreveu o IBI.

Distribuição de alimentos para os Yanomami, pelo Governo Federal (2)

Nossa bolha bem-informada sabia o que estava acontecendo há muito tempo. Os leitores do Intercept leram em agosto que o governo Bolsonaro havia ignorado 21 pedidos de socorro do povo Yanomami. Jornais como Amazônia Real, O Eco, Repórter Brasil, De Olho nos Ruralistas, Agência Pública e, mais recentemente, Sumaúma, vinham denunciando exaustivamente esse quadro chocante, que inclui os estupros praticados por garimpeiros. Mas as palavras já não são suficientes para alcançar a atenção das pessoas na assustadora era da informação. Nos tempos de multiverso, era preciso enxergar a realidade a cores, com todas as suas texturas e rostos cadavéricos, para que muita gente finalmente compreendesse o que é a tortura e o cinismo do estado brasileiro.

Especialmente, quando há um mecanismo milionário de distribuição de mentiras em redes sociais, amplificado por parlamentares de má-fé, para apagar a luta dos indígenas e favorecer ruralistas em troca de influência e financiamento de campanhas eleitorais. Vários desses políticos estarão assumindo seus mandatos no Congresso na semana que vem, e é inadmissível ignorar suas digitais neste morticínio: nós sabemos onde vocês estavam no governo passado. Como o senador Hamilton Mourão poderá negar sua conivência, tendo ocupado a presidência do Conselho Nacional da Amazônia Legal por três anos? O órgão foi formado por 19 militares e ninguém da Funai ou do Ibama.

A ditadura militar foi pródiga em dizimar indígenas em nome do "progresso, o bolsonarismo foi só sua extensão. Há relatos de militares que enriqueceram no passado com o desenvolvimento econômico a qualquer custo, comprando terras na Amazônia a preço de banana. Há milhares de indígenas e quilombolas mortos silenciosamente pelos governos militares que não são contabilizados pela história oficial e, também por isso, o imaginário da "ditabranda" segue firme.

O povo Wajãpi, no Amapá, quase desapareceu em sua totalidade nos anos 1970, contaminado pelo sarampo, que chegou com madeireiros e garimpeiros. Eram bebês, idosos e crianças morrendo a esmo diariamente. Ouvi esse relato do cacique Kasiripinã Wajãpi em 2017, quando estive em sua aldeia. Emocionado, ele lembrava desse passado triste enquanto denunciava o plano do então governo Michel Temer de abrir a Reserva Nacional de Cobre e Associados à exploração de mineradores, atingindo diretamente as terras demarcadas de seu povo.

Os Wajãpi venceram aquela batalha. Mas o cacique não resistiu aos anos Bolsonaro e morreu de covid-19 em janeiro do ano passado.

Somos completamente ignorantes sobre nossos ancestrais. Aprendi nos meus tempos de escola (particular) a cantar mais hinos militares, como a Canção do Expedicionário, do que cantigas oriundas da cultura indígena. Foi essa formação que forjou o imaginário brasileiro que legitima os militares como heróis e apaga o sofrimento imposto aos indígenas.

Gostamos de exibir e destacar a nossa ascendência italiana, portuguesa, espanhola, e escondemos nossas raízes indígenas, ciganas, negras. Qual a diferença entre os brancos que escondem esses antepassados e os negros, como o jornalista Sergio Camargo, o ex-presidente da Fundação Palmares que não reconhecia a história de seus ancestrais?

A memória do morticínio indígena está impregnada não só no Brasil, como nos demais países latino-americanos. Foi a forma violenta como a exploração europeia nos atravessou. Não é uma exclusividade brasileira. A Argentina, o Chile, o Peru e a Bolívia também têm suas divisões de classe, levando os descendentes de colonizadores europeus a se julgarem superiores aos povos originários. Arrisco a dizer que no Brasil é pior, porque a cultura de morte aqui é muito mais aceita do que nos países vizinhos, e o conhecimento indígena está muito mais presente nas escolas e na cultura de países de língua hispânica.

