UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
CURSO DE BACHARELADO EM ARTES VISUAIS
ANTONIO CARLOS PAIM
ONDE CORPO QUANDO MENSAGEM
UFRGS
Porto Alegre
2012
ANTONIO CARLOS PAIM
Trabalho de Conclusão apresentado à
Comissão de Graduação do Curso de Artes Visuais - Bacharelado em Artes Visuais
do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial e obrigatório para obtenção do título de Bacharel em Artes
Visuais .
................................................................................
Orientador: Prof. Dr. Paulo
Silveira
ONDE CORPO QUANDO IMAGEM
Porto Alegre, em 03 de janeiro de 2013.
_______________________________________
Prof. Dr. Paulo Silveira –– Orientador
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Profa. Dr. Maria Lucia Cattani -– Banca examinadora
_______________________________________
Prof. Rodrigo Nuñez –– Banca examinadora
Quando parei para escrever estes agradecimentos muitos nomes de amigos, colegas e conhecidos povoaram minha lembrança, entretanto optei por registrar aqui aqueles que agiram ex corde1, sinceramente, sem nada esperar. Devo agir como diziam os antigos: Quod Dei Deo, quod Caesaris, Caesari2.
Ao meu orientador Dr. Paulo Silveira, um pensador meticuloso, que empregou seu talento de maneira tranqüila e jovial na orientação deste trabalho.
Aos meus professores, verdadeiros mestres, que me proporcionaram todas as condições para que eu chegasse até este ponto. Obrigado pela dedicação, pela atenção e pelo tempo que compartilharam comigo seu conhecimento e amor pela arte.
Aos meus amigos: Wagner Schmitzhaus, Mateos Moraes, Antonio Carlos Rowe de Barros, Adalberto Portoalegre, pela presença constante; obrigado pela compreensão e pelo carinho.
Aos amigos Artistas Fotógrafos: Luiz Eduardo Robinson Achutti e Adalberto Portoalegre por multiplicarem o conhecimento dividindo-o sempre com todos.
Aos meus chefes pela compreensão.
Aos meus colegas das Ciências da natureza, e amigos: Profª. Maria Helena Gravina e Prof. Luis Carlos Gomes; a todos, pelas agradáveis discussões acadêmicas na hora do almoço, pela presença, carinho e constante incentivo.
Às colegas e amigas de viagem: Profª. Dra. Silvana Pineda e Cristina Kaszuba pelo convívio, pela luta diária, pelo exemplo de cidadania e solidariedade e pela força inestimável.
1- Ex corde: De coração
2 - Quod Dei Deo, quod Caesaris, Caesari: Dai a Deus o que é de Deus, e a Cesar o que é de Cesar.
RESUMO
Este trabalho de conclusão de curso apresenta a imagem do corpo como mais um objeto de arte do cotidiano. A percepção do corpo humano no dia-a-dia pode ser também condição prévia de uma verdadeira experiência estética.
Imagens fotográficas de atividades cotidianas e banais dos meus amigos são produzidas, e escolhidas. Essas imagens corriqueiras como as de um álbum familiar, são descontextualizadas tornadas sem tempo ou espaço destituídas de seu espaço cênico e de sua história através de programas de edição de imagens.
Destituídas de seu entorno, retiradas de seu contexto original que narram fatos aliadas a imagens oriundas da tecnologia de perscrutar o corpo humano (como radiografias), elas são coladas, justapostas a elementos efêmeros retirados da natureza como, por exemplo, flores, e insetos (borboletas e moscas). Agora elas contam uma nova história. Uma nova assemblagem, um novo cenário e contexto é produzido e pensado para desencadear a estesia do olhar, sem, no entanto se resolver no simples ato de ver. Quando tudo é retirado do homem este se aproxima da natureza, da dissolução, da decomposição.
Essa aproximação entre as imagens, baseadas em referentes cotidianos, agora destituídos de vínculos com o real e ressignificados dialogam entre si através de um viés da duração, do tempo, o que aproxima esse conjunto das vanitas.
A imagem do corpo passa da representação de um ser (ontos) com sua história de vida e memória, para ser uma obra de arte bidimensional, com duração e significado diverso da do corpo físico, orgânico e biológico, veiculando outra mensagem; a mensagem da finitude e da brevidade da vida.
Desta forma a imagem fotográfica retirada de seu contexto original, colada, justaposta e em novo diálogo entre si, agrega outro significado ao conceito de corpo, um significado simbólico, podendo ser fonte de reflexão sobre a vida e sobre a morte.
Palavras-chave
Corpo. Fotografia. Imagem pessoal. Identidade. Registro. Memória.
PAIM, Antonio Carlos. Onde corpo quando mensagem. Porto Alegre, 2012, 31 f. Trabalho de Conclusão do Bacharelado em Artes Visuais – Curso de Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Porto Alegre, 2012
SUMÁRIO
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Página
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1.
Introdução.......................................................................................
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8
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2. O processo
criativo.........................................................................
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10
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3. Protocolos
para produção das emulsões......................................
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11
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4.
Resultados......................................................................................
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13
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5. O
corpo sua imagem, vanitas e lembranças...................................
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18
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6. Considerações
finais.......................................................................
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27
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7.
Referências......................................................................................
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29
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8. Apêndice
(Portfólio)..........................................................................