O governo do PT está fazendo sua parte, mas não é totalmente inocente, com seus Programas de Aceleração do Crescimento e planos de hidrelétricas na Amazônia – como a Usina de Belo Monte, que condenou populações à violência urbana e à contaminação dos rios que antes eram sua fonte de alimento. Foram as contrapartidas entregues às bancadas ruralistas e os falsos cristãos evangélicos. Nada, obviamente, comparável à crueldade da era bolsonarista e sua legião de parasitas. Damares Alves e sua hipócrita cruzada mitômana que o diga.

Ainda estamos expurgando esses horrores. Não cabe aqui a politização rasa do assunto. Temos uma grave crise de identidade a encarar, e não podemos fugir. Somos nós os cidadãos de segunda classe, e não eles.

Carla Jimenez
Colunista do The Intercept Brasil




Crianças Yanomami (3)



Fontes








24 janeiro 2023

A HERMENÊUTICA

A hermenêutica do curupira! 
E, a propósito, viva a OAB da Bahia!

OPINIÃO 

Lenio Luís Strek
23 de janeiro de 2023


No longínquo ano de 1893 um juiz foi condenado, pelo Superior Tribunal da Província do RS, pelo "crime de hermenêutica". Na verdade, ele havia cumprido a Constituição e declarado, em controle difuso, a inconstitucionalidade de um dispositivo ordinário. Seu advogado, Rui Barbosa, criou a tese da vedação do crime de hermenêutica. E o STF "absolveu" o magistrado.

Desde então, há que se fazer uma distinção entre crime de 

hermenêutica e o uso da hermenêutica para fazer incitamentos de cometimento de crime(s).

Trago dois exemplos contemporâneos que se enquadram na segunda hipótese, a da hermenêutica usada para incitamento de cometimento de crimes, o que chamo de "hermenêutica do curupira". 

O primeiro exemplo é o “sentido” dado ao artigo 142 da Constituição. Graças a essa leitura de pés virados (jus curupira), milhares de radialistas (por que a maioria dos radialistas são reacionários?), operadores jurídicos (tem dez advogados presos por incitação ao golpe e participação nos atos criminosos do dia 8 J), militares, pessoas comuns, uma choldra de pastores que nunca passou perto de um curso de teologia reconhecido, e ex-jogadores de bingo (com alto grau de sarcasmos, digo: sou a favor da volta dos bingos e pela taxação dos smartfones) passaram a ter a convicção de que a Constituição continha uma espécie de dispositivo auto implosivo, um “reset” institucional. Essa ideia lhes foi “vendida”. Como uma jus fakenews.

Quem colocou esse jus jabuti na árvore? Gentes do direito, jornalistas, “influencers” e militares fizeram uma leitura do tipo “todo o poder emana das forças armadas”. Tese tão absurda que o STF a chamou de terraplanismo jurídico (voto do ministro Barroso). 

Talvez entre no Guiness essa leitura Humpty Dumpty-Curupira do artigo 142 da CF, pela qual as Forças Armadas seriam o “poder moderador”. 

Há que ter uma responsabilidade ética na interpretação de textos. 
O que quero dizer é que, por vezes, fazer um certo tipo de hermenêutica pode ser um incitamento ao crime
Mesmo que o intérprete não queira. As pessoas (leia-se militares, ex-jogadores de bingo, advogados, médicos, dentistas, caminhoneiros, pastores, presbíteros, missionários, néscios em geral e políticos reacionários) podem acreditar que, de fato, as Forças Armadas são o poder moderador. 

Por isso, juristas deveriam alertar, na bula, sim, Platão falava que a linguagem é como um Pharmacon, que a sua interpretação pode causar efeitos colaterais como a invasão dos prédios dos três Poderes, como ocorreu no dia 8. Algo como a tarja das carteiras de cigarro:

“O uso desta interpretação pode levar o usuário à prisão”. 

Não se diga agora que os que difundiram essa interpretação enviesada do artigo 142 podem vir a “tirar o corpo fora”.

Há limites na interpretação de qualquer dispositivo. Se uma lei proíbe cães na plataforma, não se pode sair por aí dizendo que a lei permite que ursos passeiem lépidos pela plataforma. E crocodilos. E gorilas. E, da mesma forma, também não se pode proibir o cão-guia do cego.

Até o general Augusto Heleno se meteu de pato a ganso no ramo da hermenêutica. Só que comprou a tese curupira. Dezenas de vezes falou, e uso aqui, na especificidade, o que disse em agosto de 2021 em uma rádio e TV, que ”o artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Ele existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado” (sic). 
À época denunciei isso. E avisei que os efeitos colaterais seriam terríveis. Mas poucos quiseram ler a bula.

Assim agindo, somando com os incentivos que o general dava no sentido de intervenção militar, há que se perguntar: por que o MP não interpelou o general?

O segundo exemplo de hermenêutica dos pés virados foi a de que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garantia a livre manifestação golpista, desde que pacífica. Vendeu-se no Brasil a tese de que ”há um direito fundamental a defender golpe militar”. 
Bom, um juiz de MG chegou até a conceder mandado de segurança assegurando a um gaiato esse “direito fundamental”. 

Nessa linha, até os comandantes militares entraram nessa patacoada anti-hermenêutica. Leiamos a lei: “não constitui crime [...] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais

Ora, eis a pergunta de um milhão de “alamdossantos”: pedir, exigir e incitar golpe militar (em acampamentos e programas de rádio e TV) tem propósitos sociais

Percebem o fundo do poço em que nos metemos com interpretações curupira? 

Uma coisa é certa: sustentar que o artigo 142 era um dispositivo de “resetamento” (sim, inventaram isso: o artigo 142 seria um dispositivo auto implosivo do sistema!!!) da democracia e apregoar que era livre expressão pedir intervenção militar são dois exemplos do que uma má hermenêutica pode provocar. 

Sim, fazem-se coisas com palavras. Porque muita gente acreditou. Basta ver o que ocorreu dia 8 de janeiro. 

É o que chamo de ”fator Navah”: dar existência a coisas que não existem! Uma mistura do velho testamento com John Austin (o linguista).

Quem colocou o Jabuti nos prédios dos três Poderes? Quem, quem?

Parte da culpa é de uma má hermenêutica. Por dolo ou culpa. 
A história há de mandar a conta. Virá sob a rubrica ”irresponsabilidade hermenêutica”. Na coluna ”hermenêutica sucupira”.

Post scriptum: para os jus haters!

Antes que apareçam os jus haters de sempre dizendo ”ah, e o Alexandre de Morais? Não vai falar nada, professor? E sobre a ditadura do STF?”, eu me adianto e digo: poupem-me dessas jus pilhérias e jus nesciedades. E das currupirices antiargumentativas. Não fosse o STF e o TSE e nem estariamos aqui debatendo o assunto. 
O golpe de Estado não ocorreu por pouco. Muito pouco. 

Então, vamos lá: fatos existem. E paremos de ficar nas bolhas das neocavernas. E alguns já podem (devem) voltar aos bingos. Legalização dos bingos já! E pela volta da boa ironia. E do bom e velho sarcasmo.

Mais um detalhe: 
Viva a OAB da Bahia, que está propondo que advogado que apoia intervenção militar deve ganhar automaticamente o certificado de “inidôneo”. Viva a Bahia.



Fonte 

23 janeiro 2023

HORTUS DELICIARUM

HORTUS DELICIARUM


Philosophia et septem artes liberales (Filosofia e as  Sete Artes Liberais), 
como ilustrado no Hortus deliciarum. (Herrad von Landsberg: Hortus deliciarum)
(1167-1185).

O Hortus deliciarum (Jardim das Delícias) foi um manuscrito medieval compilado por Herrad de Landsberg na Abadia de Hohenburg (Hohenburg Abbey) na Alsácia, mais conhecido hoje como Mont Sainte-Odile.

O Hortus deliciarum é uma das primeiras fontes de polifonia com origem num convento. O manuscrito continha pelo menos 20 textos de canções, todos originalmente anotados com música. 
Aqueles que podem ser reconhecidos agora são do repertório condutus, e são principalmente nota contra nota na textura. 