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31
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ONDE CORPO QUANDO MENSAGEM
ANTONIO CARLOS PAIM
With
photography, I like to create fiction out of reality. I try and do this by
taking society's natural prejudice and giving this a twist. (Martin Parr)
Todo individuo possui uma tensão interior tonos
(τόνος) maneira de ser ou estrutura héxis (ἕξις) no mineral; natureza (φίσις) no vegetal,
alma psiché (ψυχή) no animal e inteligência nous (νοῦς) no homem. Em
outras palavras todo indivíduo é um corpo, sôma (σώμα) e o mundo apenas contém
corpos. (Jean Brun, O estoicismo)
1.
Introdução
O presente projeto constitui-se em um processo
de experimentação e descoberta. Experimentação pela apropriação da fotografia e
seus resultados específicos. Descoberta por provocar o olhar com imagens banais.
E essa nova dimensão dada à imagem pode conduzir a uma nova mensagem, que surge
entre a vista “ordinária” e a visão “extraordinária” (Greimas, 2002, p. 33).
Como diz Lyons em Silveira (2004):
[...] um
fazedor de imagens [...] não é um ingrediente anônimo na sociedade, e suas
observações são observações importantes para outras pessoas, não apenas para
satisfazer algo em termos desse público, mas para provocar algo nesse público,
fazê-lo ver mais do que viu antes.
O projeto utilizará linguagem especifica
da fotografia e técnicas a ela relacionada (processos fotográficos históricos,
fotografia digital, fotogravura) pela minha paixão por esse meio de expressão. A
apresentação final será uma instalação fotográfica.
Os procedimentos fotográficos (sejam
eles: alternativos, digitais ou tecnologias a partir da fotografia serigrafia
por exemplo) permitem ao mesmo tempo registrar, bem como, a partir do registro
ressignificar e descontextualizar imagens e torná-los mais ou menos
abrangentes, dando-lhes um novo status,
que ultrapassa sua relação imediata (índice) com o referente (ícones e
símbolos). Além disso, as imagens pertencem todas ao meu passado e à minha
história, i.e., fazem parte da minha memória.
Minha produção plástica consiste em uma
série de fotografias coloridas e em preto e branco em grandes formatos de
momentos vividos em grupo de amigos. Optei por colocar fotos de diferentes
épocas da minha vida e em diferentes ocasiões. As fotos foram descontextualizadas
de seu entorno imediato para tentar aproximar as imagens ao conceito de corpo,
vida e natureza e na tentativa também de gerar uma nova atmosfera. O que torna
a imagem mais subjetiva uma vez que perde seu caráter de registro de uma
atividade em particular para aproximar essa imagem a outro conceito o de
natureza, da vida e da morte. A imagem assim descontextualizada alude então a
outro universo onde os corpos são ícones e símbolos de sua própria duração. As
imagens assim ressignificadas passam a ser a lembrança de algo que foi. Mas
onde mesmo? O que estava fazendo eu nesse momento? Por que meus amigos estavam
posando naquele instante? Onde estavam? Quem é o sujeito da imagem?
Agora descontextualizados, a fotografia
aponta para uma morte iminente (da fotografia e do registro)? Agora a lógica
figurativa da representação óptica é substituída pela lógica da simulação,
caracterizada por um espaço sem lugar determinado, sem substrato material,
totalmente liberto do real; e mesmo que com “um pé” no real, ela é totalmente
construída, fabrica e faz advir mundos (Rouillé, 2009 29 a 71). No seu ambiente
natural onde estavam seriam mais um no meio do mundo seriam anônimos; agora que
foram tirados do seu contexto original são embelezados por essa nova situação e
adquirem uma nova duração fora do tempo e do espaço inicial. É necessário
estudar esse corpo agora isento da cena onde estava inserido, para definir que
imagem ele representa e porque tem essa forma e esta nessa pose ou estado. Todo
corpo tem milhares de anos. O objeto a ser fotografado e que de fato foi
fotografado não é esse objeto fotografado; é agora um objeto problema.
2.
O Processo criativo
Meu processo criativo vem de longa data,
quando recolho imagens de amigos desde que eu entrei no ensino formal, ou
quando recorto e coleciono imagens de jornal e revistas.
Essa coleção de momentos (baseados em
fotografias) que eu mesmo produzi, agora passam a fazer parte do trabalho agora
apresentado. Mesmo nos momentos de lazer eu fotografo com o celular ou com uma
câmara digital ou mesmo uma câmara analógica ou uma câmara estenopeica
(pinhole). As fotografias são então colocadas em pastas no computador ou em um
arquivo físico (pastas) se forem analógicas (base química). Desse arquivo de
fotos selecionei algumas para constituir parte dessa instalação. As fotos foram
escolhidas levando em conta: a forma do corpo dos modelos (amigos e conhecidos)
e se da natureza formas simples como um crânio ou uma flor ou uma radiografia,
sem muitos elementos. E mesmo as fotografias onde aparecem figuras elas foram
tratadas digitalmente (Photoshop) para retirar todo o entorno (o cenário da
fotografia) deixando somente a imagem do corpo à amostra. Algumas das imagens
depois de editadas foram impressas em grande formato, outras foram então impressas
através de métodos fotográficos históricos (alternativos), como a cianotipia e
marrom de Van Dyke.
As imagens selecionadas para
o projeto foram capturadas em diferentes momentos e locais e com diferentes
tecnologias e todas são relacionadas ao corpo. Essas imagens, mesmo tendo
acontecido em um tempo definido ou estando relacionadas a uma historia, foram
descontextualizadas e complementadas através de colagens e justaposição o que
amplia seu alcance conceitual e abre outra chave de interpretação.
A lógica criativa consistiu então
no desenvolvimento de uma nova camada de realidade, a partir das fotografias
(digitais e analógicas) e suas transformações, recortes e apagamento de sua
história, o que produziu novos significados. Desta forma, o percurso para a
criação dessa instalação fotográfica, o corpo como memória, passou por alguns
momentos, a saber:
- aquisição e seleção das
imagens de amigos e colegas em atividades cotidianas e de lazer.
- recorte e
descontextualização dessas imagens (esta etapa foi realizada via programa de
editoração de imagens, obtendo então novas imagens).
- produção de novas imagens
através da colagem de imagens escolhidas.
- impressão em transparências
(negativos e positivos) de algumas dessas imagens para os processos
alternativos de fotografia (marrom de Van Dyke, cianotipia, serigrafia e
fotogravura).
- impressão em papel e em
tecido (canvas) em impressora jato de tinta (ploter, para as fotos de grandes
formatos).
- reconstrução ou assemblagem
constituindo um políptico formando uma instalação.
Mesmo formando um políptico
instalável as imagens presentes apresentam autonomia como obra única, podendo
ser reagrupadas de outros modos.
3.
Protocolos para produção das emulsões
Há inúmeros métodos históricos para sensibilizar
um suporte para que este receba e fixe uma imagem. Testei alguns métodos entre
eles cianotipia, marrom de Van Dyke, papel salgado e papel albuminado. Dentre
estes optei basicamente por usar dois destes métodos cujos resultados se
aproximavam mais com o que eu queria mostrar, a ação do tempo. Com vistas a
esse fim usei basicamente o método da cianotipia e marrom de Van Dyke cujo
resultado lembravam mais a passagem do tempo, o envelhecimento. As duas tabelas
a seguir mostram os protocolos para a produção das emulsões para cada um dos
processos usados (Webb e Reed 2000, p. 63 a 78).
Emulsão para Cianotipia
Solução A
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10 g
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Citrato férrico
anoniacal (sal verde)
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50 ml
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Água destilada
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Solução B
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4,0 g
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Ferrocianeto de
potássio
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50 ml
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Água destilada
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Ambas as soluções
devem ser misturadas na mesma proporção na hora de sensibilizar o papel para
receber o negativo que produzirá a imagem.
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||
Emulsão para Marrom de Van Dyke
Solução A
|
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10g
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Citrato férrico
amoniacal verde
|
35ml
|
Água destilada
|
Solução B
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2g
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Ácido tartárico
em pó
|
35ml
|
Água destilada
|
Solução C
|
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4g
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Nitrato de prata
|
35ml
|
Água destilada
|
Fixador
|
|
25g
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Hiposulfito de
sódio
|
250ml
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Água destilada
(+- 45°) até dissolver o hipossulfito
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250ml
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Água destilada
(fria)
(ou fixador
normal em solução 1/15)
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Preparo
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Adicionar a
solução A em B e misturar bem então adicionar a solução C (solução de prata)
gota a gota para não aglutinar. Conservar em vidro âmbar (escuro) na ausência
de luz. Podendo ser guardado por vários meses.
|
No caso da foto ser produzida com marrom
de Van Dyke, deve-se lavar a foto em água fria por cinco minutos (a imagem
primeiramente de cor laranja se transforma em marrom) e depois colocar em um
banho com fixador por cinco minutos o que fixa o nitrato e escurece o marrom;
depois da fixação, lavar a foto por 30 minutos. No caso da cianotipia a foto
somente necessita ser lavada até a coloração amarela desaparecer.
Esse tratamento histórico acrescentou uma
dimensão do tempo às fotos que apesar de serem obtidas por métodos atuais
voltaram a ser impressas em processos antigos (alternativos).
Essa dimensão temporal dada às fotos é
importante, sobretudo para ressaltar seu caráter de memória e como são métodos
pouco sensíveis promovem um apagamento o que torna as fotos sem muitos detalhes
como as fotos digitais. E isso se equipara a memória, que seleciona certos
aspectos relevantes e o resto fica nublado, como que levemente apagado embora indelevelmente
registrado, porém sem o detalhamento dos fatos que ocorrem no presente.
As imagens que faço são de amigos que
dividem comigo a paixão pelos exercícios, a vida na academia, o atletismo ao ar
livre; estas apresentam certo viés narrativo ou de narração onde as seqüencias
podem contar uma historia ou mesmo sugerir conceitos e também fazem parte da minha
memória. Elas suscitam mais do que contam, o que aproxima o fruidor de uma
espécie de voyeur espreitando algo
que esta prestes a acontecer ali em sua frente ou que esta acontecendo in loco, de acordo com sua imaginação.
4.
Resultados
Como resultado produzi oito fotografias
em grande formato ( 160 x 137cm; 224 x 137cm; 135 x 62 cm (2); 135 x 67 cm; 125 x 124; 135 x 73 cm e 86 x 68 cm) que foram impressas em
algodão (canvas) em ploter jato de tinta mineral e 22 fotografia menores (15
fotos no tamanho de 29,7 x 42 cm, sete fotos no tamanho
de 42,0 x 59,4 cm
e uma de 56,5 x 47,0 cm)
em processos alternativos cianotipia e marrom de Van Dyke.