A notação era em neumas semiquadráticas com pares de pautas de quatro linhas. Duas canções sobreviveram intactas com sua notação músical: Primus parens hominum, uma canção monofônica, e uma obra em duas partes, Sol oritur occasus.


História e conteúdo da obra

Tratava-se de uma enciclopédia iluminada, iniciada em 1167 como ferramenta pedagógica para as jovens noviças do convento. É a primeira enciclopédia evidentemente escrita por uma mulher. Foi concluído em 1185 e foi um dos manuscritos iluminados mais célebres do período. A maior parte da obra é escrita em latim, com glosas em alemão.

A maior parte do manuscrito não era original, mas um compêndio do conhecimento do século XII. O manuscrito continha poemas, ilustrações e música, extraídos de textos de escritores clássicos e árabes. Entremeados com escritos de outras fontes, havia poemas de Herrad, dirigidos às freiras, quase todos musicados. 
A parte mais famosa do manuscrito são suas 336 ilustrações, que simbolizam vários temas, incluindo teológicos, filosóficos e literários.

O inferno conforme ilustrado no Hortus Deliciarum.

Em 1870, o manuscrito foi consumido num incêndio e destruído quando a biblioteca que o abrigava em Estrasburgo foi bombardeada durante o cerco alemão de Estrasburgo. É possível reconstruir partes do manuscrito porque partes dele foram copiadas em várias fontes. 
Christian Maurice Engelhardt havia copiado as miniaturas em 1818, e o texto destas iluminuras foi copiado e publicado por Straub e Keller entre 1879 e 1899.



II

Nuper rosarum flores


Ex dono pontificis
Hieme licet horrida
Tibi virgo caelica
Pie et sancte deditum 
Grandis templum machinae 
Condecorarunt perpetim


Cantus and Contratenor
    Nuper rosarum flores
Ex dono pontificis
Hieme licet horrida
Tibi virgo caelica
Pie et sancte deditum Grandis templum machinae Condecorarunt perpetim
Hodie vicarius


Iesu Christe et Petrus Successor, Eugenius, Hoc idem amplissimum Sacris templum manibus Sanctisque liquoribus Consecrare dignatus est
Igitur alma parens
Nati tui et filia
Virgo decus virginum Tuus te Florentiae Devotus orat populus
Ut qui mente et corpore Mundo quicquam exorarit
Oratione tua
Cruciatus et meritis
Tui secundum carnem Nati domini tui
Grata beneficia Veniamque reatum Accipere mereatur. Amen


  Despite cruel winter, recently roses came, a gift of the pope to a temple of magnificent design dedicated piously and blessedly to you, o heavenly Virgin. May they ornament it forever.


Hodie vicarius
Iesu Christi et Petri Successor, Eugenius, Hoc idem amplissimum Sacris templum manibus Sanctisque liquoribus Consecrare dignatus est.


Today the vicar of Jesus Christ and Peter’s successor, Eugenius, has though it well to consecrate this same most spacious temple with his hands and holy water.



Igitur alma parens
Nati tui et filia
Virgo decus virginum Tuus te Florentiae Devotus orat populus
Ut qui mente et corpore Mundo quicquam exorarit


Therefore, o gracious mother and daughter of your offspring, o virgin, ornament of virgins, your people of Florence pray to you devoutly that together with all mankind, with pure mind and body, their prayer may move you.


Igitur alma parens
Nati tui et filia
Virgo decus virginum Tuus te Florentiae Devotus orat populus
Ut qui mente et corpore Mundo quicquam exorarit



Oratione tua
Cruciatus et meritis
Tui secundum carnem Nati domini sui
Grata beneficia Veniamque reatum Accipere mereatur. 
Amen! 















ÉDIPO

GEOGRAFIA DE OEDIPOUS BASILEUS

Elżbieta Wesołowska 
(Professor of Latin and Ancient Literature)

Édipo (eg)

Escrever sobre Oedipus Rex de Sófocles (c. 429 aC) gera sempre apreensão. É provável que esse sentimento seja agravado pelo fato de que essa peça inesgotável e multifacetada ainda continua a animar inúmeros debates acadêmicos e críticos que estão se tornando cada vez mais perspicazes e focados. 