Essa seqüencia de fotografias se constitui
num pequeno recorte da vida cotidiana; da minha própria vida e de meus amigos
com os quais divido momentos de lazer na praia, no parque ou na academia, caminhando,
na busca de um corpo ideal, que aumente sua duração natural, que permaneça.
Essas imagens passariam despercebidas ou
nem seriam imagens. Assim, através dessa descontextualização e de uma nova construção
e colagem, eu mudo a mensagem incluindo-as no horizonte da arte. Essas imagens podem
agora seguir outro caminho diferente de seus referentes físicos e despertar no
olhar o sentido da paixão, entendida como em Aristóteles daquilo tudo que faz
variar o juízo e de que seguem sofrimento e prazer (Novaes, 2002 p. 19,
Greimas, 2001, p. 37).
Essa descontextualização das imagens e
sua justaposição com elementos como fotografias de crânios, e radiografias do
meu próprio crânio e tórax, além de fotos de borboletas e moscas, aproxima o
corpo humano vivo, da natureza que é o fim último de todos os corpos. Na perda
dos elementos cênicos não encontraríamos no que resta nem Deus, ou a beleza
muito menos o amor, mas a sordidez primeva da decomposição, da morte (Paglia
1992, p. 37).
Essa nova contextualização (menção tácita
do fim, da morte) que a sociedade atual faz questão de esconder traz de volta a
reflexão: exercitamo-nos porque tentamos evitar a dissolução na natureza ou
porque a natureza (a morte) é o único dado definitivo e certo em nossa vida, e
tentamos nos esconder na forma íntegra? Dito de outra forma: estamos ganhando
tempo ou perdendo tempo?
Essa maneira de mostrar o corpo como uma
metáfora do que é mais certo e inexorável, confere uma característica irônica
ao ato de “se manter em forma”.
Esse modo de mostrar as imagens como
retiradas da natureza criada e a sua aproximação da natureza última (a qual é
representada pelas flores, pelas radiografias, pelas borboletas pelas plantas e
pelas moscas e pelo crânio na instalação) leva a imaginar uma seqüência de
momentos no tempo; e isso nos conduz a pensar no modo como se contam histórias,
historias de vidas particulares e historia de lugares.
Histórias têm inicio meio e fim, não necessitando
aparecer nessa ordem, como bem sabemos. Assim, mesmo podendo ser deslocadas de seu
espaço original, elas ainda mantêm uma relação entre si, que agora sobrepostas
com outras imagens levam a entrever conceitos (como a morte, a transformação, a
natureza e as relações que mantemos com nosso próprio corpo e com os corpos dos
outros) que não estavam antes explícitos.
Minhas imagens do cotidiano evidenciam um
olhar sobre o banal e ordinário, ressignificando-o. A leitura (de um texto ou
imagem) é um "ato de espreitamento", uma viagem de nômade, sem
paradas obrigatórias: o telespectador lê a paisagem de sua infância na
reportagem da atualidade ou numa fotografia, pois ler "é constituir uma
cena secreta", lugar onde se entra e se sai à vontade; ou, como concluiu
poeticamente Marguerite Duras: "Talvez se leia sempre no escuro... a
leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora,
faz-se noite em redor do livro" (Cruvinel,
2004 p. 01), o que poderia bem ser aplicado á leitura da imagem fotográfica.
Necessitamos que o mundo nos seja narrado
constantemente. Ler (e lemos imagens) tal como ver e escrever, não é viver o
que personagens vivem, mas imaginar o que eles sentem imaginar o que foi
vivido, o que foi encenado. E assim entreabrir uma nova porta para o mundo, construir
uma nova ideia sobre a beleza, sobre a fealdade, sobre o desejo, sobre a vida e
a morte.
Estas fotografias se inserem no mundo
narrando uma história, mesmo que veladamente. Elas representam um recorte da
vida do modelo que foi retratado, colocando o observador como um voyeur a espiar a vida do outro,
misturando-os (fruidor e modelo-imagem) mesmo que por alguns momentos naquela obra
que se desvela ali ante de seus olhos.
Essa abordagem tem três distintos caminhos,
o primeiro é constituído pelas fotos no qual emprego um viés fotojornalístico,
onde meus amigos são transformados em imagem sem o saber, eles não estão
esperando serem fotografados. Em outra, o modelo tem ciência e percebe que tem
alguém olhando e por isso pode mudar seu comportamento e por último estão as
imagens posadas de amigos e conhecidos que se deixam dirigir para a produção de
uma determinada imagem.
Esta transformação, descontextualização e
ressignificação de atos cotidianos como, por exemplo: exercitar-se numa
academia, caminhar na calçada, ou no parque, passear na praia, andar de
bicicleta, descansar são situações que embora aparentemente gratuitas e
fortuitas passam a ser significativas na construção do olhar estético. Também as
imagens são um aparecimento, entendido como um olhar a tal ponto compenetrado
no ordinário que, atravessando-o e perpassando-o, é o próprio extraordinário
que se expõe na dimensão do ordinário.
Assim, as imagens, como um aparecimento,
desencadeiam a reflexão sobre o ordinário da minha existência. Toda imagem pode
ser definida como uma ocorrência, nesta cidade, em algum momento no tempo, um “aconteceu”
um “isto foi!” ou um “isto foi encenado” em algum lugar, num espaço
heterotópico (Silvano, 2001, p. 83
a 107).
Exemplo de
montagem alternativa no piso da sala 54 do IA/UFRGS, para uma ideia
aproximada do tamanho do políptico produzido.
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O trabalho dialoga com o tempo atual
inserindo-nos no universo da imagem do qual já somos parte, a partir de uma
aceitação tácita de nossa condição como seres humanos dotados de corpo, imagem
e duração. O trabalho também dialoga com a contemporaneidade no momento que
apresenta uma visão intrinsecamente relacionada à existência de seu autor como
uma espécie de trabalho auto referencial.
Essas
imagens estão a nossa volta produzindo um prazer visual, fazendo da imagem um
dos meios de interpretação do mundo relacionando-a própria vida cotidiana.
O presente trabalho dialoga com alguns
artistas fotógrafos como Alair Gomes, Duane Michals e Barbara Kruger, mas
também com teóricos considerando as ideias contidas em suas obras como: Philipe
Dubois (O ato fotográfico), Susan
Sontag (Sobre a fotografia), André
Rouillé (A fotografia entre o documento e
a arte contemporânea), Françoise Soulages (Estética da fotografia – perda e permanência).
No Brasil as discussões sobre as imagens
tendo como foco a fotografia foram principalmente desenvolvidas por Annateresa
Fabris (O desafio do olhar, Fotografia e artes
visuais no período das vanguardas históricas), sendo que atualmente as
discussões em pauta nos cursos de pos-graduações em arte têm gerado teses de
doutorado tais como o trabalho de L.E.R. Achutti (Fotoetnografia), Alexandre Santos (A fotografia como escrita pessoal: Alair Gomes e a melancolia do
corpo-outro), bem como o trabalho de Paulo Silveira (A página violada) e o capítulo relativo ao uso da fotografia em
livros.
Assim, o projeto apresenta um viés da
historia da fotografia (William Henry Fox Talbot, pelos métodos alternativos ou
históricos de fotografia), além da fotografia e processos artísticos
contemporâneos, tal com Luiz Monforte (A fotografia pensante; no uso de
processos alternativos fotográficos) e processos que tem a fotografia como base
para sua existência como serigrafia e fotogravura.
No tocante a arte, o uso da fotografia
(através de métodos como ampliação, reenquadramento de imagens,
descontextualização, ressignificação bem como o uso de métodos alternativos de
fotografia como marrom de Van Dyke, e cianotipia, separados ou juntos,
justapostos (colagens), podem fazer da imagem uma transcrição pessoal da
natureza, uma aproximação com outros conceitos que não sejam apenas o registro
de uma cena. Isso posto, a nova imagem será capaz de evocar sentimentos no
expectador-fruidor.
Com a fotografia é possível realizar
infinitas montagens e gerar novos significados possibilitando novos
entendimentos do que é apresentado, como também salientar a incapacidade de uma
imagem dar conta do real; esse fato torna a fotografia extremamente útil e
heurística na arte contemporânea. Essa ontogênese da forma na epifania das
imagens corporais estabelece o imediatismo de nossa percepção estética (Jeudy
2002, p. 34), o que é muito interessante para veicular uma reflexão sobre temas
caros ao homem e a arte (vida e vanitas).
Os conceitos teóricos estão relacionados à
imagens, memória, transformação, fotografia, registros, símbolos e vestígios.
5.
O corpo, sua imagem, vanitas e as
lembranças.
O mito de Pigmalião nos diz que ele
desacreditando das mulheres esculpiu uma estatua representando a mulher mais
lindo do mundo. A deusa Afrodite compadecida do rei escultor transformou a
estátua em uma mulher viva. Esse mito mostra que o corpo humano é o objeto fundamental
da arte. Todavia, o mesmo mito nos faz pensar em dois pontos importantes: 1)
que em vez de ser o duplo de si mesmo, o corpo esculpido é sobretudo a
expressão soberana de uma alteridade composta até a quintessência das intenções
do seu autor; e 2) que a vida da estátua não faz esquecer a morte de onde ela
vem; saída das trevas que já a tornavam tão bela, ela acede à vida, conservando
em si os mistérios de sua origem (Jeudy, 2002, p.32,33) o simulacro da morte
não simula mais torna-se corpo em si (pura imagem) e 3) a beleza.
O corpo e o crânio:
na radiografia estão representados os seios nasais e as vias aéreas por onde
entra o ar em nosso corpo. (59,4 x 42,0 cm).
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Para ilustrar a ideia de que a
permanência da imagem e seu significado pode-se recordar o conto de Ítalo
Calvino “A aventura de um fotógrafo” no qual ele relata a história de Antonino
Paraggi, fotógrafo dominical que desprezava a fotografia até que ele se
apaixonou por uma moça e começaram a viver juntos. Surgiu em Antonino a
necessidade de registrar fotograficamente sua amada e assim, ele comprou toda
sorte de equipamentos, montou um laboratório e fotografou sua amada à exaustão,
esgotando todas as imagens possíveis. Ela não suportou tal assédio e o largou.
Desesperado, começou a fotografar a ausência dela. Começou então, metodicamente,
a fotografar a destruição, a valer-se das imagens já prontas, do referente que
adere e quer ser desesperadamente o sujeito imagem. Fotografava fotografias já
feitas e as destruía com a mesma compulsão. Este é o ponto: tornar explícitas
as relações com o mundo que cada um de nós traz consigo, e que hoje tendemos a
esconder, a tornar inconscientes, apagadas, supondo que desse modo vão
desaparecer.