A profundidade e a atemporalidade dessa que é marca registrada da tragédia sofocliana inspiram os estudiosos a explorar a complexidade e a originalidade do mais trágico de todos os heróis trágicos sobre o famoso parricida que se casou e se deitou com sua própria mãe.[1]

A figura de Édipo se situa, na Grécia mítica, na família dos Labdácidas, família real de Tebas, sendo ele o centro de um dos grandes ciclos da mitologia, o chamado ciclo tebano. 
Édipo, no grego antigo, quer dizer o de “pés inchados”. Nosso herói faz parte de uma linhagem de personagens que têm os “pés feridos”, os “pés vulneráveis”, personagens que não “pisam” bem no real, que não lidam bem com as coisas concretas. Édipo é aquele que tem dificuldades para pisar na terra, sendo esta, como sabemos, um símbolo da função maternal, princípio passivo, feminino. (Vasques, s/d)

A remodelação do Édipo caído por um monge medieval, Bury St Edmund's, década de 1450 (em um manuscrito do poema de John Lydgate, The Fall of Princes (composto na década de 1430), British Library Harl. MS 1766 f.48r). 

A mitologia grega tem vários personagens com problemas semelhantes, nos pés ou nas pernas, Aquiles, Orion, Orestes, Hefesto e outros. O avô de Édipo chamava-se Lábdaco, conhecido como o Coxo. Lembremos que a letra grega “lambda” está na origem deste nome, a sugerir pelo seu desenho uma ideia de anomalia, de falta de firmeza, de pés tortos, cambaios, de desigualdade no caminhar. Laio, pai de Édipo, é conhecido como o torto, o esquerdo, o canhoto. Lábdaco, recordemos, como Penteu, teve seu corpo destroçado pelas mênades de Dioniso porque se opôs à divulgação do culto do filho de Sêmele em Tebas.(Vasques, s/d)

Os pés, em antigas tradições, sempre apareceram simbolicamente ligados à alma, ou melhor, ao destino que ela deveria suportar. Os pés, com o seu movimento ambivalente, alternativamente movimentados, impostos ao chão e dele nos retirando, são, ao mesmo tempo, um símbolo de poder, de partida e de chegada, de comando, como de sustentação e de humildade, pois afinal são eles que suportam tudo o que está acima deles, mantendo contacto com a mãe-terra, de onde o homem procurou sempre afastar-se orgulhosamente. Assim como a terra se opõe ao céu, os pés se opõem à cabeça. Desprezados, maltratados, descuidados, os pés nos dizem, todavia, que a cabeça nada é sem eles. Muitas vezes considerados como um símbolo fálico, indicam o ponto de partida, lugar por onde os movimentos se iniciam.(Vasques, s/d)

Nesta perspectiva, pés claudicantes, vulneráveis (Jacob, Thor, Hefesto, Talos, Aquiles etc. ) costumam significar um sinal da vitória divina sobre o ego humano, o pé do vencedor sobre a cabeça do vencido. É o que diz a sentença pronunciada no processo entre a mulher e a serpente na Bíblia: Ela te pisará a cabeça e tu armarás traições ao seu calcanhar. (Gênesis, III, 15). O pé magoado, lembre-se, pode ser um sinal de conhecimento, tal como a visão magoada, mas de um conhecimento ativo, já que adquirido na adversidade e submetido a provações. Nos mitos, a ferida no corpo humano tanto marca nele o ponto fraco como indica a presença da força divina. Não é por outra razão, por exemplo, que Aquiles, o de pés miticamente rápidos, perecerá precisamente através deles, que o faziam superar todos os outros homens. É o caso de Édipo, pés deformados, fraqueza de alma, fraqueza que ele procurou compensar externamente por uma afirmação através de sua superioridade orgulhosa e dominadora.(Vasques, s/d)

A autora (Lisbieta) tem como objetivo deste artigo examinar o papel da topografia literária a partir da perspectiva da geopoética, onde lugar e espaço guardam uma relação íntima no texto que os contém. As reflexões sobre a vida de Édipo serão baseadas na análise do mapa da Grécia de Sófocles. Foco será dado aos lugares que o herói visitou (embora às vezes sem querer) [2] e que por sua vez o influenciaram.

Mapa da “vida” de Édipo 


Itinerário da vida de Édipo 

Esta rota traça os lugares que marcam os eventos mais importantes e dramáticos da vida de Édipo. Ele nasceu em Tebas (1). Sobrecarregado com uma maldição, ele é deixado para morrer no Monte Cithaeron (2). Salvo por um servo bem-intencionado, ele é levado primeiro por um pastor e depois pelo rei de Corinto (3), Políbio. Em (3) ele é informado que ele é uma criança adotada. Ele então parte secretamente para Delfos (4), do outro lado do mar jônico. Na esperança de aprender sobre suas origens, ele consulta o Oráculo de Apolo, mas fica sem uma resposta direta (vv. 280-1).

Em vez disso, ele é informado (na forma de uma pressuposição refinada)[3] sobre dois crimes que está fadado a cometer: ele matará seu pai e se casará com sua mãe. 

É a combinação da pressuposição enigmática do oráculo, a tenra idade de Édipo e o sentimento de ansiedade sobre suas origens que leva o protagonista para longe do lugar onde ele teme encontrar seus pais. [4] 

Neste ponto, ele viaja a pé e encontra um grupo de viajantes na encruzilhada (5). Ofendido e agredido pelos estranhos, Édipo mata todos menos um.[5]

Édipo e a Esfinge, Gustave Moreau, 1864 
(Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA). 

Édipo confronta a Esfinge de Tebas (detalhe de um vaso ateniense atribuído ao “pintor de Aquiles”, c. 445 aC; agora no Altes Museum, Berlim, Alemanha).

Édipo e a Esfinge

Édipo então toma o caminho de onde vieram os viajantes e segue para Tebas. Observe que este evento marca a última vez que o jovem pode escolher seu caminho. Afinal, ele poderia muito bem ter tomado a estrada para Daulis (6), o que o ajudaria a ficar longe de Corinto, como pretendido. 

Em vez disso, Édipo escolhe seu caminho, determinado a manter sempre o direito. No caminho, ele se depara com a monstruosa Esfinge (7), que ele derrota usando a força de seu intelecto, e retorna a Tebas. Édipo então se deleita na glória como o matador do monstro que atormenta os habitantes locais há algum tempo. Em troca de sua conquista, ele recebe a mão da rainha viúva e o trono de Tebas.[6] 

Itinerário da vida de Édipo. 

Ele, portanto, acidentalmente se torna o governante da terra, que deveria ter herdado como o único filho legítimo do rei.

Itinerário esquemático da vida do herói.

Consideremos o percurso marcado pelos números 1 – 2 – 3 – 4 – 5 – 7, ou seja, desconsiderando Daulis (6). A curva fechada da rota é bastante inequívoca. Outros personagens da peça também seguem essa trajetória, tanto no presente quanto no passado ficcional. 

Os eventos envolvendo esses personagens são os seguintes: 

Eventos passados:

1) O servo leva a criança para o topo de uma colina (2) 
2) O pastor leva o bebê ao palácio em Corinto (3)
3) Rei Laio consulta o Oráculo de Delfos (4)[7] 

Eventos atuais: 

1) O enviado chega de Corinto (3) 
2) O servo chega dos arredores da cidade (1) 
3) O pastor chega de Cithaeron (2) 
4) Tirésias chega da cidade (1) 
5) Enviado para consultar o oráculo, Creonte retorna de Delfos (4) 
6) Depois da automutilação e da morte da mulher, Édipo quer rumar para Citéron (2), que escolhe como local da sua morte e onde desde o início estava destinado a morrer. 
7) No entanto, Creonte deseja consultar o Oráculo de Delfos novamente (4), antes de tomar qualquer decisão sobre o destino de Édipo.