O ponto aqui é a transformação e o
desaparecimento características notáveis da memória, muitas vezes envolta em
brumas. Dizemos que a natureza é bela ou que essa ou aquela pessoa é linda, mas
o que é bonito na natureza se limita a fina película do globo sobre o qual
vivemos, já reconhecia Paglia (1992, p. 17) é só arranhar essa fina camada que
surgirá a feiúra daimônica da natureza, seus processos de transformação,
dissolução, putrefação, decomposição enfim a morte.
Por isso os antigos gregos atribuíram um
papel importantíssimo a uma titânide especial, Mnemósine, filha de Urano (o
céu) e Gaia (a Terra). É ela que preserva do esquecimento. Mnemósine teve nove
filhas com o fortíssimo Zeus, as Musas, estas mantém com seu canto ininterrupto
toda a realidade longe do não-ser, inclusive a noite e a morte. Dizem elas: “sabemos muitas mentiras dizer
símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir (ver) revelações”
(Hesíodo, versos 27-28). As imagens têm o poder de lembrar fatos, vidas,
vivências, histórias; existe na imagem bela e oculta nela o principio que como
sendo um ser composto um dia de decomporá. Mas sua presença, pela lembrança ira
permanecer, pela palavra-imagem. Essas imagens fora do espaço ou num espaço irreconhecível,
porque elas mesmas são um lugar de luta e tensão entre o ser (representar o
ser) e o deixar de ser.
Optei por registrar o melhor ângulo, a
melhor imagem e não imagens escuras e esquálidas, para lembrar como Nicolas Poussin:
et in Arcadia ego... na Arcádia a
terra do idílio, também lá, encontramos a morte. Na imagem e pelo olho tomamos
conhecimento do que é sensivelmente visível, mas também pode ser pelo olhar
chegamos à reflexão (Novaes 2002, p. 11).
Nas imagens assim dispostas pode-se dizer
que há um poder ontofânico, um poder que faz aparecer o ser, e perdura até hoje
desde os tempos imemoriais. Esse poder originariamente das palavras agora é
dividido com a imagem. A imagem e a palavra se equivaleriam nessa justaposição,
colagem assemblagem. As revelações que as Musas sabem dar a ouvir e ver são
des-velações, pois retiram fatos e seres do reino noturno (pois pensamos que
não existem para nós neste momento) e fundam essa pura imagem (a morte) como
manifestação e presença.
Além do duplo e da morte, aliando a
história de Pigmalião à de Antonino existe a beleza e o sentimento afetivo (ou
lembrança desse sentimento, sua memória) que são elementos a considerar. Como Pigmalião
eu construo um corpo a partir de uma imagem, e como Antonino eu fotografo
insistentemente esse corpo e algumas das fotos foram fotos de fotografias
usando para isso os métodos históricos. Aliado a essas fotografias do querer
presentificar cada momento está a figura da morte a espreitar de dentro da
própria imagem. Já encontramos na Vulgata latina, no livro do Eclesiastes,
versículo 2: vanitas vanitatum et omnia
vanitas (vaidade de vaidades, tudo é vaidade), a origem da reflexão sobre a
razão de todas as atividades humanas.
Esses elementos como crânios e
radiografias positivadas dialogam ou aproximam a instalação fotográfica ora
apresentada, do gênero de pintura muito conhecido na história da arte como vanitas, gênero de pintura de natureza
morta, que floresceu nos séc. XVI e XVII na Europa, principalmente nos países
baixos. A esse tipo de arte esta associada à ideia de efemeridade da vida, e
uma mensagem enfática de que todos somos mortais e passageiros memento mori (lembra de tua mortalidade,
lembra-te que és mortal) na qual são aliadas flores (menos usual) esqueletos e
crânios.
Parte de uma foto mostrando uma radiografia de um crânio com uma flor em seu interior (detalhe). (29,7 x 42,0 cm).
Exemplo desse motivo pode ser encontrado
na arte latino-americana especialmente mexicana onde a “santa morte” tem um
lugar de destaque na cultura. Um antigo hino dos estudantes usado na Europa
intitulado Gaudeamus igitur (que
trata da brevidade da vida) foi cantado por centenas de anos pelos estudantes
que se preparavam para uma vida pública após a saída das universidades (letra e
música anônima).
Gaudeamus
igitur
Juvenes
dum sumus.
Post
jucundam juventutem
Post
molestam senectutem
Nos habebit
humus...
|
Alegremo-nos,
portanto,
Enquanto
somos jovens.
Depois
de uma vida agradável,
Após
uma velhice doentia,
A terra nos acolherá...
|
Alegro-me mesmo sabendo que tenho uma
duração finita. E exercito-me mesmo sabendo que a forma se deteriora como em todos
os corpos.
Desta forma, mesmo se tratando de imagens
ordinárias, cotidianas e, portanto banais, levam-nos a perceber outra dimensão
da vida e dos nossos próprios desejos. Quando desejamos esquecer que somos
finitos, o desejo chama-se então carência, um vazio que tende para fora de si
mesmo em busca de preenchimento (Novaes, 2006, p. 23) (da vida, da história)
com momentos efêmeros (festas, amigos, cotidianos encontros).
As imagens apresentadas lembram ou
dialogam ou tem uma relação estreita com as obras fotográficas de Alair Gomes e
Duane Michals. Esses artistas investigam o universo do cotidiano e das
situações diárias da existência humana, o que aproxima todos os seres humanos.
Todavia deixam a figura no seu habitat natural, no seu espaço cênico ou criam
um espaço novo e fantasioso ou idílico para as figuras.
Esses artistas fotógrafos mostram o corpo
humano, masculino envolto numa aura de romantismo e hedonismo e até mesmo
envolta num erotismo que leva ao expectador-fruidor a pensar que esse corpo não
tem fim nem duração no tempo. Eu quero mostrar a duração do corpo e sua
finitude.
Ora, corpo todos temos, e todos já
posamos para fotos. Todos nós já nos tornamos objetos do olhar de alguém e de
alguma lente voltada em nossa direção. Há que equacionar esses pontos todos ao
mesmo tempo: o mistério da origem do corpo (e do olhar objetificante,
reificante, da lente), a duração (o problema da morte) e o problema da beleza.
Apresentar o seu corpo ao outro (artista
ou não) como objeto de arte é o início de um prazer estranho de desapropriação.
Não precisamos interpretar o corpo, contudo precisamos interpretar uma
fotografia do corpo. Como isso é possível? Como se dá esse mistério de
acréscimo? Algo completo, o corpo, ao ficar incompleto (fotografia) é acrescido
de algo que não esta no modelo, ou não é pressuposto pelo corpo de outrem. Que
mistérios há nessa passagem? Segundo Jeudy (2005, p.39) o modelo se esquiva de
sua transfiguração como objeto de arte, visto que seu corpo já o é. Pois o
corpo que adota uma imobilidade e se mostra, é visto como um objeto de arte.
Na história de Pigmalião e Galatéia, a
deusa não transforma um corpo vivo em estátua (objeto de arte); Pigmalião não
faz de uma mulher viva um objeto de arte. Ele concebe uma estátua e
ardentemente deseja que esta ganhe vida. Eu, tendo convivido com as pessoas a
partir das quais essas imagens foram geradas, as concebo agora em outro plano
(da memória) e sendo então apenas imagens descoladas de seus significantes
adquirem outra vida e fazem parte de outra história, passando a integrar a
memória de outras pessoas.
Questiono-me por que o corpo tem sido o
centro de tanta atenção, sendo encontrado nu, ou virtualmente nu em revistas, nos
jornais, televisão, comerciais e outdoors. Por que muitos escritores,
filósofos, artistas, e fotógrafos estão profundamente preocupados com esse
assunto? É a urgência da vida em épocas de doenças como câncer, DSTs (doenças
sexualmente transmissíveis), genocídios, guerras civis, é também o esvaziamento
da vida promovido pela tecnologia ou é um fenômeno da moda? O pensamento
cartesiano binário: vida-morte, macho-fêmea, masculino-feminino, jovem-adulto,
natureza-cultura, tem sido posto a prova a todo momento. Com as obras Your body is a battlegroud ou We are not what we seem Barbara Kruger
ilustra bem esses questionamentos.
Barbara Kruger: Your body is a battleground e We are not what we seem.
Segundo Ewing (2000, p. 9-34) é urgência. O corpo tem sido considerado por escritores e artistas devido a sua reestruturação por cientistas, cirurgias plásticas (reconstruções faciais, implante silicone nos seios, peitorais e glúteos), e até mesmo pela engenharia genética como a possibilidade da clonagem humana.
Desta forma eu apresento o corpo mais uma
vez para questionar esses princípios de classificação sociais que em vez de incluir,
excluem.
Há argumentos de que a pornografia tem
contribuído para a degradação do corpo de ambos os gêneros e que a propaganda é
a glorificação de uma visão idealizada da juventude. Quero questionar, com
imagens cotidianas que produzi nossos atos diários em prol de um corpo (ideal)
que não existe. E que essa busca pelo corpo ideal é a fuga do conhecimento de
que todos os corpos têm uma duração. Para isso as imagens banais do cotidiano
são úteis para mostrar que o que existe mesmo é o nosso próprio corpo e não um
corpo idealizado.
Não existe uma maneira de se igualar ao outro
(ideal da publicidade) nem mesmo através da cirurgia. Somos essencialmente
diferentes. Nosso pensamento geralmente é muito linear e cartesiano e
descolamos do sujeito, do indivíduo suas características e as perseguimos;
desta forma perseguimos objetivos inalcançáveis como ser igual a esta ou aquela
pessoa especialmente pela beleza e atributos físicos.
Assim, a arte tem o papel de rearranjar e
reestruturar nosso julgamento, ordenando, acomodando e fundindo tudo, desejos,
conhecimento, vida e arte numa realidade só. Desta forma eu questiono o “ser do
humano” e sua imagem.
Ironicamente a busca da forma é ao mesmo tempo
o caminho para a dissolução na natureza, pois quando retiramos tudo que esta ao
redor do humano o que sobra é a natureza (que eu represento pelas flores, pelo
crânio e pelas radiografias transformadas em positivo em processos fotográficos
históricos), e pelo descolamento das figuras do seu fundo e colagem em outros espaços
ou sua estase em um espaço sem tempo nem ação.