Édipo confronta a Esfinge de Tebas (detalhe de vaso ateniense do “pintor de Aquiles” (Achilles Pointer), c. 445 aC; agora no Altes Museum, Berlim, Alemanha).

A morte da Esfinge.

Além disso, o mistério da vida de Édipo pode ser explicado pelo fato de que ele esperava evitar seu futuro sem conhecer seu passado. Sua morte simbólica como cego parece espelhar sua vida de seguir cegamente os caminhos do destino. 

Também vale a pena considerar dois advérbios de lugar e tempo no grego antigo: opisthen (denotando aquilo que ocorre no futuro e está situado “atrás de” algo) e prosthen (aquilo que ocorre no passado e está situado “na frente de” algo). Os gregos acreditavam que, como o passado já havia acontecido, podemos vê-lo “à nossa frente”, enquanto não podemos ver o futuro, por isso está “nas nossas costas”. 

It is also worth considering two adverbs of place and time in ancient Greek: opisthen (denoting that which takes place in the future and is situated “behind” something) and prosthen (that which takes place in the past and is situated “in front of” something). The Greeks believed that since the past had already happened, we can see it “in front of us”, while we can’t see the future, so it is “behind our back”.

In Oedipus’ life the reverse, however, is true: he doesn’t know his past, which is in front of him, but he knows the future, once revealed to him by the oracle.

Na vida de Édipo, porém, o inverso é verdadeiro: ele não conhece seu passado, que está à sua frente, mas conhece o futuro, uma vez revelado a ele pelo oráculo. Édipo vive na ilusão de sua vida futura sem ter acesso ao seu passado, no qual sua vida presente está enraizada. 

Incapaz de entender sua vida a partir dos fragmentos incoerentes de conhecimento sobre seu passado, ele está fadado ao fracasso. Na peça de Sófocles, Édipo se cega no final. Antes disso, ele zomba de Tirésias, um profeta cego, por sua cegueira física, sem perceber que é ele quem não sabe a verdade sobre si mesmo e seu passado.[8] 

Um experimento realizado no início dos anos 2000 e envolvendo participantes vendados que foram solicitados a andar em frente mostrou que os participantes tendiam a se desviar para o lado. Se os participantes tivessem continuado a andar o suficiente, a trajetória teria terminado em um padrão quase circular. Como Édipo reluta em falar sobre seus primeiros dias, dos quais está ansioso e incerto,[9] é impossível refazer sua rota com base nas falas dos personagens. 

Existem, no entanto, descrições dos pés desfigurados do protagonista (717-18 e 1032). Ele está tão acostumado com sua desfiguração que, ao contrário do leitor, não consegue ligar os pontos, por assim dizer, ao ouvir a história de uma criança com os pés feridos abandonada nas montanhas. Parece, portanto, que o percurso circular de Édipo, esboçado no mapa acima, pode estar ligado à sua deficiência real e à sua cegueira mental.

Sófocles tece outra camada de significado em uma tapeçaria já rica e complexa. Quando Édipo, como um homem de visão extraordinária, é algemado por sua incapacidade de se relacionar com seu passado, ele realmente pode ver menos do que o cego profeta Tirésias, que falhou em resolver o enigma da Esfinge. 

Assim, o padrão topográfico e histórico de sua trajetória de vida, seja lido na página ou visto no palco, representa o imaginário de seu destino. Devido à sua cegueira mental, Édipo se move em círculo, como os indivíduos vendados no experimento contemporâneo. 

Andarilho e estranho a todos, dado às fragilidades da condição humana,[10] acaba por destruir a vida de todos os que cruzam no seu caminho. De Corinto a Tebas, da encruzilhada de Delfos a Tebas, ele segue o padrão de um laço fechado ou laço, como aquele amarrado no pescoço de Jocasta que se suicidou ao saber da verdade sobre Édipo. Além de sua riqueza de significados e contextos, a tragédia atemporal do Édipo Rei de Sófocles revela a notável intuição de seu autor, que conseguiu animar o topos convencional da jornada da vida, mostrando suas complexas dimensões topográficas. Sófocles consegue reconstituir a trajetória de vida de Édipo tendo como pano de fundo a geografia grega. Ao fazer isso, ele constrói o imaginário do protagonista, indissociável de sua cegueira mental, em oposição à trágica cegueira autoinfligida que lhe será imposta como punição por seus crimes.




Sobre a autora
Elżbieta Wesołowska is a Professor of Latin and Ancient Literature at Adam Mickiewicz University in Poznań, Poland, where she was previously Director of the Institute of Classical Philology. She is especially interested in the works of Ovid and Seneca, but also in the modern reception of ancient literature, and in translating Latin poetry into Polish. Her previous articule for Antigone discussed the manifold names of Helen of Troy/Sparta.







Referências 





A.W.H. Adkins, “Aristotle and the Best Kind of Tragedy,” Classical Quarterly 16 (1966) 78–102.

C. Catenaccio, “Oedipus Tyrannus: the Riddle of the Feet,” Classical Outlook 89 (2012) 102–7.

J. Gregory, “The Encounter at the Crossroads in Sophocles’ Oedipus Tyrannus,” Journal of Hellenic Studies 115 (1995) 141–6.

M. Grelka, “On the Question of Knowledge and Blindness in the Oedipus Tyrannus,” Symbolae Philologorum Posnaniensium 23 (2013) 19–33.

B.M.W. Knox, Oedipus at Thebes: Sophocles’ Tragic Hero and His Time (Yale UP, New Haven, CT, 1966).

M.L. Rose, The Staff of Oedipus: Transforming Abilities in Ancient Greece (U. of Michigan Press, Ann Arbor, MI, 2003).

J.L. Souman, I. Frissen, M.N. Sreenivasa, & M.O. Ernst, “Walking Straight into Circles (Report),” Current Biology 19 (2009) 1538–42.



Notas entre colchetes 

[1] O aspecto universal desta famosa tragédia inspirou muitas adaptações literárias e cinematográficas notáveis ​​da peça, como o drama Life Is a Dream (1627-9) escrito por Pedro Calderón de la Barca, o romance Homo Faber (1956) escrito de Max Frisch, e o filme The Bourne Identity (2002), dirigido por Doug Liman. 

[2] Desnecessário dizer que, quando criança, Édipo não poderia ter se lembrado de sua jornada de Tebas a Corinto via Monte Cithaeron. 

[3] Isso denota uma situação em que o interlocutor fornece respostas que não respondem diretamente à pergunta do locutor, mas transmitem mensagens ocultas. 

[4] Deve-se notar que Apolo não diz nada sobre o passado de Édipo como um changeling. Depois de ouvir o augúrio, porém, Édipo não se preocupa mais com suas origens. Este problema parece insignificante em comparação com a natureza horrível da profecia. 

[5] Observe que Édipo mata seus opressores (em 810ss.) com um bastão, pois não tem espada à mão. 

[6] As palavras que Édipo profere ao se dirigir à esposa ecoam a consciência tácita do protagonista de que o trono vem com o dote; ver vv. 579–80. 

[7] Não sabemos o que incomoda o rei neste momento. É improvável que sua pergunta esteja relacionada à Esfinge, já que o monstro aparece na estrada após esse evento. Pode-se arriscar a suposição de que Laio deseja consultar o Oráculo para saber se ele está apto a ter filhos. 

[8] Vale ressaltar que, ao se cegar, Édipo se reduz em estatura a Tirésias, de quem discorda e menospreza. Por exemplo, ele acusa o profeta cego de não conseguir resolver o enigma da Esfinge e assim salvar Tebas do monstro (vv. 390 e segs.). Curiosamente, a posição de Tirésias é ambivalente e fortemente dependente da veracidade de suas profecias. 

[9] Édipo está profundamente preocupado com a possibilidade de ser um changeling e filho de escravos, o que pode ser deduzido de sua resposta dramática. 

[10] É provável que o título do romance de Max Frisch, Homo Faber, seja um lembrete irônico de que o homem não é o arquiteto de sua própria fortuna, seja no sentido geral ou específico do termo