A arte então desestabiliza ou pode
desestabilizar ao colocar o indivíduo (o seu eu) no centro dos processos, e que
modelos são para admirar não para seguir. Essa ação fixa, e a fixação esta no
âmago da arte. Fixação como stasis, (στάσις,
permanecer estático, parado) pois tenta dominar um aspecto incontrolável da
realidade.
A arte (através da fotografia) é assim um
gerador de saber, amplia o horizonte do ser humano porque aprisiona um aspecto
da realidade. Promove uma espécie de transformação da visão de nosso corpo
considerado comum, em criaturas de ficção radiantes de mistérios como Danto supõe
para a obra de arte (Danto, 2005, p.23-72).
Roland Barthes (1984, p. 22) escreveu:
“Assim que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: eu vou logo fazendo “pose”,
fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em
imagem. E Jeudy (2002, p. 46) conclui que o ato de fotografar faz-nos passar da
crença no estado de sujeito ao estado de objeto e, nesse sentido, esse é um
momento de experiência da morte.
Não ser mais sujeito mas saber-se um
objeto nisto consiste a morte do que era anteriormente. Assim, através da transformação
de sujeito em imagem fotográfica, chega-se a uma categoria estética; e ao mesmo
tempo encontramos a morte e a ideia de vida (Fabris, 2006, p. 16). Como bem
salientou Barthes (1984, p. 27):
A
fotografia é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se
defrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que
eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me
julga e aquele que ele se serve para exibir sua arte.
E continua dizendo, que não é nem um
sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto,
vivendo uma microexperiência de morte, tornando-se um espectro (spectru), um fantasma, tornando-se enfim
um ser “todo-Imagem”, i.e., a morte. Ora, a morte é representada na montagem
como seu elemento mais homólogo o esqueleto, o crânio e as radiografias
enquanto presente e corpo de futura dissolução. Essa instalação lida com o
encontro, pois é colagem de elementos dispares. Cada uma das imagens escolhidas
possui um profundo significado simbólico, que agora se encontram e se
complementam de outra forma. É poesia no sentindo grego de produzir algo, novo
ou não, significante ou não, mas, sobretudo diferente do que existia antes.
Aproximações de momentos, aproximação de
extremos e de possibilidades. As imagens liberadas de seu contexto anterior
fazem pensar no porque estão ali. Aparentemente
inocente e superficial sua liberação do contexto anterior, do fundo onde
jaziam, as transforma em ícones ou símbolos, sendo assim alçadas agora em novo
discurso; carregam nova mensagem. Fixam o olhar pela forma, detém os passos dos
transeuntes diante de si (da imagem). Antes citação do mundo, agora recortadas,
elas são apresentação de um novo mundo, de uma nova ideia.
6.
Considerações finais
A fotografia tem uma realidade própria
que não corresponde necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto
de registro. Ela pode contar uma história em apenas um fotograma ou narrar uma
história em muitos frames, muitos
recortes e subtextos (Cossoy, 2009, p. 29; Cotton, 2010, p. 139) é por isso que fotografo.
Por ser o homem o único ser vivo (até
prova em contrário) que sabe de sua finitude, de sua duração, por ser um animal
atormentado, produzimos e legamos a posteridade, por meio de processos de
transformação da realidade, um acervo de visões de vida construído pelo uso das
mais variadas linguagens (Humberto, 2000, p. 17). Minhas fotografias tentam
mostrar esse universo da ironia proposto pelas fotografias cotidianas, que registro
dos momentos banais em minha vida.
Exemplo de uma das fotos usando três processos unidos numa única obra.
O que remete à vanitas e a nossa morte diária. (224 x 137cm).
(2,8 x 1,9 m)
(1,7 x 2,0 m)
Algumas das obras que foram produzidas para o TCC.
MONTAGEM DA VERNISSAGE
Ora, a arte por si só é libertadora por
que é conhecimento. Como diz Humberto (2000, p. 27-28), é conhecimento sobre
nós mesmos como indivíduo e, sobretudo conhecimento sobre os outros, na medida
em que nos permite investigar o sentido da própria vida.
Dentro desta perspectiva faço uso da
fotografia no sentido de produzir conhecimento sobre mim mesmo e sobre o outro
bem como sobre o mundo que dividimos, conhecimento sobre o aqui e agora. Uma
reflexão irônica sobre o estar vivo nesse tempo.
Esse trabalho possibilitou pensar a
imagem para além do índice e ao justapor, colar, descontextualizar e
ressignificar, colocar em ação outro discurso o discurso da natureza e o
discurso dos desejos humanos. E abre a possibilidade de investigar mais
aprofundadamente em novas séries de trabalhos o viés de ícone e símbolo que as
imagens podem passar a ostentar. Além disso, uma nova perspectiva se abre na
produção de imagens via fotogravura onde se usa a imagem fotográfica unida a
palavras modificando seu sentido e estendendo seu alcance de
imagem-acontecimento.
Por transformar essas imagens banais em
imagens que questionam, imagens que zombam e às vezes podem fazer rir pelas associações,
enfim imagens estéticas, essas novas perspectivas tem possibilidade de passar
do tempo para um estado mais duradouro de mensagem e integrar nossa memória
cultural. E isto nos faz parar e lembrar, pensar e refletir.
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HEIDEGGER, M. Heráclito.
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HUMBERTO, Luis Fotografia,
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photographic process. A working guide for image makers. New York: Silver Pixel Press, 2000.
8. Anexo (Portfólio)